O QUE É REPRESENTA UM
BEIJO AFINAL?
“Amora à Vida”, de Walcir
Carrasco, entra para a história da teledramaturgia brasileira como a primeira
novela a exibir um beijo entre dois homens em horário nobre. Ato de afeto comum
aos sujeitos apaixonados, independentes de suas orientações sexuais, o beijo foi
transformado na mais divulgada forma de expressão do amor romântico, idealizado
entre as sociedades ocidentais. Enquanto recurso midiático, nada parece mais
oportuno do que um grande beijo para selar um final feliz. Funciona como
recompensa de uma trajetória de luta entre o bem e o mal. Afinal de contas, o amor
sempre vence, pois que é o antídoto para as mágoas, desalentos ou desventuras
dos corações atormentados. Vence a vingança e o ódio, repara os erros e
reorienta os frágeis de caráter. Para o grande público é a demonstração perfeita
e exata de que no fim, tudo sempre terminará bem, pois que só o amor
reequilibra a manutenção da norma. O maniqueísmo se estabelece na confirmação
de que o vilão quando não morre drasticamente, enlouquece, e é sepultado vivo
em manicômios ou cárceres sujos e violentos.
Em Amor à Vida a mocinha não foge
os ditames da norma, cumprindo o papel de ser verdadeiramente mãe, como se já
não o fosse. Apesar de sua luta para reencontrar a filha roubada, a grande
representação normativa se reafirma no ato de conceber o filho legítimo do
macho por quem é verdadeiramente apaixonada. O filho de sangue selará, frente a
todos, a grande importância e força dos laços consanguíneos. O discurso literário
que perpassa toda a novela torna-se então contraditório, cedendo à consanguinidade
o lugar de fator consolidador da verdadeira família. Assim, depois de um
sofrido parto, pelo qual Paloma parece pagá por seus deslizes morais,
finalmente é abençoada com um filho homem. Entre sorrisos e lágrimas, o então príncipe
encantado revela-se finalmente machista de carteirinha e reitera o senso comum,
afirmando orgulhoso: “você me fez o homem mais feliz por me dar um filho”. E novamente,
Paulinha é claramente renegada a condição de “filho do coração”, àquele a quem
se dispensa quase o amor legítimo. Mas, o grande desfecho mesmo se dá na cumplicidade
da mocinha, que também em lágrimas proclama que conseguira reunir, e
logicamente reestruturar sua família, o grande objetivo e papel designado às
mulheres. As relações de gênero seguem intactas, definindo os papeis de homens
e mulheres na sociedade brasileira. Nesse sentido, a novela é apenas um reflexo
de nossa cultura, e peca no sentido de provocar reflexões e possíveis transformações
sociais.
Por outro lado, Pilar revela-se
como a grande vilã da trama, responsável pela morte da verdadeira mãe de Paloma,
destruição da vida de Aline, e consequentemente por todo o sofrimento do ultraconservador,
homofóbico e garanhão Dr. Cesar. Porém, o fato de ser uma mulher
verdadeiramente apaixonada, que abdicou de sua condição profissional inclusive,
para cumprir com os deveres da resignada e obediente esposa, lhe destitui da
condição de assassina ou criminosa. Como forma de purgar sua culpa,
compromete-se a criar o filho do ex-marido com sua amante, o que não deixa de
ser uma repetição de sua história, ou história de muitas mulheres. A frase proferida
pelo antigo poderoso médico, agora totalmente debilitado sobre uma cadeira de
rodas explica e justifica o ato inconsequente e perverso da mulher em nome do
amor: “você também se vingou de mim!”. À Aline resta a morte na cerca elétrica
durante tentativa de fuga. Isso satisfaz o público, principalmente em momento
tão delicado da politica nacional envolta aos escândalos de corrupção. Quem não
desejaria o mesmo para os mensaleiros? Para Cesar, o desprezo familiar e a
resignação diante de seus sucessivos erros. À Pilar, vingadora da infidelidade
matrimonial, a absolvição social, o reconhecimento de sua dedicação à família,
além de um grande amor como o ex-motorista, bem mais jovem e de bom caráter.
Qual mulher, e até homens, não desejaria estar em seu lugar? Resumindo a ópera,
pela família se pode tudo, pois que todos os erros serão justificados, perdoados
e até reverenciados.
