sábado, 8 de janeiro de 2011

TRANSEXUAIS E TRAVESTIS - RETOQUES E REFLEXÕES SOBRE OS CORPOS


São Paulo, 2010



TRANSEXUALIDADE - OPÇÃO OU ORIENTAÇÃO SEXUAL?

Em outubro passado este blog completou um ano de existência. Iniciei minhas reflexões falando sobre mim mesmo, talvez  na busca de autoconhecimento. Confesso no entanto, certa surpresa com as repercussões que tais reflexões e pensamentos podem ter causado e ainda estarem causando. Acredito que esse é um espaço democrático onde as pessoas podem e devem contribuir ao expor suas opiniões, pois desta forma ampliamos as discussões de temas muitas vezes invisibilizados por diversos motivos que não nos cabem agora. Independente das [dis]cordâncias, saliento mais uma vez, que essas são apenas minhas reflexões e por isso partem do entendimento e da percepção de como vejo o mundo, com posicionamentos políticos e ideológicos que são meus e não necessariamente precisam ou pretendem se tornar coletivos. Desta forma, não objetivo levantar bandeiras, mas apenas me dar o direito de opinar sobre assuntos que fazem parte de meu cotidiano.

Talvez por isso, muitos “digam que sou ácido, mas também me achem doce. Prefiro dizer que sou humano e por isso convivo com minhas próprias contradições. Vivo em eterna ebulição e alguns acham que tenho picos de sensibilidade. A esses dedico meu respeito e adimiração, pois que me conhecem e reconhecem enquanto pessoa. Aqueles que me olham, apenas observam, e a partir de suas próprias convicções tendem a me rotular. Contudo, àqueles que se arriscam a me conhecer, correrão sempre o risco de não conseguirem me adequar ou enquadrar em seus modelos "estanques" de comportamentos pré-moldados. Sou crítico e por isso me chamam de "Espetácio". Alfineto e incomodo porque sou direto, sem rodeios, sem máscaras e Sem Luvas” (trechos da primeira postagem). E assim me posiciono no mundo por acreditar que essa é a minha identidade, e por entender que esta se estabelece pela diferença.

Coaduno então, com a teoria de que nos reconhecemos a partir do outro, a partir do qual também nos constituímos. Neste contexto, diferença e identidade são inseparáveis, só existindo uma em razão da outra, o que a torna “Legal” (inclusive no âmbito jurídico) por possibilitar nossa individualidade enquanto sujeitos do coletivo. E é desta diferença que me proponho mais uma fez a reflexão. Diferença que tanto tem causado as guerras, os conflitos, os mal entendidos, as injustiças e as barbáries, sejam através da subjugação, das ameaças, das agressões e da morte do outro. Em muitos dos treinamentos, palestras e workshops que tenho desenvolvido sobre identidade sexual, voltados a técnicos da educação, psicologia, assistência social e/ou da área jurídica entre outras, bem como a turmas de estudantes de faculdades e universidades, um questionamento comum é sobre como denominar a atração sexual e desejo que alguém sente ou pode sentir por outra pessoa. Desejo e atração que se diferenciam da nossa, e que consequentemente por isso, nos parece fugir e contrariar a norma. Acredito que neste ponto torna-se pertinente nos questionar sobre que norma estamos falando. Da que estabelecemos enquanto premissa para nortear nossas próprias concepções de comportamentos e condutas no âmbito pessoal e social; ou da norma construída culturalmente, e que até hoje tenta se estabelecer enquanto regulação moral da sexualidade humana? No fringir dos ovos o grande embate parece consistir no fato da grande maioria, através de suas concepções pessoais, tender a classificar e/ou justificar as orientações sexuais do outro enquanto “opção”, e não enquanto “orientação” tão natural quanto a sua própria.

No senso comum a denominação “opção sexual” tem ganhado força por se acreditar que tanto o desejo quanto a atração sexual pode ser direcionada ao nosso bel prazer, e assim, optar-se-ia em direcioná-los a homens ou mulheres. Considerando que a norma heterossexista estabelece as relações sexuais entre pessoas do sexo oposto como regra comum e natural, parece que tal denominação se mostra, muitas vezes, carregada de juízos de valores relacionados à “safadeza ou imoralidade” alheia. Desta forma, não se mostra incomum pessoas verbalizarem que os homossexuais, por exemplo, escolheriam gostar e se relacionar afetivo e sexualmente com pessoas do mesmo sexo, o que se configuraria por extensão como opção consciente pelas “práticas desviantes a norma”. Mas muitas vezes, o que está por trás de tal concepção e posicionamento é o julgamento de valor moral sobre o caráter do outro, base dos tantos preconceitos e também da homofobia.

