segunda-feira, 4 de abril de 2011

PORQUE EM DIAS DE JOGO NÃO SE DESCE ÀS RUAS.

Helicóptero sobrevoa a avenida.



UM CAMPO DE BATALHAS NA CONDE DA BOA VISTA

03 de abril de 2011 – O dia que ficará para sempre na memória do Recife. Era exatamente 18:30 e os bandos se aproximam da trincheira. Soldados se armavam e o barulho das ruas invadiu minha sala. O zig-zag de hélices metálicas se faz ensurdecedor. Tinha um helicóptero sob minha cabeça e dele vinha uma luz azulada que a todos iluminou. Um facho que bailava em minha janela e como relâmpago clareava o interior de minha privacidade. Funcionou como flashs de máquina potente, hora acendendo, hora apagando, provocando sombras que dançavam nas paredes dos edifícios a minha frente. Me sentir cercado e coagido. A algazarra aumentava e as pessoas corriam amontoadas pela avenida sem destino certo. De todos os lados vinham comboios de carros patrulhas com sirenes que gritavam a reivindicação da ordem. Eles formaram barreiras no meio da rua, e hora por outra arranhavam o asfalto cantando pneus. Milhares de motos pilotadas por homens de preto berravam estridentemente à presença severa da polícia. Era o batalhão de choque. Era preciso reprimir a multidão que se aglomerava e avançava em sinal de conflito. Policiais formaram barricadas e paredões, preparados para o ataque. Voltava à gritaria e vozes se atropelavam em tons de defesa e de acusações. Eram dois times em lados opostos, eram dois povos. Um de frente ao outro. Ambos uniformizados, cada um ao seu modo. Cada um defendendo sua ideologia [se é que existe alguma neste tipo de coisa]. Não existiam bolas. Mas existiam balas.


A tensão aumentava e tomava conta da cidade. Mais uma batalha se iniciara diante dos olhares perplexos e incrédulos. Ônibus superlotados, veículos desviando pedestres que invadiam a pista, edifícios acesos com janelas repletas de curiosos. Todos inocentes, desesperados sem saber o que fazer para se proteger da melhor forma possível. Todos encadeados pela luz azulada que vinha do céu. Quando pedras começaram a voar pelos ares, abrigos das paradas de ônibus e portas metálicas de lojas se tornaram alvos e sofreram as consequencias. Pedra e metal reverberando a intensidade e insanidade da violência urbana. Repetia-se o quebra-quebra insensato e ensandecido de todos os dias de clássicos. Por isso não se pode descer as ruas nos dias de guerra, a não ser para fazer parte da briga. E mesmo sem motivos, ou ainda sem tomar partidos, nos tornamos prisioneiros em nossas próprias celas gradeadas. Não existe paz nos dias de jogo e por isso mesmo até os pombos, brancos ou pretos, fogem em revoadas para os pontos mais altos da selva de concreto armado [e armada]. O helicóptero que acompanhava as multidões também denunciava seus [e os nossos] movimentos. Era a invasão sem distinção dos espaços públicos e privados. Acho que a partir de agora, nos dias de jogo o esplendoroso e onipotente pássaro metálico sobrevoará nossa avenida, alto e inatingível. Fiscalizará as galeras e as nossas vidas facilitando a ação dos camburões de homens armados. Neste dia que entrará para a história do Recife, alguém ditava ordens de comando através de um megafone e fileiras em cor preta davam um passo à frente. Eram soldados preparados para abater caso preciso. De outro lado alguém ditava comandos com voz firme e muitos corriam para o recuo. Avanço e recuo. Hora um. Hora outro. Eram estratégias de guerra que visavam à ocupação de espaços, em pleno centro da cidade.
Av. Conde da Boa Vista
Eram momentos de baderna [como nos muitos dias de clássicos] que transformavam, mais uma vez, a Av. Conde da Boa Vista em cenário de combate. Bem poderia ser um filme de terror, daqueles onde os americanos adoram demonstrar seu poderio bélico. Tudo era muito parecido. Tinha as armas, o fogo nos olhos de homens raivosos e dispostos a lutar. Tinha criança e velhos pagando pela insanidade alheia. E alheios são sempre os inocentes que se tornam, na maioria das vezes, vitimas do destino. Porque é preciso aprender que em dias de jogo não se sai às ruas. É preciso se limitar as janelas e constatar que não há ficção. Pelo contrário, são sempre os mesmos personagens reais perdidos em um roteiro mal escrito e sem direção de arte. Porque não existe arte na violência. E neste dia que marcará nossas vidas, lá estavam eles novamente interpretando seus papéis de vilões e mocinhos, em pleno campo de batalha que se dá no cruzamento diante de minha janela. Nesse roteiro de ação repetitiva, restava-nos apenas a figuração e por isso ficamos inertes e impotentes, apenas compondo a cena. Até porque era apenas mais um dia de hostilidades na Av. Conde da Boa Vista! Mais um dia em que as torcidas organizadas saiam às ruas do centro para extravasar suas glórias ou derrotas. E neste sentido não importa qual o time que ganha, pois que todos perdem porque as mesmas situações sempre se repetem. Confronto entre torcidas organizadas virou modismo em Recife. Talvez seja apenas uma imitação barata de uma realidade que vem do sul. Talvez seja uma realidade nossa a partir de agora. Talvez o helicóptero seja incorporado a nossa paisagem cotidiana. Talvez a gente se acostume tanto quanto os cariocas.

