quinta-feira, 16 de agosto de 2012

FUTEBOL E ABUSO E EXPLORAÇÃO SEXUAL DE MENINOS





O GRANDE JOGO DA INVISIBILIDADE UTÓPICA

Só mesmo uma paixão nacional como o futebol para retirar do lugar de invisibilidade o fenômeno do abuso e exploração sexual contra meninos. Com a proximidade da Copa de 2014, a ser sediada no Brasil, as situações de vulnerabilidades e riscos em que se encontram milhares de meninos integrados as escolinhas e clubes de futebol vieram à tona através da série de reportagens do jornal Correio Brasiliense/Diário de Pernambuco, intitulada “Quando a Infância Perde o Jogo”. Revelando os dramas de crianças e adolescentes do sexo masculino, vítimas de abuso e exploração sexual, a reportagem revela, pela primeira vez, em nível nacional, os bastidores sinistros dos clubes de futebol e escolinhas de preparação de novos craques, chamando a atenção da sociedade para um fenômeno já anunciado por nós – A Invisibilidade dos Meninos, desde 2009 [ver Souza Neto, 2009a, 2009b; Viana, 2010; e Souza Neto e Viana, 2011].

O abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil é uma realidade conhecida de todos, governo, sociedade civil organizada, órgãos competentes e conselhos de proteção a criança e ao adolescente. Contudo, sempre visto e tratado como específico do feminino, por muito tempo os meninos amargaram a dor e as consequências do silencio imposto por uma cultura machista e heteronormativa. Diante da repercussão das reportagens, iniciadas nesta semana, até a Ministra Maria do Rosário reconheceu a inexistência de campanhas de enfrentamento a violência sexual com foco nas crianças do sexo masculino. Segundo ela, “Sempre tivemos uma dificuldade de enfrentarmos a exploração que envolve meninos. Essa série nos traz elementos muito importantes, até pela dimensão do futebol, para revelarmos a situação” [Diário de Pernambuco, 2012]. Se muito pouco se fez, e ainda se faz na perspectiva da prevenção, no que se refere ao atendimento e tratamento pós-traumático especializados a situação não se mostra muito diferente. No país do futebol, apenas 30% dos municípios possuem Centros de Referência Especializados da Assistência Social – CREAS, equipamento público da assistência social, responsável pelo atendimento e acompanhamento as crianças e adolescentes vítimas desta modalidade de violência. Por sua vez, os Conselhos tutelares, apesar de presentes na maioria dos municípios brasileiros, não possuem estrutura física e humana, necessárias ao atendimento da demanda. Acima de tudo é preciso qualificar e capacitar os profissionais de referência quanto às questões de gênero implicadas na problemática. Neste sentido, destacamos que a tal invisibilidade dos meninos no fenômeno da violência sexual tem se mostrado muito mais como resultado de nossa cultura, do que de fato pela inexistência de evidencias palpáveis e concretas.

De acordo com os dados do Disque 100, equipamento do Governo Federal, que registra e analisa as denúncias em todo o país, 33% dos casos registram o envolvimento dos meninos nas situações de abuso e exploração sexual. Se pouco me engano, esse percentual equivale a um terço do total de denuncias registradas, somente este ano. Pergunta-se então: a que patamares precisará chegar o registro das ocorrências para o Estado [re]ver seus posicionamentos estratégicos e não mais se utilizar de chavões utópicos para justificar sua inércia e ineficiência? Será que um terço de um determinado segmento da população é tão insignificante para se manter invisibilizado? Quando começaremos a mudar o discurso, e principalmente as práticas? Ou vamos esperar a Copa do Mundo chegar com seus impactos sociais? Para um país que já é reconhecido como rota do turismo sexual e do tráfico de seres humanos para fins de prostituição, talvez seja melhor se antecipar para não decepcionar como nossa seleção nas Olimpíadas de Londres.

