domingo, 10 de abril de 2011

O LUTO PELA MORTE DE UM AMIGO

HOJE UM AMIGO MEU FOI ESTUPIDAMENTE ASSASSINADO

Hoje um amigo meu foi morto a pedradas. Hoje não sei o que dizer. Um amigo meu foi acuado e barbaramente assassinado sem direito a defesa. Desprotegido e indefeso num matagal qualquer. Hoje fui pego de surpresa e fiquei sem saber o que fazer. Estou sem saber o que pensar. E o mais absurdo da situação é que apenas três dias depois soubemos da tragédia. Encontraram seu corpo nos matos. Hoje, ainda estou bêbado demais para falar sobre violência. Não consigo concatenar as idéias e muito menos os pensamentos. Não consigo organizar os sentimentos. Não consigo esquecer a pessoa que conheci.

Hoje estou fragilizado por demais para ser lógico. Para ser racional. Me sinto revoltado com tudo e com todos para fazer análises e reflexões impessoais. Estou em carne viva. Sangrando pela injustiça humana. Estou naqueles momentos em que se perde a esperança. Hoje, simplesmente não sei o que dizer e muito menos o que pensar. Não quero pensar. Na verdade queria esquecer. Acordar e descobrir que tudo foi apenas um pesadelo. Que tudo foi um trote. Que nada ocorreu. Voltar no tempo e evitar a tragédia. Queria tanta coisa. Não queria nada demais. Apenas reescrever a história e mudar o final. Queria não sofrer. Queria ter a certeza de que ele não sofreu. Não sentiu dores, medo e angustia. Queria gritar a dor que sinto. A dor que talvez ele não tenha gritado. Queria estancar a minha dor que machuca e embaça os olhos. Alienar-me de tudo. Apagar a imagem que atormenta minha alma. Queria me ausentar de qualquer sentido, pois que sentido é que menos existe na situação e o que menos importa neste momento.

Na verdade tenho evitado falar sobre a morte, apesar de ela me ser presente nos últimos dias. É difícil tratar da morte quando a mesma se faz tão próxima. Mesmo entendendo-a como natural ao homem, mesmo sabendo não poder evitá-la. Num sentido mais amplo, não é morte que machuca, mas a forma como se apresenta. Dizem mesmo que a morte só precisa de uma desculpa, pois que nossos dias estão contados e nosso destino traçado. Talvez isso justifique as banais situações. Talvez isso nos conforte. Talvez nos amenize o sofrimento. Mas não creio em destinos. Não acredito em carma. Acredito em pessoas boas e ruins. Em pessoas sadias e insanas. Pessoas perversas que funcionam como animais selvagens. Acredito no desequilíbrio humano. No fracasso da sociedade.

Não encontro explicações para o que sinto ou penso. Talvez porque não existam, talvez porque não se façam necessárias. A morte é simplesmente a morte e ponto final. O final de vidas repletas de sonhos. Final de uma história que poderia ser [e foi] feliz. Final na crença da bondade humana. É isso. Não somos puros. Não somos seres equilibrados e politicamente corretos. Somos animais e por isso agimos pela irracionalidade. Somos bárbaros e por isso nos tornamos predadores. Criamos uma selva disfarçada a quem aprendemos a chamar de sociedade. Abatemos o mais fraco e bebemos sangue. Matamos por instinto.

Não é morte em si que maltrata, pois que a mesma apenas cumpre seu papel. A morte não é boa nem má. Terrível é a forma como se morre. Sem aviso prévio, sem possibilidades de negociação, sem grandes justificativas, sem prorrogações. Como diz o velho poeta, “viver não é preciso”, e não é mesmo, pois que não se controla a vida e muito menos o seu fim. Porque não se pode calcular os atos alheios. Não se pode impedir o desvario e a sandice do outro. O mal não está na morte, mas nesse outro que às vezes acreditamos conhecer tão bem. A perversidade às vezes é amiga. A crueldade se torna companheira de sua presa. A morte é apenas o meio para o abate e iniquilamento. E assim morreu um amigo meu. Abatido como um animal. Destituído da dignidade. Sozinho no escuro da noite. Indefeso e injustiçado pela sorte. Não é a morte que me incomoda, mas o que fazemos depois. O esquecimento e anulação do significado da vida. Daquela vida. De tantas outras vidas que tiveram o mesmo fim. Incomoda-me a banalização da situação violenta. Não é o primeiro amigo, ou conhecido [e também desconhecidos] que morre assim. Já tive amigo estrangulado. Já tive amigo baleado. Já tive amigo estraçalhado. Já tive amigo enforcado. Já tive amigo torturado até a morte. O mesmo fim para quem vive na clandestinidade. O mesmo fim para as minorias obrigadas a se esconder no anonimato de relações perigosas.

O desconforto vem da vulnerabilidade imposta socialmente. Dos riscos inerentes a quem vive vidas semi-ocultas. Da não possibilidade de lutar contra a falsa moral. Do medo em transgredir a norma. Do receio a rejeição. Da impossibilidade de se mostrar diferente. A dor vem do fato de saber que este não é apenas um caso isolado, que se deu em uma pequena cidade afastada. A revolta vem da omissão por parte do poder público. Da falta de políticas públicas mais eficazes que garantam o direito de igualdade para todos. Do descaso com determinados segmentos da população. Do descompromisso com a vida, que tem resultado em mortes consecutivas. Morte das quais não se fala claramente. Mortes envolvidas em mistérios e vergonhas. Mortes que estampam diariamente os jornais. Mortes que escancaram o malogro social e colocam em cheque os modelos rigidamente estabelecidos em detrimento de uma maioria falso burguesa.

Não é a morte que espanta, mas a violência característica. O requinte de crueldade comum aos crimes dessa natureza. Não é morte que assusta, pois que nestes casos a mesma se torna insuficiente. Pois que nestes casos é preciso anular a existência. É preciso apagar os vestígios da diferença que ameaça e amedronta por expor semelhanças. E que podem evidenciar desejos negados e relegados ao escuro e ao oculto. É preciso não apenas matar, mas destruir para nulificar o outro que me revela e me coloca também no lugar de excluído. O lugar que não se quer, pois que a exclusão é quem mata, viola e aniquila. Não é a morte que inquieta, mas a certeza de que nestes casos não é apenas o agressor quem mata. Mas todos nós que insistimos em manter o falho modelo social pautado na desigualdade. Essas mortes desassossegam por saber que não existe um único culpado. Perturbam por nos jogar na cara nossa parcela de responsabilidade.

Não é a dor da morte que choramos, mas nosso próprio sentimento de fracasso diante do que é previsto por todos. E não é a partida dessa pessoa em si que lamentamos, mas a de muitas outras que também sofreram, e sofrerão, do mesmo jeito, do mesmo modo, as consequencias de nossa omissão. Acho que estou bêbado demais para reflexões racionais. Cansado demais para ressignificar a dor que sinto. Vazio demais para chorar a perda do outro. Resta-me apenas soluçar pelo meu próprio fracasso. Lamentar minha fraqueza e lastimar também minha culpa. Acho que estou bêbado demais para dormir. Ainda bêbado demais para acordar. e principalmente, envergonhado demais para encarar o espelho.

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