domingo, 7 de novembro de 2010

HISTÓRIAS DA NEGRITUDE BRASILEIRA - CAPITULO I


Recife, 05 de novembro 2010
















NOVEMBRO: PORQUE PRECISAMOS DE MÊS DA CONSCIENCIA NEGRA?

Na quinta-feira passada, 04 de novembro, Recife deu inicio as comemorações relativas ao Mês da Consciência Negra. As ruas da cidade foram invadidas por milhares de pessoas que se reuniram na 4ª Caminhada pela Liberdade Religiosa, que partiu do Marco Zero, passando pelo Palácio das Princesas, e seguiu até a Praça do Carmo. Novembro consta no calendário oficial como mês da consciência negra, e no próximo dia 20 comemora-se a morte de Zumbi dos Palmares, líder negro que lutou pelo fim da escravatura no Brasil. Comecei então a repensar na história dos negros, desde o processo de colonização aos dias atuais. Especificamente em relação a mim, sempre me senti inconformado e insatisfeito em relação a denominação de “pardo” em meu registro de nascimento. Por curiosidade, sempre gostei de saber qual o significado real de cada palavra e logicamente sua origem. Recorrendo ao dicionário, descobri, por exemplo, que pardo deriva do latim “pardu”. Ou seja, deriva zoologicamente de (Leo)pardus, por se considerar que tal terminação servia como adjetivo para referir as manchas de cor escura que distinguiam o leopardo do leão. No Brasil, sua referencia também se dá para o pardal, pássaro de cor parda. Assim, meu registro de nascimento revela que sou classificado como uma pessoa de cor entre o branco e o preto; quase escuro. O dicionário trás ainda outros adjetivos correlatos, tais como: de um branco sujo, duvidoso; de cor pouco brilhante, entre o amarelo e o castanho; ou mulato. Talvez tenha sido uma forma encontrada para estratificar a pele do brasileiro, fruto de uma miscigenação que envolveu o branco europeu, o negro africano e os indios nativos.

O mais interessante é que cresci me entendendo como pardo, mesmo sem entender o significado real de ser ou me reconhecer como tal. Eu era pardo e pronto. Não era branco, como logicamente gostaria devido aos preconceitos da época, mas também não era negro. Eu seria, uma espécie de “metá-metá”. Nessa falta de identidade própria, digamos assim, fui educado como branco e frequentei escolas de branco. E logicamente aprendi a me comportar como tal e identificar nos negros o meu diferente. Aprendi durante a adolescência e juventude várias piadas depreciativas sobre negros, como também assimilei certos ditados populares pautados no mais arraigado racismo. Na minha época era comum se proferir frases como “a coisa tá preta”, “aquele é um negro de alma branca”, “domingo é dia de branco”, “nego quando não caga na entrada, caga na saída”. Meus pais contavam que antigamente ao se descrever a passagem de três homens, destacava-se: “Lá vai um tenente, um homem e um negro”. E eu tinha um avô, por consideração apenas, uma vez que ele era irmão da mulher que criou minha mãe (a velha história de meninas pobres do interior que eram levadas para as casas das tias afortunadas) que dizia que as mulheres negras andavam feito patas ou ainda que elas eram boas para montar. Tudo isso dito e repetido sucessivamente diante de crianças em formação, que encontravam nas escolas os reforços para a segregação racial, contribuíram para aminha formação também preconceituosa. E neste sentido, digo mesmo que é difícil negar uma formação cultural, senão através do entendimento e reconhecimento de novos conceitos.

O que quero salientar é o fundamental papel da educação na formação de crianças e jovens brasileiros, que repetem constantemente os aprendizados ainda construídos sobre as bases machistas e pautados em preconceitos sociais e religiosos, na homofobia e xenofobia. Destaco também a importância de ações coletivas, como a referida caminhada, tais como as paradas da diversidade e o os gritos dos excluídos, no sentido de trazer à tona a reflexão necessária a sociedade sobre os velhos conceitos pré-estabelecidos e pré-concebidos. Acredito e continuo repetindo que só se muda uma cultura tradicionalista pela educação. Tanto que durante o evento, via-se claramente nas ruas o constrangimento e estranhamento de muitas pessoas. Havia um certo receio que pairava no ar e um incomodo fundado no medo pelo desconhecido. Era a “macumba” que duramente combatida na minha infância, agora invadia as ruas do centro da cidade. Eram os terreiros de candomblé que por muitos anos se refugiaram nos subúrbios, que desfilava pelas principais avenidas da Recife conservadora. Era a quebra dos estigmas do preto, pobre, homossexual e macumbeiro que rompia as cortinas e saia das margens escuras para as ruas iluminadas.