 Penso então, no fato de precisarmos copiar modelos para nos sentir tão fortes quanto, ou quem sabe, tão comprometidos quanto? Será que nos sentiremos mais seguros? De qualquer forma, o importante é que na verdade não entendo de futebol. E muito menos de segurança pública. Acho que nem mesmo entendo dos novos fenômenos que se fazem em plágios sociais. Não sei se tem valor ou se tem sentido. Não sei se tem lógica. Não a imitação pela imitação, mas o uso da violência como instrumento da afirmação de identidades e consolidação dos lugares de poder. Não entendo realmente dessa modalidade esportiva, mas acho que a violência não faz parte do jogo. Ainda acredito na tola convicção de que não se combate violência com mais violência. Mas no caso específico das torcidas organizadas, talvez até tal insensatez se justifique por um processo de catarse coletiva pelo qual se deseje demonstrar a garra e a força dos que não competem em campo, mas se tornam extensões dos jogadores ao assumirem o passivo papel de torcedores. E por isso, o campo se transfere para as ruas onde o gramado e duro e cinza.
Av. Conde da Boa Vista

Mas, independente das besteiras que possa pensar ou falar a respeito prefiro acreditar que como qualquer fenômeno social, emergente ou não, a guerra entre torcidas organizadas merece estudo e análise. Na verdade penso se essa manifestação não está diretamente atrelada a outros fatores, também sociais, como desigualdades. Não que estas diferenças estejam tão visíveis nos campos. Mas nas ruas, não se torna necessário o potente refletor de um helicóptero para evidenciar tais dissimilitudes. Talvez a algazarra e o quebra-quebra se justifiquem pelas faltas que afetam os subúrbios e comunidades populares que se espremem as margens do Recife. Talvez não seja o sentido ou sentimento de vitória ou derrota que está em jogo. Pelo menos nesse jogo. Mas a raiva motivada pelo sentimento de injustiça e pelas faltas de possibilidades de mudanças em curto prazo. E neste sentido, penso na importância de se pensar no quanto de tempo representa este tão proclamado curto prazo. Será o tempo de uma partida? O tempo de uma batalha? Ou o tempo de uma curta vida, aspecto peculiar aos que se encontram as margens. Quem nasce marginal, vive nas beiras e consome as sobras. Para estes não existe a representação do longo, médio ou curto prazo. Aliás, não existem prazos, pois que o tempo é urgente e emergente. O tempo é o agora porque a fome, a sede e as falta de condições dignas são presentes e cotidianas.

 Talvez se quebre portas, janelas, ônibus, vitrines e abrigos como desforra sobre uma sociedade que nos quebra a vida, a honra e a dignidade. Talvez nem seja nada disso, mas apenas uma incosequente demonstração de descontentamento pela falta de perspectivas a longo, médio e curto prazo. Talvez sejam apenas devaneios de um tolo que busca compreensão no incompreensível e inexplicável. Mas fato é que o centro da cidade tem evidenciado cotidianamente momentos de extrema violência. Por isso dia de jogo não se desce as ruas. Para não correr o risco de ser agredido ou espancado, mesmo que sem justificativas ou motivos concretos. Dia de jogo fica-se em casa, trancafiado e acuado porque sem as ruas não se chega a lugar nenhum. Porque nesses dias o espetáculo não se dá nas telas de TV, mas ao vivo e a cores na frente de nossos olhos admirados. É o jogo das multidões que se espalha pelas ruas e avenidas. Jogo com regras diferentes, mas onde todos vestem uniformes e todos agridem e são agredidos, sejam bicolores, tricolores ou simplesmente em cores pretas. Jogo iluminado por tecnologia aérea que aumenta as sombras do medo. Jogo das tecnologias mecânicas de motores potentes que arranham asfaltos e cantam pneus. Jogo que põe a vida em jogo. Não só as dos torcedores, mas também as dos juízes que apitam a obediência e as dos inocentes que sem arquibancadas ficam expostos em meio às agressões e riscos.
Av. Conde da Boa Vista

Talvez existam motivos lógicos. Mas talvez nem exista lógica que justifique os motivos. Pode ser fúria, raiva ou revolta reprimida. Pode ser combate as desigualdades, as injustiças, as diferenças ou afirmação de identidades. Pode ser inconsequência juvenil. Pode ser consequência da falta de perspectivas e políticas públicas eficazes para a juventude e infância. Pode ser ausência de filosofia ou inexistência de ideologia de vida. Por fim, pode ser um pouco de tudo, ou um muito de nada. Talvez nem exista probabilidades de mudanças a longo, médio, e principalmente, em curto prazo. Talvez o helicóptero volte a zumbir sob nossas cabeças. Talvez a gente agradeça por se sentir seguro e protegido. Talvez o “batalhão” nos dê um choque de consciência. Talvez tenhamos banalizado a violência. Talvez a gente se acostume...

Talvez a gente aprenda que em dia de jogo não se desce as ruas para não ser atingidos por bolas [ou balas] perdidas. Até porque, nos dias de jogo, talvez o único “tiro de meta” seja o que lhe derrube no campo [de batalha]. Talvez valha a reflexão! Talvez não.


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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