Acredito que tal concepção equivocada encontra-se pautada no processo de formação cultural e na educação que por muito tempo nos limitou a uma discussão acerca do sexo ao invés das sexualidades. Por séculos nos restringimos a falar sobre os órgãos genitais, que enquanto conformação particular distingue o macho da fêmea, atribuindo-lhes um papel determinado na geração. Dentro desse contexto ao pensarmos o sexo, imediatamente relacionamos o tema aos conjuntos das pessoas que possuem o mesmo sexo biológico, ou seja, grupos que dividem homens e mulheres. Em outras palavras, falar em sexo nos leva a pensar automaticamente em pênis e vagina, bem como nos atos e práticas possíveis e permitidas a cópula através de seus corpos, que se traduzem pontualmente no ato sexual em si. De outra forma, falar em sexo nos leva diretamente aos papéis e representações sociais do que vem a ser homem e a ser mulher na sociedade, distinguindo as coisas de um e de outro.

No entanto no esquecemos, ou ainda pior, não conseguimos ampliar a discussão para campo analítico da qualidade desse sexo ou sexual, o que se configuraria na discussão sobre a sexualidade. Presos ao tabu inicial não nos permitimos ir além do aceitável socialmente, o que parece contribuir diretamente para o desconforto sentido pela maioria dos profissionais e estudantes durante tais treinamentos ou conversas. Um ótimo exemplo dessa tensão e incomodo refere-se às dificuldades das pessoas em expor suas opiniões quando questionados em público. A sexualidade então será sempre descrita como “relação sexual”, “ato sexual” e/ou “fazer amor”. Quase nunca se destacará o prazer e o erotismo envolvidos, muito menos, os jogos e variações possíveis que possibilitam explorar os corpos enquanto conjuntos de pontos e fontes sensoriais a serem descobertos e estimulados. Nesse prisma o exercício da sexualidade tende a se mostra “mecanicamente” restrito aos genitais, impedindo a percepção e concepção do corpo num contexto totalitário enquanto fonte de prazer, que a meu ver nada mais é do que o resultado moralista empregado pelo modelo higienista das décadas passadas.

Outro aspecto que chama a atenção é a definição de prazer diretamente limitada ao gozo. Gozo esse que se configura na ejaculação. Logo, para se sentir e demonstrar, ou ainda, demonstrar sentir prazer com ou por alguém é preciso que a ejaculação se faça presente. Chamo novamente atenção para o fato de se fazer necessário refletir sobre o que vem a ser “gozo”. Refere-se esse ao orgasmo, que é puramente orgânico e biológico; ou ao prazer e satisfação sentidas e provocadas pelo toque e contato do e com o outro? O orgasmo é apenas biológico ou psicológico e subjetivo? A gente goza apenas com a genitália ou com o corpo como um todo? Toda essa reflexão que proponho tem muitas vezes viabilizado uma preparação necessária para se pensar nas variedades e possibilidades do prazer e da excitação sexual gerados pelos corpos. Uma tentativa de nos desviar do modelo anatomo-fisiológico, centrados em corpos de machos e fêmeas, para pensarmos em instâncias mais amplas e assim transitarmos por perspectivas menos rígidas de masculinidades e feminilidades. Para adentrarmos num universo de sexualidades e identidades sexuais mais fluidas, onde transitam não só os corpos, mas os prazeres e as excitações sejam essas, hétero, gays, lésbicas, bi ou trans.

