AV. 09 DE JULHO - BUENOS AIRES/AR. |
Mi Buenos Aires Querido! Primeiras impressões sobre o mundo gay portenho.
Há uma semana em Buenos Aires, já
consigo me situar e identificar espaços e equipamentos que compõem o mercado
homoerótico portenho. A cidade em si parece geometricamente desenhada, o que
facilita em muito a vida do visitante. Através de avenidas e ruas amplamente largas
e compridas atravessa-se de um lado ao outro o grande centro com facilidade. Da
Casa Rosada, localizada na Plaza de Mayo, até a Plaza de Congreso, onde me
encontro, são apenas algumas quadras que se pode caminhar tranquilamente. Como
as quadras são compostas por quatro ruas sabe-se, por exemplo, o quanto percorrer
até um determinado ponto da cidade. Assim, sem grandes dificuldades iniciei
minha peregrinação pelas ruas de Buenos Aires buscando identificar bares,
hotéis, pousadas, motéis, boates, saunas, espaços de pegação e/ou de
socialização homoerótica/homoafetiva. Diferentemente de Recife, aqui estes espaços
não são sinalizados, o que a primeira vista parece revelar certo cuidado
proposital que objetiva a invisibilidade.
SAUNA NO CENTRO DE BUENOS AIRES |
Depois de alguns contatos pessoais
sair para conhecer a famosa Calle Florida, rua de grande movimentação onde se
encontra a Galeria Pacífico, que congrega a maioria de gays da cidade. Repleta
de lojas, o corredor comercial parece representar um espaço ou ponto de
encontro para todas as tribos. Em uma de suas extremidades encontra-se a Plaza
San Matin, onde a noite pode-se observar homens jovens sentados ou circulando
espaços estratégicos. Talvez seja este um espaço de pegação, talvez funcione
como ponto de encontro e/ou de definições de programas. Uma de suas paralelas é
a Calle Maipú, onde verifiquei pouquíssimos garotos que permaneciam por longos
períodos encostados nas paredes de antigos prédios e casarios. Apesar de
contrariarem o estereótipo de um garoto de programa, devido a discrição e indumentárias,
acredito não terem outro motivo, além da espera de clientes, para se manter por
tanto tempo em ruas tão frias. Nestas duas ruas, durante o dia pode-se
verificar homens mais velhos abordando transeuntes para a entrega de cartões e
folders sobre apresentações de shows eróticos – são os agenciadores e/ou
cafetões. Na verdade esta é uma estratégia também utilizada pelas próprias
prostitutas como forma de divulgação de seus serviços. Estes cartões podem
ainda ser encontrados em postes, placas de sinalização, coletores de lixo ou
paredes de edifícios por toda a cidade. De certa forma, a prostituição feminina
em Buenos Aires parece amplamente consolidada e generalizada. Contudo, imagino
que as práticas sexuais comerciais em sua primazia se estabeleçam a partir dos
espaços privados, e com menor frequência em espaços públicos. Tanto que durante
as circulações noturnas pelas principais ruas da cidade não constatei a prática
da batalha tão comum nas cidades brasileiras.
Na tentativa de facilitar meu
trabalho, recorri à internet como recurso para mapear possíveis espaços da prostituição
masculina e de socialização homoafetiva. Com anotações em folha, voltei às
ruas. Seguindo pela Calle Marcelo T. de Avelar, cruzando a Avenida 09 de Julho,
chega-se ao Flux Bar, indicado como único bar gay do centro. Os números dos
prédios saltam diante de meus olhos e não consigo identificar o endereço.
Procuro por um nome, bandeira do arco-íris ou algo sinalizador. Nada. Apenas
uma porta preta metálica me chama a atenção e confirma minha hipótese da
proposital invisibilidade. Sigo então pela Av. Santa Fé, que margeia a Plaza
San Martin e rumo para o lado oposto da cidade. Mais ou menos umas vinte
quadras chego ao número indicado. Procuro o Titanic Club. Estamos no Barrio da
Ricoleta e novamente me deparo com outra porta metálica preta, fechada com
correntes e sem número de identificação. Acima visualizo outro nome – Kilómetro
Zero, diagramado de forma bastante discreta. Próximo encontra-se o Contramano
Café-Bar, localizado na Calle Rodrigues Penã, no mesmo barrio, destinado ao
público gay mais maduro e também frequentado pelos michês. Pela Calle Azcuénaga
busco pelo Search Bar. Agora dou de cara com uma porta metálica vermelha, sem
nenhum nome ou número indicativo. É a mesma estratégia que se destaca pela
discrição. É a mesma forma arquitetônica que me dá a impressão de que em Buenos
Aires tudo é muito compacto. Pela Av. Cordoba chego a Calle Viamonte e tomo o
sentido Universidade de Buenos Aires até alcançar o Tom´s, classificado como
bar de pegação. Paro em frente a um prédio comercial e novamente não localizo o
empreendimento. Decido descer por uma escadaria, ao lado esquerdo da recepção.
É no porão que se encontra instalado um dos mais discretos empreendimentos do comercio
homoerótico portenho. Sigo treze quadras a frente e me deparo com um casarão
antigo de estrutura bem conservada. São três andares com janelões amplos e de
tonalidade discreta. A Full Spa é uma sauna, que como as do Recife, preza pelo
anonimato. Um homem desconfiado entra tão rápido por uma porta lateral, que se
fosse supersticioso juraria ter visto alma penada. Mais quatro quadras e chego
a Angel´s Disco, boate gay que oferece em sua programação shows de travestis e
garotos de programa. Olho o caderno de anotações e conto mais cinco espaços
identificados. O desanimo me bate e volto ao apartamento para os primeiros registros.
