quarta-feira, 14 de agosto de 2013



O ASSASSINATO DO SENSO COMUM NA CLASSE MÉDIA BURGUESA.

O senso comum, cotidianamente nos diz que a criança é símbolo máximo de pureza e inocência. A ciência a classifica como sujeito em desenvolvimento físico, emocional e afetivo. A partir disso, a legislação define os parâmetros do cuidado, da proteção e dos direitos, absorvidos e introjetados de formas efetivas. Estabelecem-se os padrões e as generalizações, quase universais, afim de que a sociedade possa se sentir mais confortável e tranquila diante de um ser tão complexo, capaz de desafiar os mais fossilizados paradigmas que regem o comportamento humano. De repente algo parece fugir do controle e a sociedade se mostra perplexa diante de uma constatação inevitável: não conhecemos, e muito menos dominamos o funcionamento exato das crianças. O desconforto se torna geral por nos obrigar a revisitar conceitos, buscando por respostas que possam respaldar a construção de novos saberes que expliquem e justifiquem nossas imprecisões.

O caso do pré-adolescente, Marcelo Pesseghini, 13 anos recém-completos, que durante a calada da noite executa com tiros precisos e sequenciais, o pai, a mãe, a avó e uma tia, serve de disparo para colocar a sociedade em estado de histeria coletiva. A situação torna-se mais complexa ao se saber que após os assassinatos o garoto dirige o carro da família até próximo à escola onde estudava, permanece em seu interior até o amanhecer, e então se dirige para a sala e assiste às aulas normalmente. Ao final do turno escolar, volta de carona no carro do pai do melhor amigo e entra em casa como se nada tivesse acontecido. Seu corpo é encontrado caído ao lado do da mãe, com um tiro na cabeça, denotando possível suicídio. O macabro quebra cabeças assusta e instiga tanto a sabedoria popular quanto a científica. O que teria se passado durante o período da primeira execução até o suposto suicídio do garoto torna-se a chave para desvendar um mistério que não deixou testemunhas aparentes. Apressadamente sociedade e ciência se agitam a lançar hipóteses. Teria sido a família vitima de uma chacina? Mas, quais os reais motivos? Teria sido o adolescente o verdadeiro assassino? Teria ele se arrependido e posteriormente atirado contra a própria cabeça? E quais teriam sido os seus reais motivos? A motivação para os crimes é a resposta que falta e que deixa a sociedade em suspense. É a peça que pode completar o jogo, que movimenta a trama, que desperta a curiosidade ou o instinto investigativo de cada um. Duas hipóteses, duas alternativas para o sossego ou desassossego da sociedade.

Se a chacina for comprovada a sociedade volta a respirar de forma mais tranquila. Afinal, seria apenas mais um ato de violência, tão comum e corriqueiro, com os quais já nos acostumamos. A chacina sepultaria a necessidade de se repensar os modelos de cuidados com as crianças vigentes. Seria a prova de que ainda somos todos sãos. Estaríamos a “salvos”. Mas, pelo contrário, a comprovação de que um pré-adolescente de classe média e fruto de uma família estruturada (como costumeiramente gosta a sociedade de classificar a família nuclear burguesa) possa cometer um ato de tamanha insanidade, nos exige a responsabilidade de uma suposta coautoria. Afinal de contas, assassinar todos os membros de uma família feliz, e consequentemente, aparentemente equilibrada, não é reconhecido entre nós como coisa normal. E nossas crianças são normais, porque assim as fizemos. Porque assim acreditamos durante séculos.

Então restaria o caminho da patologia. E nada melhor ao senso comum do que uma mente psicopata para justificar, e quem sabe, explicar satisfatoriamente, o planejamento aparentemente meticuloso e calculado de um crime com proporções cinematográficas. Com certeza, acalentaria e abrandaria a aflição social se fosse ficção, e assim, bateria o recorde de bilheteria. Mas como é real a coisa muda de figura. Uma criança não pode ser classificada como psicopata, uma vez que sua personalidade ainda não está totalmente estruturada. Só lembrando, crianças e adolescentes são sujeitos em desenvolvimento. Também não seria característica de um psicopata o arrependimento e correlativamente o suicídio, alertam os especialistas. Poderia então um pré-adolescente agir de forma desregulada simplesmente sobre a influência de jogos eletrônicos? Poderia um pré-adolescente de classe média, de repente, em um processo catártico ou se simples perversão assumir a personalidade doentia do personagem virtual (ou será fictício?) e agir de forma descontrolada, exterminando inimigos em potenciais ou imaginários?  Então, pobreza e violência não são sinônimas, como nos acostumamos a acreditar?

Se mudarmos o cenário do crime para uma área de baixa renda econômica, ou seja, para as antigas favelas (que devido ao movimento do politicamente correto resolvemos renomear como comunidades populares na tentativa de camuflar as desigualdades sociais) o desconforto coletivo seria o mesmo? Provavelmente o impacto e a repercussão na mídia não seriam. Muito menos a comoção popular. Então o que realmente nos incomoda: o crime em si, ou a proximidade com nossa cultura de médio burguês, que se respalda errônea e supostamente na diferenciação e supremacia da racionalidade? Ricos e pobres pensam e agem de forma diferenciada, sem dúvida. Mas, em que, e a partir de que contexto? Existiria uma natureza para o crime; ou seja, existiria uma predisposição genética para o crime, ou qualquer ser humano poderá agir e/ou reagir diante e/ou mediante aos contextos? E estes, seriam biológicos, emocionais, políticos, econômicos ou sociais? Ou um conjunto ou mescla de tudo?

No caso Persseghini existiria alguma semelhança ou identificação entre o herói do jogo eletrônico (que elimina supostos inimigos com tiros precisos em suas cabeças), e seus pais policiais, também heróis sociais, que atiram e matam em nome da ordem e do bem comum? Quais seriam as consequências para a formação da personalidade e do caráter de uma criança, o contato direto com a violência, e consequentemente com a banalização da morte, seja no campo virtual ou real? Onde, quando e como, esse dois campos e/ou espaços de interação social podem se misturar? Como uma criança estimulada desde cedo a manipular armas de fogo, a dirigir automóveis, e a agir como adulto, constrói os conceitos e significados entre o certo e errado, o bom e o mau, entre o herói e o vilão, entre o real e a fantasia, fundamentais para o estabelecimento dos limites entre o possível e o impossível, entre o aceitável e o incoerente?

Com esse tipo de tragédia já não tão incomum as sociedades modernas, não morrem apenas pai, mãe, avó, tia e filho, mas morre um pouco a segurança, comodidade e a confiabilidade de conceitos ainda inquestionáveis como família, sociedade e inocência. A distância entre a normalidade e a anormalidade é posta em questionamento, assim também como a coerência de seus parâmetros de definições. No rastro vem a obrigação de se repensar, ou pelo menos de se refletir sobre os papeis de pai, mãe, educadores, assim como os modelos de educação, sociabilidade e justiça. Em ultima hipótese resta-nos o esquecimento, como já fizemos sucessivamente em situações semelhantes. O espanto é passageiro é sempre passageiro. A dor sempre cessa cicatrizando as feridas. Nós humanos temos a tendência à acomodação. Depois de certo tempo, todo fato se torna passado para que o conforto se traduza em conformação. O passado torna-se próprio dos próximos, só sendo revisitado pelo coletivo quando novamente surpreendido. Quem sabe em uma próxima situação semelhante a gente ainda consiga se emocionar por mais um tempo? Quem sabe não conseguimos voltar a refletir sobre nossas corresponsabilidades? Quem sabe não estaremos prontos para pensar em mudar a lógica do mundo?

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