O evento culminou com a confraternização entre os vários representantes dos terreiros de candomblé em frente a igreja de Nossa Senhora do Carmo (que se manteve logicamente de portas fechadas). E neste aspecto saliento minha falta de conhecimento, que credito a formação católica da “santa igreja” que recebi na infância. Participei então da caminhada enquanto militante e pesquisador curioso, porém bastante leigo, podendo inclusive me mostrar equivocado em alguns aspectos relacionais. Falo então, a partir deste momento do lugar de espectador comum, envolvido em uma manifestação para mim se mostrava inédita. Confesso que me impressionei com a grandiosidade e organização da caminhada. Era a meu ver, acima de tudo, um culto religioso aos nossos ancestrais. E digo nossos por dois motivos lógicos: primeiro por comungar com a teoria de que os seres humanos plenamente modernos se desenvolveram na África há cerca de 150.000 anos atrás (Kuper, 2008); e segundo, por entender que depois de mais de 500 anos de miscigenação ficaria difícil (e por que não impossível) imaginar qualquer brasileiro puro (etnicamente falando, claro).

Neste evento, um dos aspectos que mais me chamou a atenção consistiu exatamente no intento governamental de administrar uma manifestação religiosa, expressão maior de um povo, numa formatação burocrática. Assim, como em todo grande “evento de massa” em Recife, o policiamento foi reforçado para garantir a segurança e o direito de livre expressão de todos (contraditório, não?). No palco montado na Praça do Carmo para as apresentações ritualísticas, a agitação por parte de alguns coordenadores e organizadores revelavam certa “desobediência negra” ao cumprimento de programação tão rígida. Penso então se tal desobediência não se traduz em característica de uma raça, pautada no movimento de resistência dos antigos negros escravos, que no passado serviu de base para o processo de alforria. Então me coloquei a refletir sobre o real significado e importância do referido palco.

E digo que em minha tola e pretensiosa convicção acreditei que tal manifestação ganharia mais força e beleza se permanecesse nas ruas, verdadeiro palco de tantas batalhas travadas em nome da liberdade, democracia e igualdade para todos. Porém perdido em devaneios, repensei se o mesmo não se configurava naquele momento como uma forma de reparação a dignidade negra, afinal de contas, palco é lugar de destaque, sempre relegado aos mesmos. De uma forma ou de outra, acho que toda forma de reparação, que num contexto mais religioso significa o “ato que pretende desagravar a Deus de ofensas cometidas pelo próprio agente ou por outrem”, apresenta-se retardatária por natureza. Explico meu posicionamento, considerando que facilmente se constatava naquela caminhada a contingente soberania negra, lutando contra estigmas não apenas relativos à cor da pele, mas a religiosidade e classe social.

Se analisarmos a história, não precisaremos de muito esforços para perceber que durante séculos foram negados aos negros os direitos a cidadania, liberdade religiosa e oportunidades e possibilidades de desenvolvimento igualitário, através do imposto processo de aculturação (entendendo-se este como processo decorrente do contato direito e contínuo entre dois ou mais grupos sociais, pelo qual cada um desses assimila, adota ou rejeita elementos da cultura do outro, seja de modo recíproco ou unilateral, e podendo implicar, eventualmente em subordinação política). Durante o processo de colonização brasileira, os negros africanos tornaram-se bárbaros, e por serem reconhecidos como inferiores e não civilizados foram escravizados. A estes, no intuito de fortalecer e garantir seus vínculos culturais com a pátria mãe restou o sincretismo religioso (processo caracterizado pela fusão de elementos culturais diferentes, ou até antagônicos, em um só elemento, continuando perceptíveis alguns sinais originários). Este talvez, o maior movimento de resistência no sentido de salvaguardar a integridade cultural de um povo, evidenciando a importância quanto ao entendimento sobre a autoridade e valor da cultura para formação e consolidação de uma identidade.

