quarta-feira, 13 de julho de 2011

HISTÓRIAS DA MINHA VIDA - PARTE II - A EDUCAÇÃO E A DITADURA MILITAR



EDUCAÇÃO BRASILEIRA: da palmatória a queda do AI 05.

No inicio deste ano me tornei professor. Convidado a lecionar em uma faculdade do Recife, iniciei minhas atividades enfrentando duas turmas super lotadas com alunos recém aprovados no vestibular. Neste sentido posso dizer que a bagagem teórica e prática adquirida durante os mais de vinte anos de atuação nas áreas da psicologia organizacional, clínica e  social, além da experiência em consultoria em gestão de pessoas, em muito contribuiu ao processo de adaptação. O exercício do magistério é sem dúvida o grande espaço para reflexões constantes, se fazendo necessário, inclusive, a reavaliação de nossos próprios conceitos e posicionamentos pessoais, éticos, políticos e ideológicos. Vivemos um momento de abertura as possibilidades de desenvolvimento pessoal e profissional nunca antes visto no país. E neste sentido a ampliação do número de faculdades e instituições afins em muito tem contribuído e favorecido para o aumento da acessibilidade ao curso superior – sonho de consumo da classe média, antes inatigível. Por outro lado, essa corrida às faculdades escancara um dos principais desafios aos atuais governantes, e principalmente aos corpos docentes – a garantia da qualidade na educação brasileira.

Sabe-se que essa defasagem não é reflexo de um momento atual, mas resultante de um processo de esclusão social que remonta o passado. No final da década de 1990, por exemplo, durante os vários processos seletivos que desenvolvi para uma grande multinacional da área de varejo, mais especificamente, no setor de logística, já observava a fragilidade dos muitos candidatos no que se refere à construção de idéias e do raciocínio lógico. O mercado exigia qualificação técnica, aliada a habilidades e competências relacionadas e desenvolvidas pela educação de base. Nas dinâmicas de grupo os mesmos se revelavam despreparados para a simples defesa de pontos de vistas pessoais, e/ou ideológicos, correlacionados a temas do cotidiano, dentro de um contexto mais político. A falta de atualização sobre temas gerais e específicos ao cargo pretendido, beirava a sandice. Assim, a leitura de um texto sobre um tema comum revela uma fluência verbal quase débil, o que exigia do avaliador um grande sacrifício no intuito de decifrar uma escrita comprometida, e através desta, buscar a mínima compreensão possível. Por extensão, a correção gramatical denotava um verdadeiro assassinato a língua portuguesa.

Certo dia li, que para alguns economistas e analistas políticos os anos noventa podem ser entendidos como a “década perdida”. Confesso que de imediato me senti chocado, e até, de certo modo, ofendido. Hoje, penso que na verdade estes anos nos serviram como período de ressaca. Estávamos tão desacostumados a falta de liberdade que não sabíamos mais tomar decisões por conta própria. Não tínhamos mais a autonomia. O desafio então, consistia em acompanhar um mercado competitivo e globalizado que, de certa forma, parecia se apresentar como um novo mundo. Era preciso correr atrás do prejuízo causado por vinte anos de alienação provocado pela ditadura e repensar a educação, a saúde, a economia, a política, e atualizar conhecimentos. Acima de tudo, seria necessário rever a história para buscar compreender quando, e por quais motivos, o brasileiro parou de pensar de forma lógica sobre política, ideologia e autonomia como estratégias de sucesso.

