quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A VITÓRIA DAS TRAVESTIS E TRANSEXUAIS PERNAMBUCANAS

Parada da Diversidade - Av. Paulista/SP - 2009.




UMA LUTA PELA LEGALIZAÇÃO DO NOME SOCIAL

O ano de 2010 termina com uma excelente vitória para todos nós que lutamos pela efetivação da garantia de direitos e igualdades sociais. Finalmente foi publicado o Decreto Lei nº 35.051, que garante as travestis e transexuais pernambucanas a inclusão do nome social nos registros estaduais relativos a serviços públicos prestados no âmbito da administração pública estadual direta, autarquias e fundacional, sendo tal conquista resultado da I Conferência Estadual LGBTT, realizada ainda em 2008, e dos esforços de muitos que direta ou indiretamente participam e contribuem para a consolidação e fortalecimento do reconhecimento do segmento LGBTTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos).

Dizer que tal medida contribui diretamente para a afirmação dos direitos humanos, bem como para a construção de uma sociedade mais justa e livre de toda forma de preconceito e discriminação seria desmerecer a importância da vitória de uma batalha que já se arrasta por muito tempo - reconhecer definitivamente as travestis e transexuais enquanto sujeitos de direitos. Mais que isso, significa o reconhecimento dos integrantes desse segmento da população não mais como passageiros de segunda classe, garantindo-lhes a efetivação de uma identidade social e pessoal, direito irrestrito e fundamental a toda pessoa humana. Tal medida exige dos órgãos públicos tratamento igualitário e reitera o entendimento de que identidade se configura naquilo no que me reconheço e aceito. Não é um nome legalmente oficializado que diz de minha orientação, mas ao contrário, minha orientação diz de minha identidade e me possibilita definir o que me nomeia. O decreto estabelece os parâmetros necessários e legais para que milhares de travestis e transexuais não sofram mais constrangimentos e assédios morais no acesso aos serviços de educação, saúde, assistência social e justiça, entre outros. Antes de tudo, retira da clandestinidade quem sempre esteve na invisibilidade e na exclusão.

Relembro então uma importante e significativa passagem de minha inserção pela Assistência Social. Estávamos exatamente no ano de 2008, quando abordamos a temática junto a um grupo composto por mais de cinquenta profissionais, técnicos das áreas de psicologia, pedagogia e serviço social, integrantes do quadro técnico do Programa Vida Nova – Pernambuco Acolhendo a População em Situação de Rua, política pública do Governo do Estado, voltada a população em situação de rua, do qual muito me orgulho em ter participado e contribuído para a construção da proposta pedagógica piloto para os Centros da Juventude, bem como da implantação de uma metodologia pautada no Respeito, Dignidade e Direitos – RDD, desenvolvida e implementada enquanto estratégia de inserção social.

Percebemos o quanto difícil ainda se tornava discutir Sexualidade e Gênero, mesmo entre profissionais com formação acadêmica e o dito conhecimento relativo às premissas básicas que regem os direitos humanos. E neste sentido, destaca-se a fundamental diferença entre conhecimento e entendimento, fato evidenciado ao percebermos o quanto os discursos se tornam e se apresentam contraditórios quando levados e guiados por uma cultura machista e heterossexista como a nossa. Reconheço logicamente, a dificuldade sentida por muitos em abandonar as velhas concepções construídas sócio-culturalmente ao longo de suas vidas, resultantes do modelo higienista que configurou o sexo unicamente aos fins reprodutivos. E é neste sentido, que a meu ver, revela-se ainda entre tantos profissionais a necessidade da quebra dos velhos paradigmas para se possibilitar a uma concepção e compreensão mais ampla do individuo enquanto sujeito do desejo.

Na referida capacitação técnica o que se pode observar foi à intolerância, a mesma muitas vezes fundamentada na ignorância e desconhecimento dos fatos. Naquele momento formou-se uma barreira de resistências que muito bem poderia ser traduzida como pânico infundado em contrariar a norma reguladora que estabelece a heterossexualidade como primazia da sexualidade humana. É fato que somos e fomos educados e formados por rígidas regras sociais que nos estabelecem como homens ou mulheres, não existindo a possibilidade de meio termo. E que inevitavelmente dentro desse contexto, as sexualidades que contrariam a regra reprodutiva tornam-se desvios de conduta e caráter, logo se configurando ou sendo configuradas como patologias. Em outras palavras, o que se apresentava ali nada mais era do que um reflexo ou reação “natural” que objetivava a proteção e manutenção de suas zonas de conforto. Afinal de contas o que se colocava diante de seus olhos era a inevitável reflexão, individual e coletiva, sobre os conceitos pré-estabelecidos que regiam a décadas seus comportamentos e compreensões acerca do outro, e por que não dizer, de suas próprias identidades.

O grande entrave parecia consistir exatamente na dificuldade da grande maioria em entender que não é um órgão genital, apenas, que nos diz de nossa construção identitária, mas uma gama de fatores, sentimentos, emoções, identificações e desejos aliados, que formam complexos processos subjetivos para nos constituir em plenitude enquanto pessoa. Por outro lado, para nós capacitadores, ou melhor, pretensos facilitadores, o imenso desafio consistia em como conscientizar a grande parte dos presentes de que o fato de ser possuidor de um pênis ou de uma vagina pode não ser suficiente para uma pessoa se configurar e se constituir enquanto sujeito do masculino ou do feminino, sucessivamente. Sabíamos que falar de gênero nunca fora fácil para a maioria das pessoas, mas não se tornaria impossível se conseguíssemos que de boa vontade, os que ali estavam exercitassem a tendência e capacidade humana em admitir modos de pensar, de agir e de sentir diferentes dos de um indivíduo ou de determinados grupos, sejam esses políticos ou religiosos.

