quinta-feira, 3 de março de 2011

O CUIDAR E O PODER NA PRÁTICA DA GARANTIA DE DIREITOS

Praia do Picãozinho - Paraíba

















O QUE SOMOS OU QUEREMOS SER - Ideal ou Fantasia?



Esta semana tive o prazer de participar de uma Oficina de Alinhamento Teórico-Metodológico, promovida por uma instituição internacional, que integra o SGD – Sistema de Garantia de Direitos e atua na perspectiva do Enfrentamento a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil. Além da discussão a cerca da temática, um dos pontos tratados que mais me chamou a atenção dizia respeito aos Cuidados com o Profissional. Dentro dessa perspectiva fomos estimulados ao refletir sobre os sentidos do Cuidar. Palavra derivada do latim, “Cogitare”, que entre outros sentidos pode-se entender pelo ato de prevenir-se, acautelar-se, no sentido de ter cuidado consigo mesmo, com sua saúde e aparência. Num sentido mais amplo, pode-se dizer que cuidar corresponde a provocar inquietação. Assim, poderíamos dizer que o ato de cuidar correlaciona-se a prática da reflexão e provocação de mudanças de pensamentos e comportamentos.

Fomos levados imediatamente a pensar sobre nossa prática profissional enquanto atores técnicos, na assistência social e no sistema de garantia de direitos. Mais especificamente, comecei a refletir sobre minha própria atuação por questões obvias. O fato é que ao estarmos diretamente em contato com todo tipo de modalidade da violência, corremos o grande risco de nos tornarmos também, mesmo que de vez em quando, violadores de direitos. Talvez por introjetarmos determinadas práticas, falta de alternativas de ações mais concretas, outra variedade de fatores, além de nossas concepções pessoais, muitas vezes pautadas em nossa própria construção de sentidos que se deu (e se dá) no processo de inserção em uma determinada cultura, trazemos em nosso bojo conceitos preconcebidos que constantemente precisam ser revisitados e reavaliados. E vale salientar como esse exercício do cuidar de si mesmo nos traz gratas surpresas e constatações surpreendentes quanto aos preconceitos equivocadamente introjetados durante nossa jornada de amadurecimento pessoal e profissional. Na verdade poderíamos estabelecer uma relação imensa de fatores motivadores para a formação de nossas concepções pessoais, que logicamente interferem em nossa condução profissional, mas que acima de tudo revela traços de nossa própria personalidade, o que não seria meu objetivo neste momento.

Basta-nos então, por hora, avaliar o processo de adoecimento destes profissionais, que expostos as violências cotidianas, correm o risco de cometerem equívocos, mesmo que movidos pela crença das melhores práticas. E isso não é raro, o que nos leva a perceber, que em muitas situações o próprio sistema de proteção se torna também violador dos direitos humanos. E neste ponto, penso que se o sistema é feito por pessoas, que os constroem e/ou estruturam a partir de suas perspectivas de mundo (talvez filosofias de vida) e crenças, o problema não esteja no sistema em si, mas nas pessoas de fato. Dentro dessas premissas, acredito que o grande educador e filósofo brasileiro, Paulo Freire, já postulava que “todo oprimido se torna um opressor quando detém o poder”.

Mas qual relação entre o autor, que se destacou por seu trabalho na área de educação popular, voltada tanto para a escolarização como para a formação de consciência, com o ato do cuidar dos profissionais em questão? É que de acordo com sua teoria sobre a “pedagogia do oprimido”, o mesmo destaca a importância e eficácia do diálogo com as pessoas mais simples, não só como método de alfabetização, mas como um modo de ser realmente democrático. E aí poderemos pensar: afinal estamos falando do cuidar ou de democracia? Ao passo que destacaria que não existe cuidado, no sentido real da palavra, em regimes ou gestões antidemocráticas. É que a centralização de poder cerceia a liberdade de expressão e a criatividade humana, fundamentais para a resolução de problemas. Sem liberdade não existe, inclusive construção de novos conhecimentos, e logicamente gera o movimento de resistência, noção básica para todo e qualquer gestor que deseje ser bem sucedido em seus intentos.

Assim, em minha percepção, que logicamente não se traduz como verdade absoluta, vivemos ainda nos ambientes de trabalho sofrendo os reflexos da velha e cruel ditadura que nos martirizou e vitimou por mais de duas décadas. A ditadura é o exemplo máximo da negação de direitos por contrariar as premissas da liberdade e vida social saudável. Talvez seja a base do tão falado nos dias atuais “Assédio Moral”, que se respalda nas relações de poder. Mas se o poder é relativo, caber-nos-ia uma maior reflexão sobre o que de fato significa poder. Assim, podemos entender que tal palavra, derivada também do latim, “potere”, significa ter a faculdade de; possibilidade de; autorização para; meio de, conseguir; força para; ter calma, paciência para; ou ainda, ter força de ânimo, energia de vontade, para; ter o direito, a razão, o motivo de; o que coaduna com a capacidade de gerenciar de forma democrática.