Remoendo o meu próprio passado, volto a 1973, quando o General Emílio Garrastazu Médici era o presidente da república e o AI 05 já estava em vigor. Com sete anos de idade eu entraria pela primeira vez em uma escola. Era na verdade uma igrejinha antiga com paredes amarelas e com portas de madeira, que se localizava em um lugar que eu não conhecia direito. As aulas funcionavam pela manhã e esta unidade de ensino funcionava como uma espécie de anexo da escola municipal [se não me engano]. Minha primeira professora se chamava Luciana. Era loura, estatura mediana e devia estar na faixa dos 25 anos de idade. Era uma jovem educadora comunicativa e simpática. Naquela época as professoras faziam o magistério, que era um curso secundarista, e estavam prontas para o exercício da docência. Essa professora, em especial, quase sempre vivia sorrindo para os pequenos alunos. Seguindo as tradições a gente tinha que se levantar sempre que a mesma, ou alguém importante chegava à sala de aula. Em pé diante das carteiras [bancas escolares] deveríamos cumprimentar a “autoridade”, quase sempre sisuda, com um sonoro bom dia. Permanecíamos levantados até que a criatura se compadecesse e nos liberasse para sentar. Em silêncio total e absoluto deveríamos escutar aos comunicados ou instruções [que muitas vezes não entendíamos] para só depois nos dedicar aos trabalhos, não sem antes levantar novamente para repetir a educada e singela reverência em sua saída. Assim, passei anos e mais anos nesse senta e levanta para saldar pessoas, que na verdade, na maioria das vezes, não conhecia ou sabia de sua importância ou função. É que nos anos da ditadura não era preciso entender muito a lógica das coisas, bastava apenas saber ouvir e cumprir ordens. Disso dependeria nossa classificação e reconhecimento social enquanto aluno aplicado e dedicado aos estudos. Logo, quem não cumpria com os ditames e regras do poder era rotulado como “criança sem grande futuro”.

Foi na escolinha que aprendi a rezar direito. Era uma sucessão de repetições na hora da entrada, intervalo para o lanche e também na saída. A “Ave-Maria” e o “Pai Nosso de cada dia” eram obrigatórios antes dos hinos nacional, do estado, da bandeira [alguém se lembra do: “Salve, ôh lindo pendão da esperança... Salve, oh símbolo augusto da paz...”] e outros que eram das forças armadas [que logicamente fiz questão de esquecer com o passar do tempo]. Pregava-se assim, a religiosidade [entendida exclusivamente como católica apostólica romana], a disciplina absoluta [obediência cega] e a nacionalidade [combate aos comunistas]. Mas ninguém explicava o que aqueles versos e estrofes queriam dizer. Isso na verdade não tinha muita importância. O que se deveria fazer era repetir, repetir e repetir coisas que não sabíamos o que significavam, ou sobre o que tratavam, mas que eram importantes e fundamentais para o desenvolvimento escolar. Até porque nossa disciplina e nossos comportamentos eram avaliados, e logicamente valorados através das notas. Um aluno mal comportado dificilmente encontraria uma nova escola, caso fosse expulso. Então, a obediência era aprendida na base do medo e da repressão.

As professoras [até porque naquela época os homens não ensinavam criancinhas] tinham poder e controle absoluto sobre seus alunos. Era a autoridade máxima, inclusive com poderes para nos colocar de castigo. E esses eram terríveis. Podíamos passar a aula inteira em pé, junto à parede, e de costas para a classe; ou ainda pior, passar horas de joelhos em um canto da sala. As pernas doíam e a gente chegava mesmo a exaustão. Além logicamente, de servir de gozação para os colegas de turma. Em casa estes castigos podiam ser mais elaborados e com requintes de violência que beiravam as torturas sofridas pelos perseguidos políticos. Assim, poderíamos ser colocados de joelhos sobre grãos de milhos. Um dia meu irmão Eliel resolveu exercitar seu sadismo e poder de irmão mais velho me colocando ajoelhado sobre as cascas de uma jaca [dá para imaginar aqueles espetinhos ferindo os joelhos de uma criança magra e de saúde frágil como eu?].

Ninguém saia da sala sem pedir licença e obter a autorização da professora, inclusive para ir ao banheiro ou beber água, mesmo que a sede ou a urina acumulada lhe causassem sofrimentos e/ou constrangimentos. As professoras funcionavam como uma espécie de segunda mãe. Por isso uma reclamação ou recomendação sua nos renderia uma surra ou pisa corretiva [como se chamava a violência praticada pelos próprios pais contra seus filhos em nome da educação]. Na verdade ninguém apanhava de professor, até porque os beliscões, puxões de orelhas, palmadas e batidas nas cabeças, não eram considerados como violência física, e muito menos, violência moral ou psicológica. Eram apenas medidas de correção que visavam nos transformar em homens de bem.

Com a professora Luciana nunca fiquei de castigo. Ela era boazinha demais e sempre optava pela conversa e orientação individual. Mas lembro de uma situação constrangedora que me marcou para sempre. É que ao final das aulas todos os alunos faziam fila e passavam por ela, que ficava a porta, para receber um beijo de despedida na cabeça. Como tinha eczemas espalhadas pelo corpo todo, inclusive pelo couro cabeludo, a boazinha e delicada educadora nunca me beijava ou me tocava. Claro que para um adulto tal fato seria racionalmente justificável e entendido, porém, para uma criança considerada inteligente e aplicada como eu aquele ato se configuraria como rejeição que jamais entenderia.