Por fim, o grande e tão esperado
final do casal gay que movimentou rodadas de conversas e acaloradas discussões
entre o público em geral. A novela torna-se um marco por retratar de forma
magistral que mau-caratismo independente de orientação sexual. O que não faltou
nesta novela foi gente de caráter duvidoso, guiados pelo oportunismo, tão comum
na cultura do vale tudo e do jeitinho brasileiro. Na verdade, o que menos
importou ao público no personagem do Matheus Solano foi o fato dele ser gay,
mas sim, o fato de ter sido um garoto renegado do amor paterno. A exclusão o
tornara amargo, um sujeito beirando a psicopatia, o que justificava seus crimes
e erros perante a sociedade. Odiado e/ou amado ao mesmo tempo, Felix se
transformou na mais fidedigna representação social da luta entre o bem e o mal.
A catarse, meio pelo qual o telespectador efetiva o processo de identificação,
transformou-se no grande fator de sucesso do ibope. Quem não faria o mesmo em tal
situação? Quem nunca se sentiu rejeitado? Quem nunca sentiu inveja? Quem nunca
buscou por amor materno/paterno? Em meio a um pai homofóbico e uma mãe ausente,
e subserviente, um menino se transforma em mostro. A cura? Somente o amor se mostraria
capaz de favorecer a reconciliação consigo mesmo. O personagem trava uma grande
luta interna entre ser bom e se manter mal, até ser vencido pelo amor de um
rapaz com enorme capacidade maternal, não por acaso intitulado “Carneirinho”.
Adorado por todos, perpetuador do bem e incapaz do menor desvio de conduta ou
maldade, Nico, interpretado por Thiago Fragozo, era quase angelical, revelando ao
público que honestidade e concretude de caráter nada têm haver com identidade,
orientação ou preferencia sexual.
A novela em si não traz
novidades, uma vez que a fórmula é a mesma que se estabelece nos contrapontos
conflituosos individuais. A eterna busca do sujeito por si mesmo. O que muda é
o panorama, o cenário. Pela primeira vez o casal apaixonado que movimenta a
trama é formado por dois homens. É a tentativa da exaustão de uma temática, que
não deixa de garantir ibope, e logicamente lucros financeiros. Mas também não
deixa de ser o resultado de um trabalho de transformação sociocultural iniciado
há muito tempo atrás. É como uma espécie de reparação da mídia, em atendimento
a cobrança de seguimentos específicos que lutam por igualdade de direitos. E neste
ponto, há muito que as novelas estão atentas aos movimentos de representação de
classe e/ou sociais. Assim, o homossexual deixa de ser motivo da chacota, do
riso fácil, do ridículo e do estereótipo, para se transformar em sujeito com os
mesmos desejos e qualidades humanas. Novelas anteriores discutiram a temática, e
em certa medida causaram polémicas, contribuindo para certo processo de “naturalização”
popular e social da homossexualidade. Porém todo processo de mudança gera resistências.
Como estratégia global, a utilização de atores pouco conhecidos do público,
evitou o confronto e o desconforto direto provocado em Torre de Babel (1998),
onde a personagem de Cristiane Torloni foi implodida junto com um Shopping
Center. Em seguida, Aline Morais teve o beijo cortado em Mulheres Apaixonadas,
em 2003. Bruno Galhiasso provocou a empatia do público, mas não beijou o peão
de rodeios, em América, exibida em 2005. Carlos Casagrande mantinha uma vida
estável com seu parceiro, mas não explicitava carinho ou beijos em Paraíso
Tropical, de 2007.
Mais incomodo do que a temática,
estava a demonstração de afetos e carinhos entre pessoas do mesmo sexo em
novelas do horário nobre da Rede Globo. Como em qualquer outra temática polémica,
foi necessário décadas para o tabu do beijo entre homens ser vencido. A peleja
parece ter chegado ao final com o beijo, ainda que do tipo selinho, entre Felix
e Nico. Neste sentido a novela cumpre com seu papel social no sentido de
possibilitar a reflexão de massa. Para Wolf Maia, diretor de núcleo da Rede
Globo, “interessa para nós, que se entenda que o amor, na nossa época, é muito
mais múltiplo do que parece ser e que nós temos que estar abertos e até
vibrarmos em relação a isso.” Agora é esperar a reação do público e esperar a
quebra de novos paradigmas. Até porque por amor à vida sempre vale a pena rever
velhos conceitos e lutar pela igualdade de direitos.
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