sábado, 21 de maio de 2011

EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES - A INVISIBILIDADE DOS MENINOS




Epitacio Nunes em Oficina para
Técnicos do Município de Aliança - Mata Norte.
PROJETO HISTÓRIA DE MENINO
REFLEXÃO SOBRE O DIA NACIONAL DE COMBATE A EXPLORAÇÃO SEXUAL

 

Era 18 de maio de 1973 quando a televisão divulgou terem encontrado o corpo de uma criança que havia desaparecido. Eu tinha sete anos, um ano a menos que a garota da reportagem. Na época crianças não assistiam televisão até tarde da noite. Mas lembro das notícias que chocaram a sociedade brasileira. Na verdade nem sabia do que se tratava direito. Apenas que uma menina tinha desaparecido e déias depois encontrada morta. Havia um clima de mistério na história. Ninguém nos explicava nada. Até porque, talvez, não houvesse explicações. Não havia informações claras sobre o acontecido. Desconfiava-se do envolvimento dos pais e as acusações apontavam para jovens da classe média da cidade de Vitória. Para mim aquele lugar parecia distante, até porque nunca tinha ouvido falar sobre o estado do Espírito Santo. Talvez por isso a situação me fosse alheia.

Lembro ainda que a notícia serviu para reforçar junto as crianças de minha idade a imagem perigosa do papa-figo, criatura estranha que capturava meninas e meninos para comer-lhe o fígado. Nunca tínhamos visto um papa-figo, e de certo modo, a figura lendária fazia parte de nosso imaginário e até nos divertia. Éramos crianças e logicamente não tínhamos as informações completas. O caso de Araceli Sanshes nos parecia algo realmente estranho e distante, e neste caso, o papa-figo assumia a imagem humana. Então, a papa-figo era homem? Existiam homens que comiam os fígados de crianças? E porque eles faziam isso? Essas e tantas outras perguntas ficavam no ar. Criávamos nossas próprias explicações através de deduções advindas de conversas entrecortadas, que por vezes, conseguíamos ouvir escondidos.

Anos depois, descobri que Araceli Sanshes tinha sido vítima de violência sexual. Ela tinha oito anos quando foi capturada, torturada, espancada, estuprada e morta por um grupo de jovens de classe média. Seu corpo foi encontrado carbonizado e seu rosto havia sido queimado com ácido. Dezoito anos depois os acusados foram levados a julgamento e foram absorvidos. Era 1991 e eu tinha 25 anos, estava na faculdade e era uma pessoa independente. Araceli Sanshes teria uma ano a mais, talvez tivesse se formado, talvez fosse mãe, talvez tivesse tido outras possibilidades de vida. Fato é que crianças têm sempre destinos distintos e algumas contam com uma coisa que se poderia chamar de sorte. Logicamente que nessas questões existem variáveis e fatores que vão além da simples sorte ou destino, mas aquela criança entrou para a história da forma mais brutal e inconcebível. Histórias que se repetem sejam no sul ou no nordeste do país. E aqueles jovens agressores, hoje provavelmente homens de sucesso e pais de família integram um grupo ou segmento da sociedade que si guiam por conceitos sociais e regras normativas diferenciadas. Fazem parte de um segmento que até hoje se prevalece e se beneficia por uma outra modalidade de lei: a da impunidade.

Vinte sete anos depois do assassinato instituiu-se no Brasil o 18 de maio como Dia Nacional de Combate a Exploração de Crianças e Adolescentes, através da Lei nº 9.970/2000. Araceli Sanshes teria 35 anos de idade, e é uma pena que só seja lembrada uma vez por ano. Pior ainda é saber que não se comemora sua dada de nascimento, mas ao contrário, sua data de morte nos serve para repensar nossas responsabilidades e atitudes diante da impunidade. Estima-se que a cada 15 segundos uma criança seja vitima de violência sexual no Brasil, porém parece que os esforços são mínimos diante do poder estratégico das redes de exploração sexual de crianças e adolescentes que integram o terceiro maior negócio do mundo, só perdendo para o tráfico de armas e o tráfico de drogas.

Assim, o 18 de maio não me serve como data comemorativa de avanços, mas como referencial de fracasso, uma vez que milhares de crianças e adolescentes continuam sendo abusadas e exploradas sexualmente cotidianamente no Brasil. Salientamos mais uma vez, a necessidade de se pensar em políticas públicas mais eficazes, voltadas ao atendimento e assistência dos meninos, também vitimas dos abusos e exploração sexual. É neste sentido, que apresentamos abaixo mais alguns dados de nossos estudos atuais, que buscam retirar da invisibilidade a inserção e envolvimento de meninos no comercio do sexo pago.