Nessa escola tinha uma moça, acho que se chamava Madalena, que sempre nos levava para casa. Engraçado que não sei onde ela morava e nem por quais motivos ficava com tal responsabilidade. Como diria o Chicó, de O Auto da Compadecida, “só sei que foi assim”. Lembro que sempre urinava nas calças. Acho que o medo e a repressão eram tantos que não pedia para ir ao banheiro. Todo mundo percebia o calção molhado e fazia comentários a respeito. Já notaram como os adultos adoram constranger as crianças? Pois é, no meu caso, sempre passava alguém e dizia: “como uma criança tão linda e inteligente pode fazer pipi nas calças”? Eu era obrigado a inventar desculpas esfarrapadas. Tentando me explicar, ou me redimir, contra-argumentava alegando que era culpa da chuva. O problema era que o sol sempre insistia em me desmenti. Outra coisa que não tolerava era o fato dos adultos terem a mania de mentir para agradar criancinhas. Digo isso porque com a cabeça e o corpo cobertos por feridas, o que impedia o beijo de Luciana, como alguém poderia me achar bonito? Eu mesmo me achava feio e estranho. E neste sentido, talvez a inteligência aguçada fosse apenas uma estratégia de compensação. Era feio, mas já sabia ler e soletrar as palavras.

Acho que um ano depois fomos transferidos [eu e minha irmã Ligia, que me acompanhou por muitos anos] para a Escola Municipal Reunida Timbi. Nesta, existia uma diretora que era a própria personificação da ditadura militar. Dona Marival, como deveria ser chamada, era uma mulher conservadora e vista como linha dura. Com ela não tinha meio termo e a educação era extremamente rigorosa. Todos os meus irmãos e irmãs passaram pelas mãos da mulher que se utilizava da palmatória para fazer imperar suas vontades. Ao menor sinal de desobediência o nome do condenado aluno poderia ser ouvido em toda a extensão da escola. Como um cão feroz e sempre de guarda, a mulher de saias pretas que lhe chegava aos joelhos era implacável. Sua voz estridentemente fina era capaz de estourar nossos tímpanos com o seu bordão preferido e repressor: meninoooooooo! Essa última silaba parecia ser espichada até lhe faltar fôlego.

A palmatória era uma peça de madeira com base arredondada na extremidade que Dona Marival sempre carregava nas mãos. Quando repreendido, o aluno deveria estender a mão para sucessivas palmadas. A pele ardia e logicamente ficava avermelhada. Era assim que se aprenderia os bons costumes e as bases do respeito. Criança não tinha vez, e muito menos razão em nada. Não éramos sujeitos de direitos e por isso a régua [também de madeira, e grande] lhe servia para nos chamar a atenção. Era com ela que nos batia na cabeça quando não sabíamos a resposta correta. Seu rigor era tão grande e assoberbado que um dia chegou a quebrar um lápis pressionando minha mão para que escrevesse direito.

Para se chegar à escola era preciso andar quase um quilômetro de distância [se não era isso tudo, era quase]. Além do mais, para as crianças as distâncias sempre se fazem maiores e mais sofridas. E nós íamos a pés. A farda tinha que estar impecavelmente limpa e completa, caso contrário a gente tinha que voltar para casa e perdia o dia de aula. Passávamos por ruas de barro batido, cheias de pedras e buracos. Subíamos por uma ladeira que dava num campo [terreno baldio onde os homens adultos promoviam campeonatos de futebol, e onde às vezes, parávamos para pegar cajus]. Adiante havia uma barraca velha, de madeira escura e telhas de barro, onde se vendia todo tipo de guloseimas que se transformavam em verdadeiras tentações, mas que nunca podíamos comprar por falta de dinheiro. Lá tinha pirulitos coloridos; zorro, que era de caramelo em barra, de embalagem preta que tinha uma figura do personagem com capa esvoaçante e espada em riste; barrinhas de arrozinhos [brancos, rosa e amarelo] que apesar de coloridos tinham o mesmo sabor; confeitos [como chamávamos as balas atuais] xaxá, azedinho e soft; línguas de sogra e broas com recheio, que na verdade mais pareciam uns toletes [daqueles que a gente bota pra nadar dentro dos vasos sanitários].

