domingo, 23 de janeiro de 2011

A TRANSEXUALIDADE E O SENSACIONALISMO DO BIG BROTHER



A TRANSEXUALIDADE NA MÍDIA

Abaixo do meu prédio alguns camelôs ocupam a calçada. Vende-se de tudo, desde CDs e DVDs piratas, a bombons e bebidas. Na esquina já é famosa a carrocinha de variedades, onde durante as noites vários moradores da redondeza se reúnem para trocar conversas. Hoje a temática era o famoso programa global, o Big Brother 11. Cheguei em meio a conversa, mas logo identifiquei sobre o que falavam. “O que é isso?”, disse uma comerciante a quem compro cigarros. O assunto girava em torno da participação da primeira transexual no reality show e as colocações fervorosas confirmavam o desconforto em falar sobre a temática. “O que vou dizer aos meus filhos, que podem ser homem ou mulher quando quiserem?” Questionava indignada a senhora enquanto reabastecia seu copo de cerveja. “E ainda dizem que ela vai pousar nua. Quero ver se ela é mulher mesmo”, completava um senhor que a acompanhava. “Tá essa revista vou fazer questão de comprar, só pra ver se ela tem ´priquita` de verdade”. O comentário apesar de me parecer meio cafajeste provocou risadas. “E se ela tiver?” perguntou a astuta comerciante tentando apimentar a discussão. “Aí, vou levar ela pro meu banheiro”, completou de forma sarcástica o bem humorado senhor. Apesar da vontade em acompanhar a conversa, resolvi que não seria tão sensato me meter naquela animada celeuma que prometia varar a madrugada.

Por fim, a transexualidade saiu do anonimato das ruas e chegou definitivamente aos lares. Através da mídia o “transtorno de identidade de gênero” invadiu milhões de casas nesta última semana. O tema vem ganhando força nas discussões em sites da internet, revistas e jornais, além dos programas televisivos. Fato positivo quando se considera o papel da mídia enquanto instrumento de formação de opiniões, contribuindo diretamente para as transformações necessárias a uma sociedade mais justa e igualitária. Fato negativo, porém, quando a temática é explorada como simples alavancador de ibope sem grandes compromissos com o público e principalmente com os sujeitos envolvidos e alvos dos refletores ávidos por novidade. É que neste sentido a transexualidade torna-se apenas uma curiosidade, e não uma vertente da sexualidade humana que precisa ser compreendida e respeitada em sua essência.

Por mais que se fale sobre os efeitos negativos do Big Brother sobre a grande maioria da população, não se pode desconsiderar seu caráter “inovador” em transformar temas ainda tabus em melodramáticos folhetins do horário nobre. Foi assim que aconteceu com a homofobia “Douradamente” premiada da edição passada e também com a homossexualidade panfletária de Jean Willis. No primeiro caso premia-se o estereótipo da masculinidade exacerbada com demonstrações gratuitas de violência e discriminação. No segundo premia-se a vitima que clama justiça ao público. Contradições? Com certeza não se considerarmos que o único compromisso do programa restringe-se ao fortalecimento do mechandising dos patrocinadores que financiam a maior atração da televisão brasileira. Assim, a polêmica torna-se o grande mote para garantir os recordes sucessivos de audiência, confirmados em onze edições nacionais. Evidencia-se a velha máxima de que nada desperta mais interesse do que a vida alheia. Estimula-se então o voyeurismo popular e ao prazer gerado alia-se o direito de escolha sobre o que pode ou deve ser observado por todos. Numa grande inversão de valores ilude-se ao telespectador levando-o a acreditar em um utópico poder de decisão pelo voto pago. Desta forma vende-se a idéia de um programa pretensamente interativo e democrático onde caberia ao público decidir o destino dos personagens (reais?).

