sexta-feira, 12 de novembro de 2010

HISTÓRIAS DA NEGRITUDE BRASILEIRA - Capítulo II: A Ausência dos Negros nos Contos de Fadas


Recife, 2009.






















O PROCESSO DE EXCLUSÃO NAS HISTÓRIAS INFANTIS

Como todo bom nordestino cresci ouvindo histórias e causos populares. Na verdade, muitas dessas eram lendas fantásticas, oriundas das culturas indígenas e africanas. Assim, muitas vezes peguei no sono ouvindo as travessuras do “Saci-Pererê”, as maldades da “Comadre Fulouzinha”, do “Boi-Tatá” e/ou do “Curupira”, ou mesmo as assombrações da “Mula sem Cabeça”. Essas histórias fazem parte do folclore Brasileiro, e principalmente nordestino, que tem se configurado como o conjunto das tradições, conhecimentos e crenças populares, expressas em provérbios, contos ou canções. Acima de tudo, o folclore (palavra derivada do inglês: Folk = povo, e Lore = saber) representa o conhecimento das tradições de um determinado povo.

Cresci também ao som das histórias mais aveludadas de origens européia, recheadas de príncipes e princesas de cabelos louros e olhos azuis. Eram os contos de fadas sempre pautados nas dicotomias sociais. Assim aprendemos a distinguir o bem do mal, o belo do feio, e o bom do ruim, pois que estas histórias tinham como objetivo ensinar regras do bem viver. Especificamente no que se refere à beleza e a feiúra (ou ausência de beleza), nos foi ensinado e imposto um padrão estético. O belo se tornou sempre branco, com traços afilados, dentes alvos, olhos claros, cabelos lisos e louros. E os belos se mostravam sempre esguios e donos de uma bondade sedutora. Estes eram seres encantadores que deviam nos servir como exemplo. Na lógica dessa dicotomia, um conceito é sempre dividido em dois outros conceitos que lhe esgotam a extensão. Ninguém então poderia ser belo e feio ao mesmo tempo. As pessoas ou eram bonitas ou feias, boas os más, magras ou gordas, altas ou baixas. Talvez o maior exemplo seja a eterna luta travada entre o encanto das delicadas fadas e a injustiça das invejosas e malvadas bruxas.

De um lado as fada (que vem do latim = fata), concebidas como entidades fantásticas, geralmente representadas por mulheres em sua maioria belas e dotadas de poderes sobrenaturais. São as representantes e defensoras do bem. No outro extremo as bruxas (de origem pré-romana), que por extensão significam mulheres feias e rabugentas, praticantes da maldade e feitiçarias. Dizem no nordeste que se um casal (no modelo heteronormativo, que por extensão significa união entre um homem e uma mulher) tiver sete filhas consecutivas, e a última não for batizada pela irmã mais velha, a mesma torna-se amaldiçoada e durante as noites de lua cheia se transforma em coruja para assustar as pessoas. Assim, também descobrimos que a noite esconde os mistérios, feitiços e horrores, pois que é o habitat do mal. Então aprendemos também a gostar do claro e temer a escuridão. E para afastar o medo e os perigos traduzidos em influências malignas que podiam nos desviar do bom caminho, nos ensinaram a rezar. Cresci desta forma, ouvindo histórias e rezando para afastar os fantasmas.

Em todas essas histórias que ouvia inexistiam pessoas negras. Nunca houve, por exemplo, princesas de cabelos crespos, e com exceção da Branca de Neve, todas as outras tinham cabelos longos e louros. Mas essa também era por excelência alva demais. Seu cabelo era liso, o que se configurava como bom. Por extensão o cabelo crespo tornara-se ruim. Penso então no quanto seria (e continua sendo) difícil para as meninas negras se identificarem com tais heroínas. O mesmo ocorre com os meninos, pois que os príncipes sempre tiveram cabelos esvoaçantes e fartos. Especificamente no caso da Cinderela, a madrasta má e suas filhas vilãs tinham cabelos pretos, o que colocava a loura em um pedestal de bondade e virtudes angelicais (será por isso que os anjos também são louros?). As bruxas tinham cabelos pretos, quando muito grisalhos ou totalmente brancos-cinzas, o que revela a mistura entre o bem (branco) e o mal (preto).

Fica explicito então, o recorte étnico empregado aos contos de fada. Recorte esse reforçado mesmo entre as crianças de cabelos crespos. Tanto que quando crianças, em brincadeiras onde imitávamos (ou encenávamos) tais contos, logicamente crianças negras ficavam de fora por falta de personagens que lhes coubessem. Éramos então orientados pelos adultos para não excluir as pessoas devido à cor da pele. Pediam-nos para exercitar a criatividade, incluindo novos personagens para possibilitar a participação e interação de todos. Assim nossos contos ficavam repletos de empregados, amas, auxiliares de bruxas e seres estranhos, inventados para aumentar os tormentos ou amenizar o sofrimento das brancas mocinhas injustiçadas.