Depois da barraca, que tinha um cachorro chamado Vilão e que também já havia me mordido, vinha a ladeira do alemão, onde havia uma chácara de gente rica. Essa estrada tinha duas fachas paralelas feitas com placas de cimento. É que os “alemães” tinham carro, que era uma rural azul com teto e detalhes laterais brancos. Toda criança tinha medo da rural por que diziam que capturavam crianças para fazer maldades ou safadezas. Lógico que na época ninguém imaginaria falar em abuso sexual de crianças e adolescentes, mas já ensinavam que devíamos temer o papa-figo, bem como nunca falar ou aceitar presentes de estranhos. Só sei que essa ladeira era realmente muito alta, mas era o único caminho que podíamos usar porque a outra via era pela pista asfaltada. E esta era considerada perigosa para crianças porque passavam muitos carros. Depois era só atravessar a linha do trem e andar mais uns duzentos metros para chegar à escola. O pior era refazer o percurso de volta, quando já com fome as tais guloseimas pareciam ainda mais tentadoras, e Vilão se mostrava ainda mais feroz.

Quando tocava o sino da escola [sirene] os alunos corriam para formar as filas. Em linhas retas entoávamos os hinos e rezas decoradas. Depois Dona Marival chegava com a tabuada nas mãos. Essas eram umas cartilhas com todas as contas de somar, dividir, multiplicar e subtrair, que deveríamos saber decoradas na ponta da língua. Então ela começava: 02 X 02? E algum sortudo logo respondia: 04. E novamente a voz estridente imperava: 03 X 05? E outro gritava: igual a quinze. Eu rezava que quando chegasse minha vez a pergunta fosse de fácil resposta. Quando acontecia era um alívio, quando não, a régua comia no centro. Quem errava, além do carão [reprimenda] que recebia na frente de todos, era mandado para o final da fila para esperar por uma nova oportunidade. Desta forma, os alunos iam entrando para as salas de aula, um a um. Um estudante “burro” [como muitas vezes éramos chamados] poderia passar a manhã ou tarde toda naquela fila embaixo de sol quente. A senha para a entrada era a resposta correta, sem a qual o aluno poderia ir para o castigo ou voltar para casa. Nos dois casos a mãe sempre era convocada. E lá se iam novamente as pancadarias corretivas.

Lá eu concluir a primeira série. Um ano depois fui transferido para outra escola porque Dona Marival achava que eu era adiantado demais e deveria pular duas séries [acho que eu era uma espécie de aluno superdotado, pelo menos em comparação aos alunos de minha turma]. Como não queria me separar de minha irmã que na época era extremamente tímida e, por isso, sofria mais nas mãos do coronel de saias, não gostei nada da situação. Mas claro que ninguém respeitou minha decisão. Fui então levado por meu irmão Eliel [meu carrasco] a uma escola bem mais distante onde os garotos eram todos maiores que eu. Como não tinha alternativas apelei para o choro. No primeiro dia não adiantou nada, pois achavam que era normal e que com o tempo me acostumaria. Não queria e pronto. Já tinha decidido a garantir a integridade física e moral de minha irmã. No segundo dia repetir a estratégia, e nada novamente. No terceiro fugi da escola e voltei correndo para a sala de Dona Marival, onde concluímos o ano letivo.

O restante do “primário” [como se chamava o ensino fundamental I] nós fizemos na Escola de 1º Grau Ministro Jarbas Passarinho. Assim, passei quatro anos de minha vida numa escola que homenageava um déspota e arbitrário coronel. Era o ano de 1974, mas só muito tempo depois vim a saber que, na verdade, o então Jarbas Gonçalves Passarinho [que nasceu em 1920] era um impetuoso e arrogante senhor de 58 anos, que ingressou ainda jovem na carreira militar e chegou a patente de tenente-coronel durante a queda de João Goulart. Ele tinha entrado para a política graças ao Golpe Militar de 1964, pelo qual foi empossado governador do Pará. Depois se filiou à ARENA [Aliança Renovadora Nacional – partido da posição, criado em 1966] para se eleger como senador no ano em que nasci. Logo em seguida foi nomeado pelos militares para o cargo de ministro do trabalho e previdência social, no governo de Costa e Silva; e, ministro da educação, no governo Médici. Signatário [que significa aquele que assina ou subscreve um documento] do Ato Institucional nº 05, contribuiu diretamente para que, entre outras coisas, se fortalecesse o poder absoluto do regime militar, tornando-se co-responsável pelo fechamento do Congresso Nacional por quase um ano e pela consolidação da censura.

A escola era bem grande e tinha amplas salas de aulas. Essas eram quadradas, feitas em tijolos aparentes pintados de vermelho escuro e telhados no melhor estilo holandês, com quatro cumeeiras [não aprendi direito o nome da figura geométrica que as descreveria melhor porque na época a gente nem estuda isso]. As carteiras eram separadas das cadeiras, o que nos possibilitava melhores condições de locomoção. Elas eram de madeira, forradas com fórmica de cor verde água, e assim mais pareciam vitaminas de abacate ou merda de menino novo. Os quadros eram verde escuro e os professores usavam giz branco para escrever extensas laudas, que logicamente seriamos obrigados a copiar. Aliás, copiar foi o que mais aprendemos em todos aqueles anos.

Depois de escrever tínhamos que ler tudo em voz alta. Ninguém parava para escutar direito o que se estava dizendo por que o importante era integrar-se ao coro. Assim as palavras iam saindo de nossa boca como água de torneira, e no final a professora se dava por satisfeita. Aquilo significava que a turma estava progredindo. Significava que já éramos alfabetizados. E este era o grande objetivo. Naqueles tempos tinha até prova oral. Então eu repetia tudo que havia decorado e pronto. Sempre tirava dez. Mas tinham os alunos que, provavelmente devido à fome, não tinham boa memória e por isso tiravam notas menores. Tinha até quem tirasse zero, ou olho de boi, como a gente chamava. Era um zero bem grande e redondo, com um ponto bem ao centro, escrito com caneta vermelha. É que a cor vermelha significava tudo que era ruim e deveria ser combatido. O vermelho era coisa de comunista e de subversivo. As notas acima de seis, que eram consideradas boas, eram escritas em azul e isso nos enchia de orgulho. Por muito tempo essa discriminação perseguiu as canetas vermelhas, com as quais não se assinava documentos oficiais e/ou importantes, e muito menos os cheques [que vieram bem depois].

Sempre fui muito ruim em matemática [até por que não entendia de lógica], mas a minha professora, que se chamava Lúcia, devia ser muito preguiçosa ou desinteressada. Talvez a dentuça e desengonçada solteirona pensasse que por sermos crianças, seriamos tolos demais para não perceber que os exercícios aplicados eram sempre os mesmo. Desta forma era só voltar às páginas do caderno para encontrar as mesmas operações matemáticas da multiplicação, divisão, subtração e soma. Bastava apenas copiar tudo novamente e mais notas azuis encheriam nossas cadernetas. Neste sentido, estudar até que não era tarefa difícil pra ninguém. Tinha ainda uma professora baixinha e obesa que nos ensinava religião. Não pensem que falo de religiosidades. Eram apenas as velhas histórias de Eva e Adão, Maria e José, Cristo e Madalena, Sansão e Dalila, e tantos outros personagens históricos criados pela igreja católica. Ela parecia um sapo com aqueles óculos com fundos de garrafa. Suas roupas eram sempre tom sobre tom, meio verde oliva. Sentava atrás do birô, puxava seus livrinhos de histórias melodramáticas e piegas e lá íamos novamente aos longos textos que devíamos copiar. Para se ter uma idéia de como a coisa era absurda, a disciplina de religião tinha prova e até reprovava. Ou seja, tínhamos que aprender todas aquelas historinhas cheias de lacunas inexplicáveis que não nos serviriam muito para a prática profissional futura [pelo menos na minha experiência].

Nossos cadernos eram entregues pelo governo do Estado e vinham do ministério da educação. Eles eram pequenos, com metade das páginas brancas e outra metade amarelas. Nunca entendi o motivo, mas achava que era para facilitar a divisão das matérias. Nas capas havia uma bandeira do Brasil, e no verso, o hino da bandeira [e lá estava novamente o “... querido símbolo da terra, da amada terra, do Brasil”]. Era preciso encapá-los com papel madeira e mantê-los impecavelmente limpos e sem dobraduras. Como éramos pobres, usávamos o papel que embrulhava os pães. Era quase da mesma cor e por isso poderiam passar despercebidos a todos, menos a nós mesmos. De qualquer forma, aquelas embalagens diferenciadas pareciam revelar nossa condição socioeconômica. Estes mesmos papéis, algumas vezes, nos serviram inclusive como espaço para anotações escolares devido aos atrasos e/ou insuficiência dos cadernos, distribuídos também no mandato de Moura Cavalcanti [político filiado a ARENA, que se tornou governador biônico do estado de Pernambuco entre 1975 e 1979, indicado pelo então presidente da república General Ernesto Geisel].