A INVISIBILIDADE DOS MENINOS NOS ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES.

Este texto é parte integrante do artigo: A Invisibilidade do Masculino nos estudos sobre exploração sexual de crianças e adolescentes, não podendo ser reproduzido, integralmente ou em parte, sem prévia autorização.

Por: Epitacio Nunes de Souza Neto – Mestre em Psicologia pela UFPE.
Normando José Queiroz Viana – Mestre me psicologia pela UFPE.

Normando Viana em oficina para técnicos do município
de Lagoa de Itaenga - Mata Norte
PROJETO HISTÓRIA DE MENINO


Exploração Sexual de Meninos: Um Novo Fenômeno?

Ao se acessar a internet, constata-se grande quantidade de sites destinados a divulgação da pornografia infantil onde os meninos, na mesma proporção que as meninas, encontram-se expostos a simulações ou práticas sexuais entre si e, também com adultos. Há muito se atribui a tal ferramenta a responsabilidade pela disseminação desta modalidade de exploração sexual e consolidação das redes de “aliciamento” de crianças e adolescentes. Porém, lembramos que quando crianças éramos sempre aconselhados e alertados, por nossos pais e parentes adultos, sobre os riscos eminentes ao “papa-figo” , que capturava criancinhas para comer seus órgãos. Também corríamos riscos eminentes em relação aos “tarados” que pegavam as crianças para fazer “safadezas” . Naquela época não tínhamos internet, mas as informações eram repassadas através de conversas e reprimendas. Já existia um cuidado com a honra e a integridade emocional, e logicamente sexual dos menores, evidenciando que o fato de crianças e adolescentes serem abusadas e exploradas sexualmente não se apresenta como fenômeno da era digital.

Nesse sentido, a internet amplia para a sociedade uma realidade inerente a um fenômeno social que busca se adequar as mudanças e diversidades de cada época, uma vez que na era da informação instantânea, temos que nos adequar e aprender a lidar com fatos e acontecimentos, muitas vezes divulgados em tempo real. Assim, esta se apresenta como canal de maior poder de abrangência e velocidade de atualização e comunicação, que podem ser utilizadas com os mais diversos propósitos. Não queremos, contudo, negar as possibilidades que os agenciadores e promotores da exploração sexual encontram em tal ferramenta. Porém, pretendemos chamar atenção para o fato de que a internet, através dos sites de conteúdo pornográfico envolvendo meninos, evidencia uma realidade que parece contraditória aos dados oficiais, pesquisas e estudos científicos, que parecem omitir o envolvimento desses no âmbito da exploração sexual.

Tal incoerência parece fundamentada no fato de que culturalmente, tanto a prostituição, quanto a exploração sexual de crianças e adolescentes foram institucionalizadas como fenômeno e problema social especifico do feminino, sobre o qual, muitas pesquisadoras focaram suas análises, tanto que, o estudo sobre a prostituição mostra-se marcado pela questão de gênero, onde as pesquisadoras estudam as mulheres (Rago, 2001; Pasini, 2005, Pereira, 2005, Russo, 2008), e os pesquisadores, por sua vez, os homens (Perlongher, 1987; Rios, 2004; Souza Neto, 2009; Queiroz Viana, 2010).

Especificamente em relação à participação ou envolvimento de crianças e adolescentes na prostituição, a análise tem se configurado sempre na perspectiva da exploração sexual. Não pretendemos obviamente negar, e menos ainda ignorar, a questão socioeconômica como um dos principais fatores que contribui para a inserção de crianças e adolescentes das classes populares nesta modalidade da exploração sexual. Mas, pretendemos chamar a atenção para o fato de que este não se apresenta, muitas vezes, como único elemento constitutivo. É preciso considerar que no cenário sociopolítico que se apresenta como modelo econômico adequado ao desenvolvimento do país, pautado na exploração da força de trabalho humano, a prostituição tem se constituído enquanto atividade passível de remuneração rentável e imediata. Neste sentido, não será difícil imaginar que para alguns adolescentes a prática do sexo comercial possa ser resignificada como possibilidade de acesso ao “mundo dos ricos”.

Também é impossível desconsiderar que a prostituição tenha seus encantos e elementos de sedução. Elementos estes que destacaremos através de trechos de entrevistas que realizadas com boys de programa que atuam nas ruas do Recife. O primeiro, a quem denominamos de Ítalo, é alto, moreno claro, bonito e se apresentava sempre bem vestido. Hoje com 20 anos é reconhecido como “dono do ponto” . Diz que sua iniciação sexual foi “comprada” por um amigo mais velho, quando tinha dezesseis anos. Ao ser questionado sobre o que pensa a respeito da prostituição, diz considerá-la como “uma forma de ganhar dinheiro fácil”.

