quinta-feira, 14 de novembro de 2013


 

É PROIBIDO PROIBIR! ABAIXO A DITADURA DA FALSA IDEOLOGIA!

“O Rei mal coroado não queria o amor em seu reinado, pois sabia que não ia ser amado. Amor não chora, eu volto um dia. O Rei velho e cansado já morria...”

Como já relatei anteriormente, nasci dois anos depois do Golpe Militar. Era do silêncio! Época de perseguições e torturas. Tempos de desaparecimentos instantâneos, onde estudantes eram arrancados das salas de aulas e manifestantes eram assassinados em vias públicas. Havia no ar um sentimento de opressão e revolta, mas ninguém podia fazer nada porque os milicos detinham o poder. Como era criança e filho da ditadura militar não entendia bem o que se passava, apenas cumpria as recomendações. Era proibido fazer baderna nas ruas, desobedecer a temida professora, que não raramente nos ameaçava com uma régua de madeira ou castigos tortuosos, como ficar a aula inteira de frente ao quadro negro. Também era comum se proibir que o aluno fizesse a merenda durante o intervalo, talvez a mais cruel forma de torturar quem tinha fome. Apesar da péssima qualidade da comida, para muitos aquela era, na maioria das vezes, a única refeição do dia. Roubava-nos a educação de qualidade, a saúde, o direito ao trabalho e a liberdade de expressão. Mesmo assim éramos obrigados a “Amar o Brasil”, repetindo estrofes de hinos que proclamavam o nacionalismo absoluto. As armas calavam as vozes e a força vencia os corpos.

Apesar da repressão alguns se arriscavam e muitas vezes pagavam o alto preço com a própria vida. Outros padeciam no exílio, expulsos da própria terra. Assim surgiram personagens inesquecíveis e revolucionários. Homens e mulheres corajosos, que enfrentavam o exército não com armas nas mãos, mas com a inteligência e sensibilidade que os tornava poetas. Por duas décadas inspiraram milhões de pessoas sedentas pela democracia. A liberdade de expressão era a principal bandeira dos revolucionários taxados como comunistas inimigos do país. Entre os tantos, destacavam-se Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento. As letras de suas músicas, repletas de metáforas e entrelinhas que traduziam os lamentos de um povo, impulsionavam as massas às ruas, inspiravam gerações e ensinavam o poder da ideologia. Era a paz pela guerra, onde era proibido proibir! Paralelo ao movimento, Roberto Carlos se projetava como ídolo jovem com suas musicas românticas sem conotações políticas e ideologias. Por anos a fio se correu as lojas de discos para comprar os LPs revolucionários antes que o governo os proibisse e os retirassem de circulação. Os discos eram verdadeiras joias. Um pequeno arranhão e se perdia parte da história, maculava-se a ideologia de luta. Colocar os discos na radiola e aumentar o volume ao máximo representava estratégia de protesto contra a opressão e tirania do regime ditatorial.

Qual filho da ditadura não cantou “Cálice”, “Roda Viva”, “Sem Lenço, Sem Documento”, “Para Não Dizer Que Não Falei das Flores”, entre tantas outras melodias que exprimiam nossos sentimentos de indignação diante das ameaças e torturas? Quem não se emocionou, e chorou muito, com as histórias de mortes e sofrimentos dos exilados e perseguidos políticos? Quem não se inspirou nos grandes cantores da época para fazer da luta sua justificativa de vida? Quem não se orgulhou em estampar seus rostos e nomes em camisetas? Nas bocas, corpos e mãos, estes eram os uniformes e os instrumentos de guerra. Suas letras se multiplicavam nas ruas e alcançavam multidões, encorajando e conclamando o direito a liberdade de expressão.

Hoje não consigo disfarçar a desilusão e indignação que os mesmos personagens me causam, opondo-se a liberação das biografias em nome das cifras milionárias. Como diria Cazuza, “Meus heróis morreram de overdose. Meus inimigos estão no poder”. Como podem contrários as suas histórias e discursos ideológicos, os mesmos Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento liderarem um movimento que proíbe o lançamento de suas biografias sem autorização prévia, como forma de garantir o pagamento de royalties sobre as obras? Será que esqueceram a luta contra o capitalismo selvagem? Abriram mão da liberdade de expressão? Esqueceram que é “proibido proibir”? Meus heróis envelheceram e se tornaram tão algoz quanto os antigos milicos. Tão contraditórios quanto os desmandos pelos quais lutaram. Não será essa uma prova retumbante de que realmente que todo oprimido se torna opressor quando detém o poder?

Como bem disse o Gerald Thomas (IstoÉ 2293, 2013), considero um absurdo ganhar dinheiro em cima de biografias. Será que o problema dos nossos já envelhecidos e contraditórios poetas é a falta de talento, ou será que sentem saudades da ditadura porque no regime militar conseguiam compor bem? Quem realmente é o dono de uma história quando se torna uma figura pública? Porque tenho que pagar para registrar o movimento do tropicalismo ou da jovem guarda? Como relatar os fatos sem mencionar tais personagens? Não se fala das músicas e cultura dos anos de chumbo sem destacar tais celebridades, que por sinal enriqueceram e vivem até hoje do fruto de seus trabalhos. Porque Roberto Carlos, por exemplo, tem o direito de proibir dissertações e teses sobre um período ou movimento musical do qual apenas se tornou mais um personagem entre tantos. Ele se tornou dono da história social e política do país? Mesmo não desconsiderando sua importância, creio que tal período pertence também a várias outras pessoas que gostariam de ver retratadas e registradas suas passagens sobre a terra e suas contribuições para o desenvolvimento nacional. Acima de tudo, a jovem guarda ou o tropicalismo fazem parte da história de um povo e não apenas de um seleto grupo de personas contraditórias e ambiciosas que passaram a reverenciar o capital.

Plagiando mais uma vez o Thomas, digo que “é triste e nojento ver as pessoas que eu achava que não tinham nada a perder, se defendendo de uma forma puritana, boba, estúpida e imbecil”. Posturas que apenas mancham a própria biografia. Talvez seja a hora da sociedade mudar o disco. Talvez seja a hora de enterrar os velhos ídolos e voltar às ruas contra as suas tiranias disfarçadas de ideologia democrática. Talvez seja a hora de engavetar os velhos CDs, até para não ter que explicar para os mais jovens a vergonha da contradição. Talvez seja a hora do povo encontrar a sua própria voz, pois que sobre essas nunca existirá ditadura capaz de impedir ou cecear o resgate histórico de um povo. Em nome da cultura e do progresso do país, ainda repleto de analfabetos, principalmente políticos, sou a favor da urgente liberação das biografias de personagens, vivos ou mortos, sem previa autorização dos mesmos ou de familiares, e muito menos pagamento sobre as histórias que pertencem a todos e das quais fizemos ou fazemos parte, ainda que de forma direta ou indiretamente. Quem se torna “persona pública” arca com os bônus e os ônus do status de celebridade. Quem não deseja ou teme expor-se que morra no anonimato. Os interesses de um povo precisam sempre ser maiores que os interesses individuais. Por isso, é proibido proibir! Por isso, qualquer forma de proibição é ditadura, e isso sem sombra de dúvidas, é coisa do passado. A ditadura é um fato histórico para ser lido e estudado e não novamente praticado.

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