Não sei na verdade como minha mãe conseguia tais cadernos, mas se bem me lembro a transação se dava através de uma tia nossa que trabalha em uma repartição pública. Ainda não existiam os kits-escolares e por isso nem todo mundo tinha acesso àquela doação “generosa”. Como estávamos na década de setenta, já imperava a “lei do jeitinho brasileiro”, criada pelo então jogador da seleção brasileira Gerson. Na época havia um comercial onde ele aparecia fumando. Depois de uma longa tragada, em certo momento, o factóide olhava para câmera e proferia a célebre frase: “Eu gosto de levar vantagem em tudo”. Desta forma, o representante do sucesso, devido a copa de 70, contribuiu diretamente para introjetar na cabeça dos brasileiros uma marca que se tornaria característica de uma sociedade corrupta e marcada pelas desigualdades sociais.

Nossas fardas eram batas brancas que chegavam até a cintura, com bolsos que continham a impressão da escola. Era um brasão impresso em cores preto e amarelo, com duas canas ao lado. Estes bolsos eram comprados na escola e sem eles nosso fardamento ficava incompleto, motivo pelo qual nos era negado o acesso. Os calções dos meninos e saias lisas das meninas eram azuis e batiam nos joelhos. Os sapatos eram congas azuis, que se não me falha a memória eram de lona resistente. Nossos fardamentos tinham que durar anos e anos, por isso precisavam ser preservados. Muitas vezes chegamos a usar os sapatos já apertados devido ao desenvolvimento físico natural e ao aumento da idade. Em decorrência do uso intensivo os mesmos rasgavam ou apresentavam buracos que possibilitam a liberdade desejada pelos dedos, contudo, eram utilizados quase até puir sob nossos pés. Outra diferença clássica que revelava a falta de luxos era a tal da lancheira. Toda criança tinha, menos a gente. Elas eram arredondadas ou quadradas, nas cores rosa e azul para marcar bem as diferenças de gênero. Tinham uma alça que se fechava com uma presilha ou botão de pressão. Em um dos lados superiores havia um orifício por onde se colocava a garrafa de suco. Nós também não tínhamos sucos, refrigerantes ou água para levar para a escola. Nossos lanches consistiam em bolachas Cream Cracker ou pão com manteiga e uma banana, que enrolávamos em papel de pão [o mesmo que cobria os cadernos] ou, em ocasiões especiais, em guardanapos de pano. Esse lanche podia também, de acordo com a situação financeira do momento, vir recheado com fatias de doces em barras, ovos fritos ou fritadas.

Quando começaram a servir merenda nas escolas à coisa melhorou um pouco. Tinha época que o cardápio até era variado. Assim a gente podia ter sopas de verduras, arroz doce [que sempre detestei] ou paçocas, que eram servidas em copos de alumínio. No intervalo fazíamos filas extensas e esperávamos a nossa vez para ser servidos pelas auxiliares de cozinha, ou copeiras. Teve um tempo que a situação ficou tão ruim que o arroz servido mais parecia dentes cariados. Esse arroz que vinha da China, e que era quebradinho, quando cozinhados no melhor estilo “todos unidos venceremos” [lema do governo], também nos lembravam tapurus – daqueles que dão em goiabas apodrecidas. As rodelas de tomates e demais legumes e verduras eram tão mal cortadas que pareciam pneus de carros de tão grandes. Confesso que apesar da fome e da ausência era difícil ingerir aquilo e se sentir feliz. Quando tinha macarronada, aí é que a coisa pegava. E pegava mesmo, porque difícil era soltar os fios de tão grudados que vinham. Tinha uns bem grossos com buraquinho no meio. Esse era legal porque dava até para brincar com eles. Quando faltava suco a gente recebia o caneco com água mesmo. Acho que a idéia de que coisa para pobre pode ser mal feita sempre imperou nas escolas, e mantém até os dias atuais.