É neste sentido que as políticas afirmativas têm papel fundamental para a restauração da dignidade e representatividade de um povo que foi duramente castigado e estigmatizado pelos processos civilizatórios. Por esse viés, podemos então entrar numa discussão a cerca do que vem a ser civilização. Esta por sua vez pode ser entendida como ato, processo ou efeito de civilizar-se (ou civilizar alguém); ou ainda, como estado ou condição do que se civilizou. Parte-se então para a conceituação do que vem a ser primitivismo, que em relação a um povo, pode-se classificar como sujeitos “em começo de evolução, ou muito pouco diferenciado de seus antepassados mais remotos”. Traduzindo, neste contexto, pode-se dizer que primitivo configura uma sociedade mais simples formada por integrantes ásperos e rudes. Numa extensão antropológica, são povos não letrados que vivem em sociedades caracterizadas como de escala menor, organização social menos complexa e nível tecnológico menos desenvolvido do que as sociedades ditas civilizadas, e vistos pelo evolucionismo social como representantes de um estado social e mental supostamente mais próximos da condição original, natural da humanidade, ou dela sobreviventes (Ferreira, 2010).

Neste aspecto, as classificações para sociedades primitivas partem de uma visão etnocêntrica, uma vez que parte-se da referencia de nossa própria sociedade como marco de civilização. Ou seja, se nos considerarmos civilizados por pretensamente acreditar que atingimos um estado de aprimoramento ou desenvolvimento social e cultural mais elevado, logo, tenderemos a ver nosso diferente como menos evoluído, e logicamente menos civilizado – primitivo. Assim, por extensão, civilizada é a sociedade que resulta do processo civilizatório, ou seja, do conjunto de suas realizações, e em especial por aquele marcado por certo grau de desenvolvimento tecnológico, econômico e intelectual, considerado geralmente segundo o modelo das sociedades ocidentais modernas que se caracterizaram pela diferenciação social, divisão de trabalho, urbanização e concentração de poder político e econômico (Ferreira, 2010).

Fundamental torna-se o entendimento de que entre os gregos e os romanos a classificação “bárbaro” definia o estrangeiro, o diferente e inferior por apresentar dificuldade ou falta de domínio no uso da linguagem. Nesta visão etnocêntrica, os bárbaros não falavam, mas pelo contrário gruniam ou apenas balbuciavam, pelo simples fato de não dominarem a linguagem grega ou romana. Neste período histórico da “evolução da humanidade” o domínio da linguagem configurava e outorgava o status de civilização aos indivíduos e sociedades. Estabeleceram-se as relações de poder e a divisão dos grupos sociais, fundamentando inclusive o entendimento de uma “ordem natural” para a dicotomia dominação/subjugação entre os povos. Os civilizados subjugavam os bárbaros e primitivos. Dentro dessa ordem não fica difícil imaginar sua extensão aos selvagens brasileiros – denominação criada para classificar os indios, considerados meio homens, meio animais. Estes representavam o desconhecido e eram percebidos como monstros estranhos do novo mundo. Com a impossibilidade de civilizá-los, favorecendo o processo de desenvolvimento econômico e social segundo os ditames europeus, os mesmos foram exterminados (por extensão: pôr fora dalguma terra, ou região; expulsar, banir, desterrar, destruir com mortandade; fazer desaparecer; eliminar, matando; aniquilar) e substituídos pelos seus negros já escravizados.

O Brasil tornou-se rota obrigatória para os navios negreiros. Somente em 13 de maio de 1888, a então Princesa Cristina Leolpodina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon (mais conhecida como Princesa Isabel), filha herdeira de D. Pedro II, assinou a Lei Áurea abolindo a escravidão em nosso país. No sentido histórico e político é importante considerar que fomos a ultima nação a ceder às pressões internas e externas. E também, que com a abolição os negros foram também substituídos pelos imigrantes europeus que chegavam à busca das grandes e novas oportunidades prometidas pelo novo continente. Sem formação, qualificação e educação, os ex-escravos forma expulsos das fazendas e engenhos e passaram a habitar as margens da sociedade burguesa. Tornaram-se grupos de pessoas sem “eira e nem beira”. Restaram os aglomerados populacionais, quilombos, as ruas e a clandestinidade. Desta forma, estes livres bárbaros desamparados e sem reparação de direitos na verdade não foram libertos, mas sim descartados do processo de desenvolvimento. Já não serviam aos interesses públicos e privados. Das margens sociais a marginalidade era um passo. O negro então passou a ser combatido, pois que se tornara peso e risco social eminente.