Rapaz foi bem dizer com um amigo meu. Ele bem dizer me comprou. Agente estava conversando. A gente estava ali e ele perguntou e tal e disse: eu te dou um negócio. Eu disse: só se for agora. [...] Uns quinze anos mais velho que eu. Uns 35 anos ou mais velho. [...] Aquela coisa, estava trocando umas idéias. E ele marcou. Tá bom! Vamos marcar mais tarde. Quando a gente viu estava num motel e aconteceu (Ítalo, 19 anos, boy de programa; In. Souza Neto, 2009).

Importante destacar, que também contrário ao senso comum da sociedade, Ìtalo residia com sua família e na época se declarou envolvido com sua companheira, configurando uma relação afetivo-amorosa estável. Apesar de morar em uma comunidade popular, situada à margem do centro de Recife, alega que a questão econômica da família não foi o motivo para sua inserção na prostituição. Neste sentido, diz que “a coisa foi acontecendo”. Outros parceiros sexuais foram se apresentando e, com eles as possibilidades de ganhos “fáceis” que encontrava na “putaria”, tais como, presentes, noitadas e “orgias sexuais”, que obviamente, proporcionavam prazer.

Em outro depoimento, Marcos, 18 anos, alto, branco, cabelos castanhos, bonito e classe média, diz ter sido levado a prostituição por um amigo. Quando questionado sobre o que pensa do fato de fazer programa, ele reflete:

[...] Como assim, fazendo programa? Eu sei que isso não é certo. Porque se meus pais souberem vão perguntar se está faltando alguma coisa em casa e certamente eu sei que não está. [...] E também assim, eu jamais iria dizer, porra pai, porra mãe, eu sou um garoto de programa. Eu nunca iria dizer isso (Marcos, boy de programa)

Marcos traz a tona os sentidos do prazer proporcionados pelo sexo comercial. O programa torna-se ressignificado em curtição, o que possibilita a vivência de sua sexualidade longe do controle familiar e social. Residindo em um município distante de Recife, encontrou nas ruas do centro da Boa Vista, o local ideal para a descoberta dos limites pessoais. No programa, o fator monetário assume o papel de mediador dos desejos e possibilidades. Uma espécie de passaporte de autorizo para as condutas e posturas sexuais que compõe o processo de iniciação e desenvolvimento sexual de alguns homens.

[...] Porque é dinheiro fácil e tal. E às vezes assim, eu estava sem dinheiro. Minha mãe não me dava, meu pai não me dava, dizia que eu devia trabalhar. Por isso. E aí eu disse: naquele dia eu ganhei dinheiro tão fácil, ai eu acho que vou de novo prá lá... E eu terminei me acostumando, me adaptando, e acabei assim. Mas eu sei que isso não é futuro pra ninguém, entende? Eu tenho que correr atrás dos meus estudos, como eu tô correndo [...] Mas isso é tipo, só uma curtição que eu saio só pra curtir mesmo. Eu saio só prá me distrair, mesmo, pra sair, pra curtir a noite. Mas assim, do tipo, se sou um garoto de programa? Sou mais só que eu não dependo disso pra sobreviver, prá levar dinheiro prá casa porque meus pais estão precisando, não. E só pra mim mesmo (Marcos, boy de programa).

Marcos, da mesma forma que Ítalo, irá se diferenciar enquanto categoria especifica de boys de programa, pela situação socioeconômica de suas famílias. Apesar de suas semelhanças em pensamentos e percepções relativas à prostituição, ressignificada como lugar de possibilidades de ganhos monetários, curtições, desejos e prazeres sexuais, revelam diferentes concepções conceituais relacionadas à suas permanências e manutenção no mercado sexual. Enquanto Marcos evidencia que seus atos não são “dignos de um homem”, talvez por reprovar e negar um desejo homossexual latente, várias vezes evidenciado na continuação de seu discurso, Ítalo por sua vez, ver na prostituição as possibilidades de futuro empreendedor através do agenciamento e da exploração de outros boys de programa. Nos dois casos relatados, observa-se que a própria concepção de prostituição como forma de ganhar dinheiro fácil, torna-se também ressignificada, ganhando contornos subjetivos, bem como, sentidos e significados diferenciados para cada sujeito (Queiroz Viana, 2010).



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