Bom, quanto aos materiais didáticos, nossos lápis tinham que render até o fim. Parecia toquinhos que a gente precisava prender entre os dedos para poder escrever. As borrachas eram de acoplar e ficavam nas pontas dos lápis da Faber Castel. Com o tempo elas desgastavam e perdiam as cabeças. Roídas, ficavam parecendo um anel na extremidade dos grafites. Também não tínhamos lapiseiras que eram exigidas nas escolas. Por isso fazíamos as pontas de nossos lápis sempre em casa, usando giletes velhas do estojo de barbear do meu pai, ou mesmo peixeiras afiadas. Livros nunca chegamos a comprar. Quando muito, tínhamos a sorte de receber os usados por algum parente, velhos e já respondidos. Como eram proibidos nas salas de aula, copiávamos de algum colega e fazíamos os deveres em nossos cadernos. Época de prova era um inferno porque tinha assunto que só constava nos livros, e não existiam bibliotecas como hoje em dia. E assim, lá íamos importunar novamente os colegas e perder o recreio copiando o máximo que conseguíssemos.

As bolsas para colocar os materiais também eram cobradas constantemente e sempre tínhamos que explicar suas ausências. Para resolver a questão, certo dia, fomos na casa de uma tia. Ela tinha a solução para nossos problemas. Para minha irmã Lígia era doou uma bolsa de gente adulta, que era de nylon branco e acolchoado. As grossas costuras formavam colchõezinhos. Na superfície superior tinha um friso dourado, já descascado, que possuía uma presilha formada por duas bolinhas metálicas e que precisavam ser pressionadas uma sobre a outra, até travar. A correia era do mesmo material recheado, adornado por um fio dourado. Em suma, era um “cão chupando manga”, como se dizia. E ninguém de bom senso usaria uma desgraça daquelas para ir para escola. Eu fui presenteado com uma pasta surrada e cafona, estilo 007 ultrapassado. Era de couro, ou imitação barata do mesmo. Tinha umas alças para se carregar pelas mãos. Acho que a miserável batia nos meus pés de tão grande. Lembro que como parte do couro estava rasgada, ficava aparecendo à espuma [que a gente chamava de bucha] amarela que a revestia. Definitivamente, diante das ofertas preferimos continuar levando os materiais nas mãos e ouvir as constantes reclamações por parte dos insensíveis profissionais e educadores da escola. Era melhor do que passar por ridículo. Penso que apesar das boas intenções, as pessoas "caridosas" sempre pecam por achar que pobre não pode ter orgulho, e muito menos, noção de estética.

Para chegarmos até a nova escola era preciso pegar ônibus. Como éramos pequenos e raquíticos não havia problemas em passar por baixo das borboletas [como se chamava as catracas, onde se pagava as passagens]. Sempre aprendemos que criança tinha que ceder o assento aos mais velhos. E isso era triste porque criança também cansa, principalmente quando tem que andar muito até as paradas, e lá esperar até que um motorista consciente lhe abra a porta e lhe conceda a entrada. Ao passo que íamos crescendo ficava cada vez mais difícil andar sem pagar. Começaram então as criticas e reclamações por parte dos cobradores. Acho que eles não deviam ter filhos, ou se tivessem, provavelmente não estudavam. Tinha uns que implicavam e não nos deixavam passar. A gente tinha que descer dos ônibus feito animais escorraçados. Quando só tinha criança na parada nem adiantava dar a mão porque ônibus nenhum parava. Para resolver o problema, minha mãe conversou com o dono da padaria onde comprávamos pão todo dia. A gente então saia mais cedo de casa, andava pelo menos meio quilometro e pegava bigu [carona] na caminhonete. Era uma Chevrolet verde escuro, eu acho. Eu, minha irmã, Nete e Tinho [visinhos, colegas de turma] andavam no bagageiro junto com os vários cestos de pães que eles entregavam nas barracas pelo caminho. Senhor Artur era um velho português gente boa. Era “buchudo” [barriga grande] e tinha um bigode grosso e grisalho. Depois de um tempo fomos proibidos porque tinha fiscalização nas estradas. O ano em que fizemos a quinta séria do primário andamos a pés. Eram quase dois quilômetros de distância, que aos onze anos, eu tinha que fazer sozinho todos os dias, ida e volta. Minha irmã tinha passado para uma turma diferente e eu agora tinha que me virar por conta própria.