Porém, apesar de todas as manipulações e induções magistralmente regidas pelo (já desacreditado) apresentador Pedro Bial, não se pode desconsiderar a opinião pública (apresentada) enquanto fator de análise. Os índices de rejeição ou aceitação a determinados temas ou sujeitos não deixam de desenhar um retrato de nossa sociedade. Seria, por exemplo, precipitado observar a “coincidência” dos três primeiros candidatos a eliminação serem negros? E o que dizer sobre o fato de se oferecer ao público o poder de escolha entre um negro gay, uma transexual negra e uma negra bailarina? O que estava em jogo, à eliminação de simples competidores ou de identidades sexuais representadas pela heterossexualidade, homossexualidade e transexualidade? E por fim, o que pode nos dizer os 49% de rejeição da Ariadne?

De repente o público teve que lidar com uma personagem misteriosa que tinha realizado um grande sonho. Além de negra, Ariadne se disse transexual e revelou que a prostituição foi o meio viável a efetivação de sua identidade feminina, conseguida através da cirurgia de transgenitalização, ou mais popularmente, cirurgia para mudança de sexo pela qual pagou. Assim, etnia, gênero, classe social e “transgressão sexual” parecem ter se tornado, direta ou indiretamente, motivos mais que suficientes para sua eliminação. Propagar em horário nobre da Rede Globo que se entende ou se reconhece quanto “tri”, por gostar de homens, mulheres e “bichas” não faz de Paula (outra concorrente) uma ameaça a tradição burguesa de nossa sociedade; assim, como já não incomoda o fato do Lucival e do Daniel assumirem publicamente sua homossexualidade, temáticas já comuns em suas telenovelas; ou ainda da Diana falar abertamente sobre sua lesbiandade e se categorizar como “pan” em referencia a abertura para se relacionar afetiva e sexualmente com qualquer pessoa, independente de orientação ou identidade sexual. Mas falar publicamente, para milhões de brasileiros, que preferiu abrir mão de sua masculinidade para se sentir mais confortável enquanto mulher parece ferir de vez a norma reguladora da sexualidade e moral da família tradicionalista.

Independente de minhas opiniões sobre a qualidade e repercussão de tal programa, tendo a considerar mais que oportuna a possibilidade de se evidenciar a discussão relativa ao direito concedido pelo SUS – Sistema Único de Saúde, relativo à gratuidade da cirurgia de transgenitalização. Também indiferente a divergência de opiniões, considero prova de que o Brasil vem progredindo e avançando no entendimento ao que se refere à garantia de direitos para todos. O grande risco dessa discussão tão alardeada pela mídia nos dias atuais, muitas vezes de forma irresponsável, parece se referir ao fortalecimento e/ou retorno da concepção patologizante da transexualidade. Nunca se falou tanto em transtorno da identidade de gênero, e neste ponto é preciso entender que não se trata apenas de um simples desejo que um indivíduo possa ter em ser do sexo oposto. Mas de um complexo de sensações, emoções e desejos que formam e estruturam o entendimento deste indivíduo enquanto pessoa.

Para além do pensam alguns especialistas e profissionais da medicina e da psiquiatria, vista ainda como anomalia e/ou distúrbio, a transexualidade precisa ser entendida e concebida enquanto formação de identidade e personalidade individual. A grande dificuldade e logicamente motivo dos transtornos emocionais e psíquicos, que não podem ser generalizados, consiste das implicações sociais, legais e culturais de alguém se reconhecer enquanto mulher num corpo de homem, ou vice-versa. Assim, a dificuldade é muito mais de inadequação social do que propriamente emocional. E esta quando corre, com certeza deriva também das normas reguladoras de determinadas sociedades.

Talvez nesse sentido, o Big Brother pudesse ser mais responsável promovendo debates sobre as temáticas exploradas, ao invés de lançar dúvidas reforçando estereótipos e preconceitos. Afinal de contas é papel da mídia esclarecer questões abordadas e exploradas em seus programas. Isso sim contribui de forma efetiva para o desenvolvimento de um povo. Por isso, neste quesito penso na importância de se salientar o irreparável despreparo do apresentador, que a cada dia se consolida, e só confirma, sua vocação quase natural para mero apresentador dos shows de calouros a celebridades instantâneas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário