terça-feira, 24 de maio de 2011

A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E AS CHUVAS DO RECIFE

População em situação de rua do Recife
Rua do Hospício.



RECIFE - A INUNDAÇÃO DA VENEZA BRASILEIRA

Sempre ouvir dizer que Recife é a Veneza brasileira, cortada por rios que margeiam monumentos históricos. Neste sentido, a cidade é realmente linda e encantadora, não sendo raro se ver velhos pescadores jogando suas redes de cima das pontes. Cenas poéticas dignas das sessões de arte no Cine São Luiz, que de frente a ponte Duarte Coelho compõe o cenário bucólico de um iluminado final de tarde. Como diria o velho poeta, “Recife tem encantos mil”. Ruas entrecortadas pelo comércio ambulante, calçadas coloridas, grandes espigas de concreto armado que se misturam aos sobrados do passado e revelam grande diversidade em estilos arquitetônicos. A metrópole é uma espécie de galeria de arte a céu aberto. Um acervo de esculturas se espalha por suas ruas, avenidas, praças, contrapondo-se a aridez do asfalto e a asfixiante fuligem cinza que a tudo e a todos impregna.

E mesmo nestes dias de chuvas torrenciais, Recife tem revelado situações inusitadas e encantadoras, como o fato de beija-flores invadirem nossas janelas insistindo em colorir velhos prédios sujos e repletos de roupas em varais que flamulam aos ventos. Sim, na minha janela tem beija-flores. É que no apartamento ao lado existe um canteiro com flores tropicais. Foram eles que chamaram minha atenção para o fato de meu vizinho, [que mal conheço] cultivar plantas nas janelas. Não chega a ser um jardim encantado da Babilônia, mas encanta pela singeleza e sensibilidade. E nele pássaros parecem brincar, sugando o néctar dos deuses. Ah, que saudades de minha infância entre plantas e bichos, onde corria com meu cachorro em terreno repleto de “amarelinhas”, subia em árvores frondosas e observava ovos nos ninhos. Se no passado distante os verdes campos nos serviam de alento, hoje me contento em observar o revoar de pombos, rouxinóis e beija-flores que atravessam a avenida em vôos rasantes e lentamente pousam sobre fios de alta voltagem. É, Recife tem dessas coisas. Beleza e repugnância dividem espaços; felicidade e tristeza se alternam em momentos simultâneos; sutileza e ignorância co-habitam suas ruas.

Mais uma vez plagiando o Rei do Brega Reginaldo Rossi, diria que “o Recife, eu sei, tem muitas belezas”. Mas também tem sérios problemas comuns aos grandes centros urbanos, sendo o principal deles a administração pública atual. Ontem, por exemplo, desci desavisadamente as ruas e não consegui seguir caminho. Seria necessário barcos ou balsas para atravessar a Avenida Conde da Boa Vista, principal corredor que corta a cidade. A chuva em si não era tão intensa, mas constante o suficiente para transbordar pelas calçadas e invadir as recepções dos prédios. O que era limpo e cheiroso tornou-se sujo e fétido. O que era tranquilidade, mostrou-se fatídico, sinistro e trágico. Claro que em nada se comparava aos tsunamis, mas havia ondas que formavam marolas que se quebravam nas lojas que insistiam em não fechar suas portas, e que por isso também, serviam de abrigo a quem aguardava os ônibus. E esses sim, faziam a festa. Em alta velocidade, veículos provocavam verdadeiros maremotos que espalhavam lixo e lama que transbordavam das caneletas entupidas [Acho que é melhor avisar a prefeitura para limpar as ruas e desentupir as canaletas?]. Pessoas molhadas e meladas revelavam a indignação comum a quem paga altos impostos e se vêem desrespeitadas em seus direitos. Era o caos de uma cidade relegada e entregue as traças. E lógico que isso é figura de linguagem, até porque traças não tinha, mas em compensação, os ratos corriam desesperados sobre pés montados em altos e finos saltos.

População em stiuação de rua no Recife
Rua do Hospício
E tinha também cachorros velhos e rabugentos que disputavam a tapa com gente grande um pequeno espaço seco abaixo das marquises. Era uma verdadeira celeuma entre humanos e animais. Ninguém sabia quem era quem [se é que existe grandes diferenças para os políticos?]. Ninguém sabia quem estava mais desprotegido. E pasmem! Havia uma criança recenascida no meio do tumultuo. E explico para que entendam melhor. É que abaixo de meu prédio, há poucas semanas uma família inteira decidiu se abrigar no local [lógico que o verbo decidir é liberdade poética]. E quando falo inteira, me refiro a mulher, esposo, dois filhos – um adolescente com transtorno mental e um bebê; além de um cachorro vira-latas. E acreditem, faça sol ou faça chuva eles pernoitam entulhados a várias outras famílias, idosos, crianças e adolescentes. Mas também não pensem que tudo é desgraça. Não. Podemos até dizer que eles usufruem de certos luxos e comodidades. Alguns até têm colchões e cobertas. Outros possuem mais de uma peça de roupas e sapatos. E quanto a comida, sempre existirá os assistencialistas religiosos ou caridosos cidadãos que em busca de um espaço garantido nos céus entreguam sopa. Quem vive nas [e das] ruas sabe que a cada dia o alimento sagrado é entregue em ruas direntes. Assim se deslocam e compartilham da caridade daqueles que voltam para casa e dormem tranquilamente protegidos do relento. Quanto a diversão, bem, muitos durante a noite formam rodas de conversas regadas a cola e crack [nem tudo é maravilha]. Mas não precisam se chocar porque o bebê dormia tranquilo e seguro em meio a papelões cuidadosamente arrumados no interior de uma carroça que lhe serve de berço.