Como sempre fui uma criança diferente, seria natural que me tornasse alvo de perseguições por parte de outros alunos. Tais brincadeiras e perseguições hoje seriam entendidas como bulling. Mas naqueles tempos a violência nas escolas era desconsiderada. Imperava a lei do mais forte. Conviver com as diferenças era um desafio constante e exigia estratégias de sobrevivência. Dessa forma, me tornei “aluno colaborador”. Era na verdade, uma espécie de auxiliar, ou fiscal mirim das boas condutas. O importante é que como aluno colaborador eu ficava imune porque tinha privilégios e poderes. Éramos alunos exemplares e por isso podíamos “dedurar” os mal educados, que seriam expulsos, suspensos ou colocados de castigos. A gente recebia um fardamento diferenciado. Era uma camisa de malha branca, com as letras A e C entrelaçadas, na cor verde cítrico. Isso nos conferia status e respeito. Meus principais inimigos se chamavam Denílson e Lima. Eles eram os verdadeiros representantes do capeta. Com meu escudo de proteção me tornei caçador e fui à forra. Através de algumas estratégias bem elaboradas não demoraria muito a expulsá-los da escola. Assim, passei a comungar da filosofia de que “todo oprimido se torna um opressor quando detém o poder”, e transformei velhos adversários em aliados, ou em inimigos vencidos.

Concluir o ensino fundamental I no final de 1977, ano em que estreava os grandes sucessos cinematográficos “Guerra nas Estrelas” e “Os Embalos de Sábado a Noite”, que marcariam uma geração inteira. A presidência da república continuava ocupada pelas forças armadas através do General Ernesto Geisel, que permaneceu no poder até 1979, período em que sua foto, em moldura dourada, ornava as salas de diretorias e coordenações nas escolas públicas. Neste sentido, lembro que uma vez, o então temido coronel visitou nossa escola. Foi um dia diferente e angustiante. Tudo deveria está muito limpo e organizado para a chegada da comitiva oficial. Até pintamos a escola e alguns alunos exemplares receberam fardamento completo. Fomos obrigados a formar filas na área de convivência e lá permanecemos pela tarde inteira. Os arredores e muros da escola estavam repletos de pessoas que queriam ver de perto o poder blindado dos milicos. Um carro grande e preto estacionou dentro do colégio. Soldados impecavelmente fardados corriam apressados pelos corredores acompanhando uns poucos homens, que nem conseguíamos ver, mas que eram alvo de todas as atenções. Na verdade nem sei se o presidente estava realmente ali. Mas nunca tinha visto tanta pompa e tanto bajulador lamber os sapatos de um só homem. Aquela cena me ficou marcada como símbolo do perigo que representa o poder centralizado. Poucas horas depois, do mesmo jeito que chegou a comitiva partiu, enquanto os pobres e mortais alunos permaneceram nas filas à espera do nada. Cansados, cantamos o hino nacional e todos os demais que tínhamos ensaiado e depois fomos liberados. Um ano depois seria liberado daquela escola para sempre.

O ano seguinte marcaria o meu ingresso em um novo mundo, maior e repleto de novidades proporcionadas pelas descobertas de um pré-adolescente. No final de 1978, fui transferido para a Escola Monsenhor Francisco Sales, localizado na Rua Oliveira Lima, centro do Recife; Marco Antonio de Oliveira Maciel seria nomeado governador biônico do Estado; o Fantástico anunciaria o nascimento de Louise Browm, em Londres, o primeiro bebê de proveta do mundo; João Paulo II se tornaria o primeiro papa não italiano em 445 anos; seria lançado no Japão o primeiro computador pessoal; seria descoberto um satélite no planeta Plutão; e, por fim, seria abolido o AI 05, decretado pelo então presidente, em 31 de dezembro.

É isso. No período da palmatória a destituição da censura, a educação tornou-se também empobrecida e deficiente. Hoje sentimos nas salas de aulas e nos campos profissionais os prejuízos causados por décadas de arbitrariedades e desrespeito aos direitos e a cidadania. Mas, como diria o matuto, “meu cumpadre, isso são outros tempos”, o que logicamente, irá requer outros capítulos.

Um comentário:

  1. A Dona Marival. Da sua narrativa ainda esta viva, ela ë minha irma mais velha. Achei interessante, eu tambem passei pelo seu sistema de ensino da epoca. E apesar de ser irmao, ela não perdoava erros, kkkk.

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