UMA VIAGEM MAIS QUE ALUCINANTE.
Depois de quase dez anos sem
pegar um ônibus, resolvo me arriscar a enfrentar a dura realidade de milhões de
cidadãos. São exatamente 12:20 e saio para a rua com um destino definido: o
campus da Universidade Federal, na Cidade Universitária, cerca de vinte minutos
do centro do Recife. Na Avenida Conde da Boa Vista, dou inicio ao que
classificaria como uma experiência dos infernos. Nos abrigos de ônibus, que já
não abrigam mais ninguém de tão mal conservados, procuro pela sinalização das
linhas. Mas, logicamente é impossível identificar algo que não existe. Um
amontoado de carroças, caixas de isopor, muito lixo e toda parafernália
necessária ao comercio ambulante invade os bancos e as áreas de circulação. “–
Olha a pipoca!”. Grita um. “– Coca-cola e água mineral!”. Berram vários ao
mesmo tempo. Pessoas amontoadas se espicham além do meio fio tentando
visualizar os destinos dos ônibus que parecem desenfreados. A bagunça é geral.
Carros, motos, bicicletas e transeuntes competem pelo espaço com animais,
crianças e adolescentes embriagados de cola e crack. O sol escaldante se junta
aos carburadores para elevar a temperatura já insuportável. Primeira
frustração: estava no lugar errado. Moral da história: é preciso apelar aos
camelôs para descobrir a parada certa, pois nem os guardas municipais estão
devidamente preparados para orientar os cidadãos que pagam devidamente seus
altos impostos.
As 12:30, sigo em direção a
parada, que imagino correta. Ledo engano. Nesta, uma sinalização já desgastada
sobre uma placa metálica amassada desorienta mais que informa. Sigo para a
próxima. Está também lotada de camelôs gritando e comercializando uma variedade
enorme de produtos. Alguns colchões velhos e papelões servem de locais para o
descanso necessário. “– Olha que o calor está aumentando”. “- Vai uma Coca-Cola
aí?”. Galhofa o comerciante que se mostra o dono do abrigo. Para o conforto dos
consumidores ele ainda oferece um banco de plástico, devidamente instalado na
pouca sombra que resta. Em seu stand, batatas fritas, biscoitos, pizzas
fatiadas, bolos, pipocas, guloseimas diversas e cervejas. Os berros estrondam
os ouvidos já afetados pelos ruidosos ônibus velhos. O cansaço e o esgotamento
estampado nos rostos revela uma apatia quase insuportável. Pessoas se abanam ou
se sopram tentando amenizar o calor. Uma senhora idosa precisa pedir a um
cliente do tal comerciante que lhe conceda o direito de esperar pelo transporte,
devidamente sentada no banco do abrigo. Por pouco não lhe cobraram pelo
incômodo e aborrecimento. Sinto o sol queimar meus pés e procuro por um pouco
de sombra. Tento recuar, mas esbarro na carroça de madeira. Os ônibus
espremidos na avenida realizam manobras mirabolantes, cantando pneus. A viatura
da polícia passa apitando como se não soubesse fazer outra coisa, além de
incomodar. Elas também voam pela avenida, dando a impressão que estão sempre em
serviço, o que nem sempre é verdade. Mas a ação serve para abrir caminho em
meio ao congestionamento numa via engasgada.
Olho para o relógio pela milésima
vez e constato que estou há quase uma hora em uma parada de ônibus sem o mínimo
conforto ou condição de dignidade. Três ônibus com destinos diferentes chegam
ao mesmo tempo. O CDU-Várzea para a mais de vinte metros da parada. Já
irritado, decido esperar sua vez. Doce ilusão. O veículo dá indícios de que vai
partir sem mesmo ter chegado ao espaço correto. O tumultuo se inicia e várias
pessoas, em sua maioria estudantes atrasados começam a correr ao mesmo tempo.
Os esbarrões e empurrões são inevitáveis e favorecem aos roubos, não muito
raros. De certo modo sou conduzido até o ônibus por uma multidão totalmente
ensandecida. Uma mulher, atrás de mim, agradece a Deus e automaticamente penso:
“Essa realmente merece ser pobre e sofredora!”. Vai se alienada assim longe de
mim.
São 13:20 da tarde e meu humor já
se extinguiu há muito tempo. Penso em desistir da aventura nada pitoresca e
pegar o carro no estacionamento a menos de cem metros. Porém a multidão é mais
rápida e sou enfiado para dentro da lata de sardinhas. Com esforço chego ao
cobrador que me dirige um olhar nada animador. Nesse momento, agradeço e
reconheço o valor do esforço investido em meus estudos. Se estivesse no lugar
dele, com certeza minha cara estaria bem pior. Por falta de experiência ou
costume pergunto-lhe educadamente o preço da passagem. “– São R$ 2,15. Está
escrito lá na frente!”. Responde ele como se minha pergunta fosse absurda. Entrego-lhe
uma nota e ele novamente indaga de forma impaciente. “– Não tem trocado não?”.
“– se tivesse teria lhe dado!” respondo ao mesmo tempo em que tento ultrapassar
uma catraca totalmente excludente. Só depois do solavanco ele me avisa que tem
que esperar a liberação automática, sinalizada por uma luzinha verde no
dispositivo. Ultrapasso a barreira e tento me acomodar em algum lugar. O ônibus
está lotado e mais parece um caldeirão de bruxas. Se realmente existir inferno,
quem depende do transporte coletivo deveria ter passagem direta para o paraíso.
Puta que pariu! Não é possível que alguém mereça sofrer mais que aquilo.