Mas até aí qual o problema? Afinal de contas, Cristo não nasceu em uma estrebaria e dormiu em uma manjedoura? O problema é que na bíblia não tem chuva transtornando a vida dos morimbundos. E também não tem famintos, que desprotegidos perambulam pelas ruas dos grandes centros. Mas Recife tem. Tem rua esburacada. Tem saneamento comprometido. Tem violência. Tem gente passando fome. Tem crianças e idosos sem tetos. Tem tráfico de drogas. tem corrupção e descaso. E tem muita estupidez política. Recife não tem só encantos, mas tem problemas mil. Mas o bebê parecia dormir tranquilo [menos mal, porque criança desprotegida quando chora tira o sono da gente, não é mesmo?]. Misteriosamente ela estava calada e tranquila [será que estava dopada, ou melhor, drogada?]. Talvez seja besteira perder tempo com esses pensamentos infundados. Além do mais, o fato de dormir nas ruas não é privilégio dessa única família. De jeito nenhum. A noite do Recife deveria mesmo servir de laboratório aos estudiosos e gestores das políticas públicas. Acho até que serviriam como campo de pesquisas sobre a tão falada resiliência humana.

Imagino que um pesquisador ficaria eufórico com tantas opções de recortes diante de tão farto material de análise. Para quem conhece a Rua da Imperatriz, por exemplo, a cena noturna parece dantesca de início. Mas depois, com relativo esforço a gente acostuma a visão e passa a perceber detalhes valiosos para análise qualitativas. Pode-se pesquisar gênero, raça/etnia, formação de grupos sociais, processos de socialização, transtornos mentais, infância e delinqüência, gravidez na adolescência ou uso de substâncias psicoativas entre jovens das periferias, e mais uma variedade de fatores e fenômenos sociais peculiares e inerentes a população em situação de rua. Ah, tem também a Rua José de Alencar, no trecho entre a Av. Conde da Boa Vista e a Rua do Riachuelo, e a Rua do Hospício que desemboca na Imperatriz. Mas talvez a mais harmoniosa seja a Rua da Aurora, onde dezenas de pessoas dormem sob a relva dos jardins mal cuidados que margeiam o Rio Capibaribe.

Nesse aspecto, penso que um fato que pode chamar a atenção e despertar o interesse acadêmico [até porque político não se interessa por essas coisas] refere-se à violência doméstica. Sim. Até porque se pensarmos que as ruas se tornam espaços de convivência familiar para essas pessoas, a violência que se apresenta e se desenvolve a olhos claros nas ruas do Recife, envolvendo membros de uma mesma família, pode ser entendida enquanto violência doméstica [Ou não? Será isso mesmo? Quem se habilita a discutir o assunto?]. E quanto a pesquisar estruturas familiares? No caso do bebê recenascido mesmo, será que sua família se enquadra no modelo patriarcal-burguês, composto por pai, mãe e filhos? Ou será observada enquanto família desestruturada, como tanto gostam de classificar os gestores e técnicos das políticas públicas? Pessoalmente prefiro concordar com um velho amigo de pesquisas, o Normando Viana, que diz que a classificação “família desestruturada” refere-se diretamente a qualidade das relações sociais e afetivas entre os membros de uma mesma família e não a suas estruturas de composição. Mas como se diz por aqui, essa discussão dará panos para as mangas.
Enchente em Paudalho - RD Mata Norte de Pernambuco

Caso não se sintam a vontade com a violência doméstica, ainda resta uma outra modalidade: a violência sexual. Será que é por isso que quem habita as ruas não dorme durante a noite, ou mesmo, só dorme de bruços? Penso que talvez essas pesquisas possam embasar políticas públicas mais estratégicas e eficazes, ou ainda para evitar que se fale tanta besteira nos meios políticos repletos de demagogos que parecem nada entender sobre direitos humanos [de assistência e educação social, e muito menos de gente]. Será que nos planos governamentais de proteção as populações atingidas pelas chuvas alguém já pensou na população em situação de rua, ou será que este segmento permanecerá invisibilizado diante das urgências e gravidades das tragédias previsíveis? A tomar pelo exemplo do centro do Recife, penso que se fará necessário a divulgação de dramas familiares nas redes de TVs. Até porque nos acostumamos a “só fechar a porta depois de roubados”. Talvez a calamidade exposta em horário nobre desperte mais interesse e ação por parte dos responsáveis [E quem sabe até gere novos pontos no ibope e até novos recursos financeiros]. De qualquer forma, não dizem que depois da tempestade vem sempre à bonança? É esperar para ver. É ver para crer. Quem sabe até a próxima chuva. Quem sabe até a próxima morte. Quem sabe até que o povo se revolte e coloque um basta nisso tudo.

Av. Conde da Boa Vista - Carnaval 2011.
Só sei que de hoje em diante minha boia não servirá apenas como adereço do carnaval, mas como kit-de-proteção para enfrentar as tormentas de uma gestão pública tão ineficiente e despreparada. E se conseguir sobreviver as chuvas previstas para o litoral pernambucano, prometo que nunca mais voto em quem dá as costas para a cidade e para o seu povo.

"Olha a chuva! Chuveu. Olha a chuva! Passou!" [Será? Parece que só quem viver, verá].


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