quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O ESPIÃO DA VIDA ALHEIA - UMA NOVELA REAL E URBANA - Capitulo I

AS JANELAS INDISCRETAS DA CIDADE

Quem mora no centro das grandes cidades termina por se tornar testemunha ocular da “privacidade” alheia. Não necessariamente essa invasão de privacidade se dá de forma desproposital ou inocente. Porém, em muitas situações nos tornamos cúmplices acidentais em demonstrações de afetos e também de desafetos entre vizinhos. Do meu campo de visão, que vai da Ponte Maurício de Nassau, que separa a Av. Conde da Boa Vista da Av. Guararapes, no sentido centro; e no sentido subúrbio se estende para além do cruzamento com a Rua da Soledade, posso acompanhar diariamente o cotidiano de mais de mil famílias que se sobrepõem umas sobre as outras em centenas de edifícios instalados no perímetro. E tudo funciona como um verdadeiro Big Brother sem fim. Neste sentido, prefiro pensar em uma novela real que se descortina diante de meus olhos. Recheada de personagens reais em situações cômicas e/ou dramáticas, geralmente desperta uma mistura de emoções que podem variar da simples curiosidade à ansiedade gerada pela impotência imposta pelo anonimato. São dramas cotidianos que se repetem; melodramas que acompanhados por músicas melosas revelam o final de relações amorosas, passageiras ou duradouras; situações de suspense e perigo, que muitas vezes envolvem agressões físicas; e até mesmo tragédias de vidas humanas expostas através de janelas nada discretas.

Nesse jogo comandado pelo voyeurismo observa-se ao passo que se é observado. Exemplo da simples constatação se dá pelo fato de milhares de pessoas se debruçarem sobre suas janelas, muitas vezes, ao mesmo tempo. São momentos onde olhos se cruzam ou se encontram num sentido confirmatório de que se observa o mesmo alvo. Inconscientemente as ruas se tornam extensões de nossas casas, onde as janelas permitem uma amplitude de espaço que vai além dos limites territoriais. Não existem fronteiras e muito menos monotonia. O privado se torna público. E neste exercício de curiosidade nos damos ao direito de mudar de janela, e consequentemente de história, como se muda os canais de uma televisão. Selecionamos as imagens e muitas vezes ajustamos os focos com auxílio de óculos ou binóculos objetivando vasculhar detalhes. E como no cinema mudo, as expressões corporais substituem o áudio. Assim parece não existir um texto pré-determinado como nos filmes ou espetáculos de teatro, pelo menos não no campo da oralidade, o que permite ao observador rechear a cena com intenções que nada mais são do que frutos de sua própria imaginação. É preciso ficar atento aos gestos e performances para concatenar a atuação de cada ator social num escripite que vai se construindo no imaginário de quem observa. Não existe direção de cena ou de arte e assim os enredos parecem se desenrolar por si, divididos em capítulos que não tem tempo exato para acabar. Começo e fim ficam a critério do espião de vidas alheias. E talvez, esse seja o título mais apropriado para a novela da vida real que se vislumbra diariamente em minha janela: “O Espião de Vidas Alheias”. Novela que não define de forma exata os papéis de vilões e mocinhos, cujos desfechos serão sempre imprevisíveis, com ou sem finais felizes.

Milhares de histórias vão aos pouco sendo colecionadas. Algumas tristes, outras maravilhosamente cômicas. Mas em sua maioria dignas de crônicas urbanas, pois que retratam a forma e conteúdo das relações sociais de uma cidade. Penso então no quanto seria interessante e ao mesmo tempo divertido poder escrever sobre tais histórias, tendo como pano de fundo o retrato social de um grande centro urbano. Lógico que se faz necessário destacar que tais escritos trarão muito da minha própria compreensão e concepção de cada fato, de cada situação envolvida. Meu objetivo não expor o privado das relações, mas analisar através do registro a dinâmica destas relações, bem como os contratos de convivência estabelecidos entre os envolvidos, e entre estes e a cidade grande. Para tanto as histórias que passo a relatar imprimem-se em pequenos recortes, recheados de observações, e por vezes, de comentários que objetivam dinamizar a narrativa.

Neste sentido, saliento a não existência de uma prévia seleção de temas ou enredos. Estes iram surgindo de acordo com casualidade e imprecisão da própria vida real. Serão apenas histórias de anônimos abertas ao mundo através de uma janela do terceiro andar de um prédio qualquer na principal avenida do centro da cidade. Logicamente serão observadas as questões éticas envolvidas, no sentido de não possibilitar a identificação das personagens a fim de se poder preservar a integridade das pessoas. Melhor dizendo serão histórias de ficção, baseadas em fatos reais. Desta forma, qualquer semelhança com nomes, dados ou características pessoais poderá ser apenas pura coincidência.

Um desses capítulos teve inicio quando fui acordado durante a madrugada por gemidos, ou melhor, gritos, que vinham do outro lado da rua. Eram pedidos de ajuda no melhor estilo tragicômico. Uma mulher, provavelmente jovem, fazia sexo com alguém no apartamento em frente ao meu. O quarto aceso revelava cortinas finas que balançavam ao vento e pareciam desenhar coreografias que muito bem poderiam traduzir os movimentos de seus corpos. Ela gritava por ajuda. Alguns transeuntes que aguardavam o ônibus na parada abaixo do prédio olhavam aflitos para cima tentando desvendar o mistério. “Ai, Jesus! Ai, meu Deus”. A ansiedade aumentava entre milhares de observadores que acompanhavam o sofrimento da jovem senhora.

Todos queriam saber o que se passava naquele quarto. Alguns mais proativos se avexaram em indagar o vigia que se mostrava indiferente a situação. Novos gritos de socorro: “Me ajuda Jesus. Ai, meu Deus do Céu!”. E mais pessoas se juntavam a multidão de cabeças erguidas. De repente risadas invadiram o ar e se espalharam pela avenida. A reação de espanto e incerteza incomodava aos observadores. “Eles estão é na safadeza”, afirmou uma mulher que perambula todas as noites pelas ruas da cidade. “Cala a boca cadela safada. Tá dando pro teu macho e fica aí gritando, sem vergonha”. Tais reclamações causaram risadas que logo se perderam na madrugada. Minutos de silencio se seguiram até que novos e sucessivos gritos insistiram em insinuar uma aparente violência comum em brigas de maridos e mulheres: “Ai, para, por favor... desse jeito vai me matar”. Novos olhares para o alto, novos sobressaltos, novas insinuações.

Uma travesti que ocasionalmente faz ponto na redondeza respondeu: “Vai morrer? Só se for de tanto fuder... puta safada”. Os comentários se tornavam cada vez mais alto e se criava uma verdadeira algazarra abaixo do prédio. Nos carros e ônibus as pessoas olhavam para cima de suas janelas. Poderia mesmo se dizer que aquele era um acontecimento de parar o trânsito. Os gritos agora variavam de intensidade, alguns bastante altos, alguns baixos e outros abafados. No entanto, apenas se ouvia a voz feminina. Nenhuma palavra era proferida pelo suposto agressor. Isso parecia contribuir para aumentar o suspense entre os ávidos espectadores. Algumas pessoas que bebiam na banca de cachorro quente localizado próximo ao prédio se aproximavam para se inteirar do inusitado acontecimento. Ao passo que as conversas se tornavam mais afloradas, e logicamente apimentadas, a mulher continuava, em espaços ritmados, a clamar por piedade.

Em muitos momentos seus gritos podiam ser confundidos com gemidos, o que dividia as opiniões: “Ai, eu não agüento mais”. Para uns ela estava sendo barbaramente espancada, para outros, não passava de “uma cadela no cio”. O público se agitava em suas apostas e formavam grupos de discussões. Era a vida exposta sem o menor pudor. Uma velha senhora sentada a espera do bacurau se benzia enquanto lia a bíblia. Provavelmente considerava tal situação uma grande heresia. Seria o fim dos tempos? Estaria a mulher possuída pelo demônio? Ou apenas dava ela vazão as suas fantasias e prazer? As janelas do edifício iam se acendendo uma após outra. O mesmo ocorria nos prédios vizinhos. A avenida estava completamente iluminada e as conversas já não se limitavam aos transeuntes. Pessoas das janelas trocavam ou pediam informações para as pessoas na rua. Tinha se estabelecido uma verdadeira rede. As informações também ocorriam de prédio para prédio. Alguém do outro lado perguntou: “estão vendo alguma coisa?”. Me senti desconfortável em estar sendo descoberto. Alguém no andar de cima respondeu: “Porra nenhuma. Só consigo ver as cortinas balançando”.

“Sabe que é a piranha?”, perguntaram de outra janela de meu prédio. “Acho que ela é novata aqui”, veio em resposta do outro lado. Gritos saltavam de várias janelas ao mesmo tempo pedindo silêncio. Ninguém conseguia dormir com aquela agitação toda. Havia certa excitação no ar. A essa altura a policia já havia sido acionada e os soldados se juntaram a multidão que exigia providencias. “Parem com essa putaria. Eu tenho crianças pequenas em casa”, reclamou uma senhora do penúltimo andar. Os soldados pareciam se preparar para invadir o prédio quando de repente, um último grito, sonoramente alto selara o êxtase da platéia: “Ai, meu Deus. Eu vou gozar porra! Eu vou gozar...”. Neste exato instante a multidão foi ao delírio. Gritos, assovios e até aplausos se misturaram as ofensas. A algazarra se espalhara por toda a avenida e as pessoas se divertiam em zombarias. Os policiais coordenaram a dispersão do público e a noite começou a voltar ao normal. No silêncio do quarto o indiferente casal caminhou nu até o banheiro. Depois de um tempo reapareceu na janela, juntos observaram o céu sob o aplauso de muitos. Discretamente fecharam as cortinas e por fim apagaram as luzes.

Aos poucos os andares foram escurecendo até que os prédios se aparam por completo. As pessoas se recolheram e o silêncio se fez na cidade. Tudo voltava ao normal. Nunca mais o casal foi visto e para o bem dos bons costumes e moral puritana da cidade a sexualidade voltou a se reservar ao silencio dos quartos.

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