Por isso seria preciso mais que apresentar novas concepções conceituais, fazê-los entender que no amplo e vasto território das sexualidades humanas as categorias identitárias e classificatórias já não se mostravam suficientes e/ou adequadas para abranger às diversas e diversificadas orientações sexuais dos adolescentes e jovens inseridos no Programa. Era preciso acima de tudo oferecer-lhes o ambiente e o clima adequados às reflexões menos estanques e rígidas sobre as sexualidades, favorecendo análises mais abertas para poderem considerar as possibilidades de fluidez no fato e/ou ato de “ser” e “estar” hétero, homo ou bissexual em determinados momentos e/ou ciclos da vida. E nesse sentido investimos nossos esforços objetivando preparar o terreno para o objetivo principal e foco da capacitação.

As propostas levantadas pela equipe de Coordenação Técnica da qual fazia parte na época, visavam o atendimento as reivindicações das jovens travestis e transexuais quanto à necessidade e direito da adoção de seus nomes sociais, bem como, relativas ao uso dos banheiros femininos, nos Centros da Juventude. Levantou-se então o principal questionamento: afinal de contas, “os mesmos” deveriam ser considerados enquanto sujeitos do feminino ou do masculino? Iniciamos discutindo sobre o emprego do artigo definido, bem como sobre as possibilidades plurais de configurações de masculinidades e feminilidades. Não para nossa surpresa, o corpo anatomo-fisiológico lhes servia como principal fundamento, e por tanto, considerava-se homem todo indivíduo com pênis e mulher quem tinha vagina. O discurso estava pautado no recorte do sexo biológico e não no de gênero como desejávamos. Para a maioria era impossível desvincular a concepção biológica da construção da identidade de cada sujeito, e logicamente desconsideravam a subjetividade envolvida, na contramão da concretude de um falo ou ausência deste.

Outra discussão se referia à contrariedade da concepção aprendida sob o prisma legal. O nome designava o sexo de cada adolescente e jovem daqueles centros, logo se deveria respeitar tal normatização. Tudo isso de certa forma já nos era esperado. Mas, o mais preocupante era o fato de que para alguns daqueles profissionais o programa deveria atuar numa perspectiva de ajuda aos jovens que enfrentavam uma fase transitória e conflituosa. Em outras palavras, em suas concepções pessoais e profissionais era preciso adequar e contribuir com os jovens que apresentavam as tais “famosas crises de identidade”, e nunca estimulá-los as possibilidades e variáveis de suas próprias sexualidades. Constatamos então que para muitos daqueles, aquela ainda era a concepção concreta de juventude, momento transitório ou conflituoso onde se precisa e se busca orientação direcionada, o que muitas vezes justifica uma fundamentação didática e conceitual pautadas nos dogmas cristãos.

Não conseguia esconder minha frustração diante da sensação de fracasso, avaliada por mim, sucessivamente, como falta de capacidade de persuasão e fundamentação teórico-metodológica. Porém o tempo e a experiência me mostraram a importância de persistimos em nossos intentos, e acima de tudo, de fortalecermos nossas convicções ideológicas para encontrar caminhos e estratégias de sucesso. Era preciso insistir em falar sobre o que acreditávamos e antes de partir sozinhos para a luta, angariar adeptos e parceiros a nossa causa. Também foi preciso compreender que muitas vezes não se ganha uma guerra em uma única batalha. Quase sempre se faz necessário aliar paciência a persistência para aproveitar as possibilidades que se apresentam e assim contribuir para o verdadeiro processo de transformação cultural de um povo e/ou sociedade.

Aquela batalha estava vencida, mas não perdida. Outros momentos mostraram-se mais proveitosos. Foram capacitações, encontros, congressos, oficinas, mesas redondas, mini cursos e palestras. Era preciso multiplicar a informação para abrir espaços para discussões mais profundas e abrangentes. E se dois anos podem parecer muito tempo para a efetivação de mudanças que se mostram urgentes para a garantia de direitos de igualdade, os mesmos tornam-se insignificantes quando comparados a séculos de estruturação e formação de uma cultura tão tradicionalista como a pernambucana. Fato é que hoje me sinto participe desse processo de mudança, e fortalecido no meu entendimento relativo ao real sentido e significado do que vem a ser direitos humanos. E acima de tudo, sinto-me orgulhoso por contribuir para o fortalecimento de que enquanto sujeitos, somos livres para as mudanças que se fazem e se fizerem necessárias, não só no coletivo ou individual, mas principalmente no âmbito pessoal, seja no que se refere aos ajustes e alterações dos corpos, nomes ou identidades.

Assim, parabéns a todos os profissionais conscienciosos e cumpridores de seus papéis. Parabéns a todas as travestis e transexuais conscientes de suas capacidades de luta pela conquistas de Respeito, Dignidade e Direitos. A primeira etapa já foi consolidada na representação de Lei. Agora é exigir a aplicação do que agora se transforma em norma e regra de conduta moral e social.

Parada da Diversidade/SP - 2010.

Nenhum comentário:

Postar um comentário