No final de semana decido
conhecer a boate. O frio exige casacos e adereços extras, além de grande
disposição e boa vontade para enfrentar a noite. Estamos a quatro graus e as
ruas parecem lotadas. Na Av. Corrientes multidões formam filas em frente aos
milhares de teatros, cinemas e casas de shows. A cultura em Buenos Aires tem
publico garantido, o que lembra muito as cidades européias. Os bares estão
cheios. Uma profusão de casacos e corpetes desfila a minha frente. A cidade
parece em ebulição. Chego a Angel´s a meia noite e meia e encontro centenas de
jovens abraçados ou em grupos. O cenário parece familiar e começo a confirmar
uma de minhas teorias – toda boate é igual independente de sua localização ou
nacionalidade. Entro no espaço e começo o
reconhecimento das instalações. A entrada de $ 40,00 (quarenta pesos) garante
duas consumações. Considerando que a cerveja custa atualmente $ 12,00, o preço
se mostra bem accessível, fato constatado pelo biótipo do público. Na entrada,
uma escadaria leva a boleteria e ao guarda-casacos. Um bar ocupa o pavimento,
que se mostra apertado diante da quantidade de gente. Sinto-me um estranho no
ninho devido aos olhares que identificam não apenas a presença do estrangeiro,
mas também de carne nova. Uma escada metálica, vazada, leva tanto ao pavimento
superior quanto ao porão. São duas pistas onde a maioria se concentra em
coreografias e performances tão comuns quanto a trilha sonora. Acredito que
boate é um produto de massa importado, inclusive, com direito a manual de
funcionamento. Percebo que estes espaços não possuem identidade cultural
própria. É como se quem fosse a uma boate precisasse saber antecipadamente como
se comportar. Verifico a mesma pasteurização de rostos e condutas performativas
tão comuns entre os gays recifenses. No banheiro amplo a pegação se limita aos
olhares, pois existe uma pessoa responsável pela limpeza e segurança do local.
Aproximo-me de um bar e observo
comportamentos. Pouco a pouco começo a identificar os personagens da noite.
Estão lá: as Barbies, cuidadosamente esculpidas e presas as suas blusas de malhas
extremamente justas; as Chiques-de-Equê, que passam a noite inteira segurando a
mesma lata de cerveja; as Mariconas-Equivocadas que sofrem do complexo BC - “baile
da cinderela”; as Monas-Sérias, linha bicha de família, sempre agarrada ao namorado,
que ostenta como troféu e demarcador de diferenças; as Bichas-Loucas que mais
parecem pipoca e pulam e dá pinta a noite inteira; as Velhas-Travas, sempre
acompanhadas da melhor amiga maricona e com ar saudosista, apesar da maquiagem
exagerada que lhe cobre o rosto; as Jovens-Travestis que se agrupam a um canto
para “matar” reciprocamente uma as outras; as Travas e Mariconas-Bombadas que
chegam acompanhadas do seu Boy de aluguel. Neste caldeirão de identidades
performáticas ou performativas destacam-se ainda, as Bichas-de-Caça, sempre
atentas ao menor movimento de seus possíveis alvos; os Boys de Programa que
circulam os dancings ou prostram-se em pontos estrategicamente pouco
iluminados; as BBFs, ou seja, Bichas-Boa-Fácil que beijam e contabilizam os
contatos; as Bichas-Carão, sempre altivas e com ar de indiferença que funcionam
como mecanismos de defesa; as Sapas-Pesadonas que relembram a pré-história; as
Sapas-Depressivas, que sempre brigam com a companheira bêbada e procuram um
canto para chorar suas mágoas; o Segurança da casa que aproveita a noite para
faturar um extra junto à mariconas, velhas conhecidas; isso sem falar nas
Rachas-Melhor-Amiga-de-Frango, que tendem a imitar os gays, e muitas vezes,
serve de gozação.
Nada de novo ou muito diferente
de Recife. Contudo uma coisa que me chama a atenção é o controle adotado para a
entrada das pessoas. Pareceu-me existir um número limite para a lotação, o que
faz com uma fila enorme de gays e lésbicas se estenda pela rua. Saí as 04:30 da
manhã e constatei mais de cem pessoas, trêmulas de frio, perseverante em seu
intento. Não consegui identificar se aquilo se faz como prática ou costume, já
que pelo visto os argentinos adoram [e respeitam] uma fila. Estas se
multiplicam nas paradas de ônibus, caixas de supermercados ou farmácias, na
bilheteria e entrada de teatros e cinemas. Mas dentro dessa perspectiva mais “music”,
as boates também servem como espaços demarcadores de diferença de classes sociais,
e talvez étnica. Existe em Buenos Aires outra boate chamada Amerika, reconhecida
como espaço dos gays burgueses e de pessoas famosas e descoladas. Ao que tudo
indica, a prática se multiplica por centros urbanos. Poderíamos dizer que a Angel´s se assemelha ao
MKB, localizada na Riachuelo, enquanto que a Amérika corresponde a Metrópole,
instalada na Av. Manoel Borba. No retorno para casa, caminhando pelas ruas
ainda mais congeladas, consegui visualizar três travestis batalhando nas ruas,
bem como quatro boys de programa, agrupados em uma esquina quase totalmente
escura.
Apesar de incipientes estas
primeiras observações e informações me revelam semelhanças e diferenças entre
os dois mercados. Em Buenos Aires, parece que o mercado do sexo homoerótico
encontra-se espalhado, pulverizado entre os bairros. Lógico que estas são
apenas suposições, hipóteses para futuras análises que se confirmarão ou serão
refutadas e modificadas. De um jeito ou de outro, não nego me sentir feliz por
estar novamente no campo de “batalha”, atrás de possibilidades para melhor se
conhecer e conviver com a diversidade da sexualidade humana.