Especificamente relativo às pessoas transexuais, femininas ou masculinas, penso que uma visão limitada do gozo enquanto resultante unicamente do biológico inviabiliza o entendimento necessário a concepção mais ampla de prazer. Se ficarmos presos a tais concepções, sempre nos equivocaremos em acreditar e/ou creditar que as pessoas trangenitalizadas (em outras palavras, pessoas que se submeteram a cirurgia de mudança de sexo) não gozam. Porém, se pensarmos na perspectiva de que o gozo mostra-se subjetivo, no sentido de algo que é individual, pessoal e particular, entenderemos que este integra o domínio das atividades psíquicas, sentimentais, emocionais e volitivas (ato pelo qual a vontade se determina a alguma coisa) de cada sujeito individualmente. Assim, esse gozo foge do conceito limitante do biológico para se estender/expandir numa concepção de prazer que gera bem-estar emocional, orgânico e psíquico. Ainda nessa perspectiva, o orgasmo transcende o fisiológico para se alargar no campo das sensações ou sentimentos agradáveis, harmoniosos, que geram satisfação e deleite não só ao corpo biológico, mas a alma, sede de afetos, dos sentimentos e das paixões.

Talvez essa concepção, se mostre inclusive como meio viável a reflexão às tantas mulheres e aos tantos homens, “não-trans”, que por vários motivos não atingem o orgasmo durante o ato sexual compartilhado com o outro. E neste sentido, talvez o alívio gerado pela compreensão de que não necessariamente se precise gozar especificamente pela genitália, lhes possibilitem a descoberta de muitas outras possibilidades de prazer e excitação que os levem ao clímax sexual. Acredito que as “mulheres-trans” e os “homens-trans” têm aberto em nossas sociedades e culturas o espaço necessário para a resignificação individual e coletiva dos velhos conceitos que mantém a sexualidade no campo dos tabus (entendendo-se por extensão a proibição convencional imposta por tradição ou costume a certos atos, modos de vestir, temas, palavras, etc., tidos como impuros, e que não pode ser violada, sob pena de reprovação e perseguição social).

E por fim, ainda no universo das reflexões sobre temas viabilizados pelas sexualidades tidas como transgressoras, se faz necessário entender que “opção” relaciona-se diretamente ao ato ou faculdade de optar, ou seja, se configura como livre escolha do indivíduo. De outro modo, “orientação”, como a palavra mesmo já exprime, relaciona-se ao sentido de direção dada, impulso, tendência e/ou inclinação. É neste sentido, que no campo das sexualidades humanas (que deve ser entendida no plural, pois que têm se mostrado variável e flexível) não se pode pensar em “opção” enquanto determinante fundamental a construção de uma identidade sexual. Mas ao contrário, torna-se necessário o entendimento dessa construção enquanto resultado de uma “orientação”, ou seja, do sentido e foco para qual o nosso desejo se encontra e/ou se mostra direcionado. De forma mais simplista podemos dizer que não escolhemos de quem gostar, mas apenas nos descobrimos gostando de alguém ou de algo. E este ou isto se torna nosso objeto do desejo, independente de ser masculino ou feminino. O direcionamento do nosso desejo não é fruto de processos conscientes. Assim, no campo dos desejos, prazeres e excitação a única “opção” que realmente, e conscientemente, nos cabe é decidir por nossa felicidade ou frustração emocional.

Resta-nos então entender que enquanto sujeitos do desejo e de direitos não precisamos mais, e muito menos devemos, nos restringir aos corpos biológicos, que nos é dado. Mas ao contrário, nos expandir em possibilidades e viabilidades dos corpos que não se constituem apenas enquanto carne, mas sim constituído e construído num conjunto de prazeres, sentimentos, sensações e gozos, ainda que para isso se torne necessário resignificá-los e adequá-los a nossa identidade. É neste sentido que acredito e aprovo as iniciativas e motivações tecnológicas da medicina moderna que tem possibilitado a construção de novos corpos. Pois para mim não são os corpos biológicos que devem determinar nossa identidade, mas inversamente, são as identidades que devem adequar e moldar esses corpos ao nosso bel prazer para nos fazer íntegros conosco e perante o coletivo.

E fechando momentaneamente as reflexões registro meu desconforto relativo aos termos “reparativo” e “corretivo” tão comumente empregados as cirurgias de transgenitalização. Em minha concepção não existem corpos errados, logo não existindo o que reparar ou corrigir. Existem sim, corpos que precisam de retoques e aprimoramentos possíveis através da sapiência e arte do homem, o que o torna divino em essência, como também os são todos os corpos, transgenitalizados ou não.

São Paulo, 2010.

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