Mas dentro dessa relatividade e complexidade de sentidos relativos a uma mesma palavra, o poder também pode se configurar como dispor de força de autoridade; ter força física ou moral; ter influência, valimento; robustez, capacidade de ter grande influência ou poder sobre algo ou alguém. Neste aspecto, o que desejo destacar é que o poder e o cuidar precisam andar juntos e alinhados em entendimento de sentidos. O poder coletivo é fruto da união dos poderes individuais, logo, se engana quem pensa que detém o poder soberano e absoluto, por que correrá sempre o risco de se tornar tirano. E tirania, que vem do grego “tyrannia”, configura-se enquanto prática de governos e gestões opressores e cruéis, pautados na violência e opressão do povo, representação máxima da coletividade.

O objetivo maior então é refletir sobre o lugar que muitas vezes ocupamos e nos empoderamos, seja pelo poder delegado e atribuído, ou violentamente autoproclamado. Nesta segunda, o cuidar fica comprometido, até por o discurso torna-se incoerente com a prática. O cuidar do outro, partirá de uma concepção egocêntrica de quem detém (ou acredita deter) o poder, pois que na verdade se busca e se pleiteia o cuidar de si próprio, que se traduzirá consequentemente, em autodefesa. A fragilidade de quem tem como prática o poder autoritário se revela na busca incansável de autopreservação, talvez da própria sanidade. É resultado, como diria Freud, da fragilidade egoica, que possivelmente pode ser solucionada a base de psicoterapia. E isso se explica pelo fato do processo de adoecimento se dar de forma inconsciente e no universo da subjetividade. Neste sentido, o sentimento de perseguição causa estranhamento e alucinações persecutórias, onde o outro se tornará sempre um inimigo potencial. Quanto maior a aproximação do outro, maiores os riscos e ameaças sentidas pelo tirano. Isso é como equação matemática, não existe possibilidade de erro.

Desta forma, quando escolhemos ou definimos trabalhar ou atuar, ou ainda, nos entender e reconhecer, enquanto cuidadores é preciso em primeiro lugar cuidar de nós mesmos. Não se cuida de alguém sem antes nos cuidarmos. Essa é a premissa básica do processo do cuidar do outro. É preciso provocar inquietações em nós mesmos, até para que possamos perceber se estamos no lugar certo, ou se apenas buscamos resoluções para nossos próprios conflitos e traumas pessoais. Ainda evocando Freud, diríamos que a construção da personalidade de um indivíduo se dá em um processo contínuo, mas que tem a base na infância. Com certeza uma criança desprovida de acolhimento, proteção e sentimento de pertencimento, no futuro se desenvolverá enquanto sujeito inseguro, desconfiado e ameaçado, dificultando suas relações pessoais e sociais. A desconfiança no outro embasa o sentimento de insegurança tornando-o pronto para o ataque sempre que se sentir frustrado. E isso também é matemático, pois que é científico e comprovado pelos estudos sobre mentes paranóicas.

Talvez o importante seja entendermos que o perigo nem sempre é, ou estar no outro, mas em nós mesmos. Para quem tem (ou acredita ter) e usa o poder autoritariamente cabe a reflexão sobre as fragilidades pessoais, seja no âmbito teórico necessário ao cargo que ocupa, ou ainda no campo emocional. E isso é cuidar de si mesmo, preparando-se para cuidar do outro, seja através de ações próprias e individuais ou de políticas públicas construídas para beneficiar o coletivo e não para favorecer interesses individuais. Assim, quem assume um lugar, independente de qual seja, deve se responsabilizar por suas escolhas. É preciso entender que a vida é dinâmica, e que tanto no campo profissional como na vida cotidiana, os lugares de oprimidos e opressores se revezam sucessivamente. Por isso é importante e fundamental definirmos que lugar se quer ocupar: o de eternos injustiçados e indefesos, que correm o risco de oprimir ao ocupar o poder; ou de indivíduos atuantes, que independentemente das situações adversas se empoderam conscientemente de sua faculdade de conhecimento e poder para modificar estruturas e sistemas opressores.

E como estamos em tempo de carnaval, nada melhor do que exercitar nossas fantasias mais arcaicas (infantis, psicanaliticamente falando) de poderes através das personagens que se traduzem em figuras de autoridade. Autoritárias ou democráticas, essas nos permitem também a reflexão sobre o lugar que gostamos ou gostaríamos de ocupar, e principalmente, dos lugares pelos quais gostaríamos de ser reconhecidos perante o coletivo. Por isso, antes de investirem na fantasia, que para muitas pessoas ultrapassa o período de Momo, melhor investirem no autoconhecimento e fazer da festa também um espaço de reflexão sobre a correlação necessária entre poder e cuidar na nossa prática profissional. Como um observatório da sanidade humana, onde inclusive se pode recorrer aos recursos do uso das máscaras para proteger ou esconder nossa própria identidade. Considerem contudo, que apenas no carnaval é permitido misturar fantasia e realidade, pois que se configura como espaço do autorizo as nossas loucuras e desejos mais inconfessáveis. O resto do ano é espaço da consciência plena e necessária ao exercício e prática do cuidar, primeiro de si, e depois do outro. Pensem nisso, vale a reflexão.

Bom carnaval a todos e todas.

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