Naquela época isso tudo nos parecia muito natural. Nossos contos de fada replicavam os papeis sociais impostos pelo mundo dos adultos em que estávamos inseridos. Lembro que durante a adolescência iniciei minha carreira teatral numa escola pública de doutrina católica apostólica romana. E ao decidirmos encenar uma versão de “O Patinho Feio”, o grupo reivindicou o personagem para um garoto negro que integrava o elenco. Na compreensão dos mesmos o teatro que fazíamos nada mais era do que a representação da nossa própria realidade, e para nós adolescentes da época ficava difícil imaginar e viabilizar outras possibilidades. Na vida real e também nas escolas os negros ocupavam apenas os cargos considerados inferiores. Era raríssimo ver um professor que não tivesse a pele clara, quando muito, estes eram pardos (como eu), mas não eram considerados e muito menos se reconheciam como negros. Estes por sua vez eram sempre as merendeiras, as faxineiras, os jardineiros, comerciantes, porteiros e vigilantes.

Também entre os alunos a desproporção era gritante. Em toda minha vida estudantil, e até na acadêmica, consigo contar nos dedos os amigos e colegas negros com quem estudei. Negritude era assunto que não entrava na vida e/ou pauta escolar, com exceção das aulas de História onde se aprendia que a Princesa Isabel libertou os escravos. Não se fazia, por exemplo, referências aos líderes negros, mas ao contrário, sempre se exaltava os homens brancos que lutaram pela abolição. Os mesmos brancos que no passado escravizaram os negros, durante nossas aulas figuravam como heróis. O recorte étnico era então reforçado dentro do próprio espaço escolar, tanto que também eram excluídos os indios que tinham fama de preguiçosos. Neste caso específico, relembro também de um espetáculo que montamos em homenagem ao “dia do índio”, e hoje percebo o quanto foi absurda nossa bem sucedida montagem. É que os personagens indígenas eram todos brancos. Na verdade nem sabíamos a cor dos indios, e então, como justificativa dramatúrgica criamos a desculpa de que os mesmos pertenciam a uma tribo que adoravam a deusa lua. Aos componentes negros do elenco (que eram no máximo dois) restaram os papéis dos vilões que atacavam tal tribo.

Mas absurdo ainda, considero a falta de preparo e descompromisso dos professores no sentido de nos levar a reflexão ou maior aprofundamento em pesquisas que embasassem nossas montagens. E neste sentido, destaco mesmo que nunca fomos, por exemplo, estimulados a realizar releituras de nossas lendas. Essas sim, povoadas de personagens cromáticos e étnicos. As lendas ficavam apenas para as noites enluaradas, quando em baixo do céu estrelado minha mãe se colocava a ninar seus filhos. Na verdade não sabíamos distinguir estórias de lendas. Para nós era tudo a mesma coisa e o que na verdade nos importava era o encanto ou terror causado pela interpretação dada ao conteúdo. E nisso ela era uma verdadeira mestra, pois as histórias mesmo repetidas sucessivamente sempre tinham algo de inovador. Hoje entendo as lendas como as mais puras representações da tradição popular. Tanto que o sentido da palavra já traduz sua natureza (lenda que vem do latim – “legenda” = coisas que devem ser lidas). Assim, as mesmas nada mais são do que a narração escrita ou oral, de caráter maravilhoso, na qual os fatos históricos são deformados pela imaginação popular ou pela imaginação poética. De forma geral, entende-se que de certa forma as lendas são mentiras ou invenções baseadas em fatos que podem ou não, ser ou terem sido reais.

Um exemplo clássico é o caso de “O Negrinho do Pastoreio”, lenda considerada meio africana e meio cristã. Segundo alguns historiadores o negrinho do pastoreio era frequentemente contada pelos brasileiros que defendiam o fim da escravidão, ainda no século XIX. Alguns chegam mesmo a afirmar sua origem gaúcha, que nos anos seguintes se espalhou pelo Brasil a fora, absorvendo e incorporando elementos regionais. A história em si, fala de um estancieiro malvado que açoitava seus negros e peões. Durante um dia de muito inverno (o que configura talvez a origem da narração), teria ele mandado um menino negro, de quatorze anos, pastorear cavalos e potros que acabara de comprar. Ao voltar ao engenho, no final da tarde, o garoto lhe comunica o sumiço de um de seus melhores cavalos. Ele então pega o chicote e espanca o menino a ponto de lhe deixar o corpo todo ensanguentado e em carne viva. Após o ato de tamanha barbaridade ordena que o mesmo volte e encontre seu animal favorito. Com o insucesso o garoto é novamente chicoteado e amarrado nu sobre um formigueiro. Dizem que durante toda a noite se pode ouvir seu choro e gritos de dor. Porém na manhã seguinte quando o fazendeiro chegou ao local tomou um grande susto. É que o menino estava inteiro e sem nenhuma marca das chibatas. Ao seu lado se encontrava a Virgem Maria, e mais adiante o baio fugitivo e os demais cavalos. O estancieiro então se jogou ao chão, e aos seus joelhos lhe pediu perdão. O menino nada respondeu, apenas beijou as mãos da Santa e partiu montado no cavalo negro, conduzindo a tropilha. Dizem os mais antigos, que durante a noite ainda é comum vê-lo montado, correndo pelos campos.