A circulação de meninos pelas ruas, inseridos no universo da prostituição masculina, não é exclusivo do Recife, mas comum a todos os grandes centros urbanos do Brasil. As práticas sexuais comerciais desenvolvidas por crianças e adolescentes, que caracterizam o abuso e exploração sexual, se revelam e se evidenciam diariamente a olhos nus. É neste sentido que há muito questionamos se a invisibilidade do masculino no mercado do sexo pago é resultante de uma característica intrínseca, ou reflexo de uma falta de compromisso político e social por parte de nossos dirigentes de governo. Em 2007, iniciamos nossas pesquisas de mestrado, evidenciando o universo da prostituição masculina no centro do Recife, destacando a inserção de meninos, crianças e adolescentes, no mercado do sexo local. De lá para cá, publicamos dissertações, artigos e capítulos de livros, salientando a necessidade da efetivação de políticas publicas eficazes no enfrentamento e combate a exploração sexual, com foco na experiência dos meninos. Em 2011, com patrocino da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco – Chesf e, parcerias com o Laboratório de Estudos da Sexualidade Humana – Lab-Eshu, da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE; do Centro de Apoio Social e Arte/Educação – C.A.S.A, e do Governo do Estado de Pernambuco, através de sua Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, desenvolvemos o Projeto Histórias de Menino – Panorama da Exploração Sexual de Meninos no Estado de Pernambuco, capacitando e qualificando as equipes técnicas das redes de proteção dos dezenove municípios que compõem a Região de Desenvolvimento da Mata Norte do estado. Os resultados do trabalho foram publicados em livro, distribuídos entre os municípios, órgão vinculados a rede de proteção, universidades e bibliotecas. Porém, apesar de pioneira, a iniciativa mostra-se insipiente diante da falta de estudos acadêmicos e pesquisas científicas que se debrucem sobre as especificidades da sexualidade masculina, bem como sobre os aspectos e fatores relativos às questões de gênero que mantém os meninos nesse cenário de invisibilidade. É preciso maiores investimentos nesta área, possibilitando o desenvolvimento de novas pesquisas, bem como, voltados a qualificação técnica dos profissionais que atuam na ponta, além da reestruturação e fortalecimento da Rede de Proteção. E isso só será possível através da implementação de políticas públicas eficazes, e do emprenho dos gestores públicos.

Como disse a ministra Maria do Rosário, “o Mundial de 2014 é um momento impar para combater as violações contra a intimidade das crianças e reforçar seus direitos, o que significa dar uma atenção especial as cidades onde a Copa acontecerá, nos estádios de futebol, mas também uma atenção especial a tudo que ela move no imaginário nacional, a todos que querem ser os melhores craques do Brasil, até para que eles não fiquem mais vulneráveis em universos essencialmente masculinos que são as escolas de futebol” [Diário de Pernambuco, 2012]. Mas importante que isso é despertar a consciência da sociedade para o fato de que nem todos os meninos em situações de vulnerabilidade e riscos desejam, ou ainda, têm a possibilidade de acessar as escolas e times de futebol. É preciso ampliar o foco, até porque as situações de abuso e exploração sexual contra meninos não estão restritas ao universo do futebol, mas também as outras modalidades de esportes, nas atividades da exploração do trabalho infanto-juvenil, no privado dos lares, nos espaços e segmentos religiosos e acima de tudo, nas ruas dos grandes e pequenos centros urbanos. É necessário que as verbas destinadas às ações de enfrentamento e combate à violência sexual, estimadas em 3,5 milhões para este ano, não se restrinjam as cidades-sedes da Copa, como anunciado pelo Coordenador Geral do Programa de Enfrentamento a Violência de Crianças e Adolescentes da SDH, Joseleno Santos [Diário de Pernambuco, 2012]. Afinal de contas, a Copa é um evento esporádico, com inicio e fim previstos, ao contrário do fenômeno da exploração sexual.

Independente do período de festa futebolística, é sempre bom lembrar que nem sempre o que não se quer ver torna-se invisível aos olhos.

Referências:

DIÁRIO DE PERNAMBUCO. A violência Sexual no Futebol – Reportagem de Juliana Braga e Renata Mariz, Brasil A 8, 14 e 15.08.2012.

SOUZA NETO, Epitácio Nunes. Entre Boys e Frangos – análise das performances de gênero dos homens que se prostituem em Recife. Dissertação de mestrado/Programa de pós-graduação em psicologia – UFPE, 2009a.

SOUZA NETO, Epitacio Nunes. Os Pequenos Boys de Programa – notas etnográficas sobre meninos em situação de exploração sexual. Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes – reflexões sobre condutas, posicionamentos e práticas de enfrentamento / org. Jaileila de Araújo Menezes-Santos, Luis Felipe Rios – Recife, editora Universitária da UFPE, 2009b.

VIANA, Normando José Queiroz. “É tudo psicológico/dinheiro/pruuu e fica logo duro!”: desejo, excitação e prazer entre boys de programa com práticas homossexuais em Recife. Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Pernambuco – UFPE/CFCH. Psicologia, 2010

SOUZA NETO, Epitacio Nunes & VIANA, Normando José Queiroz. Histórias de Menino – Panorama da Exploração Sexual de Meninos no Estado de Pernambuco. Relato da experiência na Mata Norte, Recife, 2011.

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