Continuando nossa análise critica, verificaremos que o retrato social nos dias atuais não tem se mostrado muito diferente, tanto que, se as senzalas se localizavam distanciadas das casas grandes, o mesmo ocorre com as favelas em relação aos grandes centros urbanos. A cultura brasileira determinou e introjetou a divisão de raças, forjando em nossas peles o racismo nacional (que por extensão entende-se qualquer doutrina que sustenta a superioridade biológica, cultural e/ou moral de determinada raça, ou de determinada população, povo ou grupo social considerado como raça). E neste sentido, nunca fomos “apenas um povo” como tanto se pregou por anos a fio, mas ao contrário sempre fomos étnicos e diversificados, e consequentemente diferenciados em garantia de direitos e possibilidades de acesso. Com a divisão da população entre negros e brancos, consolidou-se as desigualdades e se estratificou as classes sociais entre pobres e ricos. Praticamente só após a queda da ditadura os discursos politicos e ideológicos, alicerçados pelos movimentos sociais puderam ganhar força, dando inicio ao processo de mudança atual.

Mais uma vez as políticas afirmativas tiveram papel fundamental exigindo reparação e equiparação de direitos. Conseguimos alguns avanços tais como a criação de cotas de inserção e “oportunidades”, mas nunca em verdade o Brasil se desculpou pelas atrocidades cometidas. Se fizermos uma retrospectiva apenas considerando a mídia televisiva, facilmente constataremos, por exemplo, que os negros continuaram escravos nas telenovelas, principalmente nas globais. Em 1979, uma das primeiras novelas a tratar à temática, A Escrava Isaura, tinha no papel principal uma personagem de pele branca. Foram então preciso quase trinta anos para que uma mulher negra ocupasse, pela primeira vez, o papel de protagonista de uma novela no horário nobre. Aliás, neste âmbito Thais Araújo vem se consolidando como única atriz negra que mais protagonizou novelas (A Cor de Pecado, da Rede Globo, e Chica da Silva, da TV Manchete). São resultados positivos, logicamente que sim, porém ainda insipientes para se comemorar uma mudança justa. É preciso investir esforços na educação e formar futuros cidadãos conscientes e livres de preconceitos. Como dizia o grito de ordem da caminhada, não se busca apenas tolerância, mais direitos e respeito. Até por que tolerar significa ser indulgente (pronto para perdoar, tolerante, condescendente, complacente) para com algo ou alguém. Tolerar significa acima de tudo, suportar e/ou aguentar. E em uma democracia não se pode aceitar grupos sociais apenas se tolerem uns aos outros, mas que ambos se respeitem e desenvolvam relações harmoniosas de convivência pacífica.

Independente de tudo isso, talvez o que se mostre mais positivo seja o fato de se poder constatar que nos dias atuais os negros vêm ganhando mais espaços e ocupando lugares de destaque sejam na mídia, no mercado de trabalho formal ou no cenário político. Então é a vez da busca pelo direito da livre expressão religiosa entrar para as pautas públicas. É preciso se falar e se ensinar nas escolas não apenas sobre a ancestralidade negra, não apenas de direitos pautados em cotas, mas estimular a reflexão sobre negritude. E neste sentido, negritude deve ser entendida como ideologia característica da fase de conscientização pelos povos negros (o que nos inclui enquanto afro-brasileiros), da opressão colonialista, a qual busca reencontrar a subjetividade negra observada objetivamente na fase pré-colonial e perdida pela dominação da cultura branca ocidental. E se faz ainda urgente e necessário o entendimento de negritude também no plural – negritudes, possibilitando a implementação e consolidação de políticas públicas voltadas à garantia de direitos de crianças, adolescentes, jovens, mulheres, homens e idosos negros, independentes de orientação sexual, classe social e credo religioso.

Pátio do Carmo, Recife - Novembro/2010

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