Apesar de bela a história revela toda a arbitrariedade que norteou e representou a escravidão no Brasil. Nunca se soube ao certo se tal fato aconteceu em verdade, porém não é preciso ir muito longe para se constatar que a escravidão representou um grande e famigerado genocídio. Faço tal observação considerando que em sentido amplo, genocídio se configura enquanto “crime contra a humanidade, que consiste no intuito de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, cometendo contra ele quaisquer atos que objetivem matar seus membros; causar-lhes graves lesões à integridade física ou mental; submeter o grupo a condições de vida capazes de destruí-lo fisicamente, no todo ou em parte; adotar medidas que visem a evitar nascimentos no seio do grupo; realizar a transferência forçada de crianças de um grupo para outro”. Neste aspecto, penso não se poder ver muita diferença entre o antigo modelo escravocrata nacional e o regime nazista alemão, mesmo ainda considerando os contextos históricos e ideológicos.

Nossos poucos registros históricos revelam, mesmo que de forma imprecisa, o grande número de negros que foram mortos por seus senhores e também senhoras; as condições de subjugação e inferiorização as quais foram submetidos; as violências corporais sofridas, incluindo o açoite, amputações, queimaduras a ferro quente e castigos que incluíam dias acorrentados em troncos. Também não nos é difícil constatar o fato de crianças terem sido naturalmente separadas de seus pais e vendidas ou trocadas entre os senhores de engenhos como mercadorias ou animais. Alguns escravos eram herdados, enquanto que outros eram dados como presentes. Não eram reconhecidos ou tratados como humanos, mas como animais de tração pelos quais se negociava valores. Trancafiados nas senzalas, alimentavam-se de pastos e restos de comidas, como a exemplo de nossa famosa feijoada, que na época era preparada com orelhas, restos e vísceras de animais. Eram as sobras da casa grande que alimentava e mantinha a senzala.

Através do processo de aculturação lhes proibimos o culto religioso e negamos sua cultura, fragilizando a manutenção e fortalecimento de suas identidades. Roubamos-lhes os heróis, a liberdade e a honra, assim como suas descendências e hereditariedades. Por séculos lhes negamos a condição de seres humanos e lhes outorgamos uma inferioridade genética e evolutiva. Exploramos sua força de trabalho, lhes ensinamos a subordinação e negamos possibilidades igualitárias de desenvolvimento. Por fim, os descartamos com a abolição e os mantivemos as margens sem estrutura e condições de subsistência digna. Renegamos suas histórias de luta e resistência, negando o processo identificatório. E fizemos isso, por décadas seguintes, os excluindo de nossas histórias infantis e dos livros escolares. Assim como escondemos até hoje debaixo do tapete toda a sujeira e barbárie cometida no passado. Neste sentido, acho que de certa forma nos negamos a ressuscitar os velhos fantasmas para que não sejamos obrigados a pedir desculpas.

Acredito que já é hora de revisitar a história oficial e possibilitar aos negros o reconhecimento de sua participação na constituição histórica, política e social brasileira. Acredito mesmo na necessidade de pedidos de desculpas oficial. Não que tal ato passe a representar uma reparação justa e suficiente, mas ao menos, se tornará marco para o processo de transformação social e cultural do país. Como diz o antigo dito, que se tornou popular, é “preciso dar a Cezar, o que é de Cezar” e permitir que se reconstrua um novo processo de identidade, que não será nem negra e nem branca, mas especificamente brasileira e genuinamente resultante da real mistura das raças que forma nosso povo. É tempo também de misturar as cores e transformar nossas lendas e causos populares expressão literária de nossa gente.

Penso por fim, que não mais precisamos dos príncipes e princesas dos contos de fadas importados, pois que temos (e sempre tivemos), reis e rainhas, guerreiros e heróis nacionais, sejam estes de origem africana, indígena ou européia. Basta-nos apenas reavaliar nossa cultura popular e assim valorizar os personagens fantásticos e reais que povoam nossas lendas, contos e causos, contados e recontados através de gerações.

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