Consigo me espremer e alcançar o espaço reservado aos cadeirantes. Com muita
sorte, encosto-me a uma barra metálica e tento me equilibrar para não cair
durante as sucessivas embaladas.
Vinte minutos depois constato que
ainda estamos na mesma Av. Conde da Boa Vista. Um acidente no cruzamento com a
Rua da Soledade atrapalhava o já complicado tráfego. Há essa hora resolvo
desistir da viagem e voltar para casa, o que seria fácil e totalmente viável se
conseguisse me mover. Uma mulher bastante forte e larga se posiciona em minha
frente. Os constantes solavancos ameaçam arremessar-lhe em minha direção. Penso
que não tenho escapatória e temo em ser espremido contra a vidraça.
Drasticamente já imagino os vidros me perfurando as costas. Amaldiçoou-me por
estar sem plano de saúde e me aterrorizo em pensar em ter que enfrentar uma UPA
da vida, ou melhor, da morte. Constato que não para de subir gente. Os pés
começam a se encontrar e a mulher obesa parece que vai me beijar ao menor
balanço. Meu campo de visão se divide entre seu rosto e seus peitos. Ao meu
lado, ela decide enfiar o filho também fortinho, e com toda razão totalmente
irritado. Para piorar a situação ele carrega um saco de pipocas e um pirulito
que te tão lambido lhe escorria pelo pescoço. Em mais um movimento brusco sua
mão pegajosa gruda sobre a minha. Delicadamente consigo me afastar um pouco,
mas constato que meus dedos estão colados. O menino, apesar do sufoco implora
por umas pastilhas, que a mãe se atreve a buscar dentro da bolsa. Tento fechar
os olhos e rezo para que a viagem termine. Novo solavanco. A bolsa da mulher
vai ao chão. Agora o menino melequento caminha em meio a minhas pernas buscando
pelas balas de caramelo. Olho para os lados e vejo que estamos entrando na
Avenida Caxangá.
A desgraceira tá pior do que na
avenida anterior. Chega uma moça magrinha com um vestido drapeado (acho que
assim que se fala). A estampa combina com a sombra melecada em suas pálpebras,
que combina com o azul cintilante de suas unhas. Nessa altura não sabia mais o
que era pior, a viagem ou a paisagem. De repente alguém reclama alto. Percebo
então que a moça tinha duas unhas enormes em cada mão. Me pego imaginando para
que serviriam aquelas garras pontiagudas, que deveriam medir uns dez
centímetros cada. Sei que antigamente os cobradores de ônibus usavam uma unha
grande para contar os passes. Mas ela não tinha cara de cobradora. Pensei
então, no quanto difícil seria proteger tais preciosidades pegando ônibus todos
os dias. Dirigir meu olhar para o interior do veiculo e só consegui ver cabeças
pendentes, que mais pareciam o “João Bobo”, balançando ao sabor do vento. Em meio
a tantos rostos cansados e vencidos pela fadiga, havia uma senhora com feições
de índia, que se mantinha firme e forme. Só ela parecia não se entregar ao
sono. Um senhor sentado mais a frente, roncava alucinadamente. Outros
passageiros falavam alto ao celular provocando uma verdadeira baderna. Um casal
ainda encontrava tempo e espaço para namorar. E tome beijos de língua, num
verdadeiro lambe-lambe alucinante. De repente uma freada brusca jogou todo
mundo para frente. Alguém buzinou alto do lado de fora. “- Tá carregando boi
não, seu puto!”. “Veado!”. “Filho da Puta!”. Gritaram de algum canto que não
vi. Aquele era o famoso freio de arrumação. Talvez fosse um freio desses que a
prefeitura precisasse.
Minhas costas doíam e minhas
pernas mais ainda. A cada capengada o menino melado se apoiava em mim. Olhei o
relógio e constatei que já estava naquele inferno há quase duas horas. Eram
14:15 e o sol queimava feito fogo. A indignação me invadiu ao calcular que o
tempo perdido era equivalente a uma viagem de Recife a João Pessoa, capital do
Estado da Paraíba. Já estava atrasado para o evento e tinha saído com uma hora
e meia de antecedência. Imaginei o sofrimento dos estudantes. Alguém consegue
se concentrar em uma aula depois dessa maratona? Alguém consegue render no
trabalho depois de passar diariamente por todo esse desrespeito e insulto
ultrajante? Mais de duas horas para chegar a uma distancia que se poderia
percorrer em menos de vinte minutos. Já pensaram no prejuízo econômico disto?
Eram exatamente 14:25 quando
consegui me livrar daquele caldeirão do diabo. Não sabia mais se o que sentia
era revolta ou cansaço. Estava um bagaço. Desorientado, suado, melado,
empoeirado e me sentindo um lixo. Como apresentar um trabalho acadêmico naquela
situação? Estava definitivamente indignado com tamanha falta de respeito. Um
ano de nova gestão pública e tudo continua uma bosta! Cadê as mudanças
prometidas em campanha? Cadê o grande gestor que sabia fazer tudo? No fundo,
politica no Brasil é faz de conta. É trocar seis por meia dúzia. E viva a
baderna! Viva a vida de médio burguês! Porque se depender de mim, o trânsito
pode engarrafar de dar nó. Pode parar o país. Porque de ônibus novamente, mais
nunca. Só se for castigo e praga do demônio. E isso quem merece são os
políticos. Transporte coletivo no Brasil é sem dúvida alguma uma experiência
dos infernos. Melhor voltar pras ruas! E urgentemente!
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