Um Estrangeiro na
Capital Federal
Pela segunda vez em Buenos Aires,
me ponho a refletir sobre a condição de ser estrangeiro. Descobrir ou desvendar
uma cidade nunca foi ou será uma tarefa fácil. Penso que tenho me colocado na
contramão das convenções. Sou um turista às avessas. Não me interessa o comum,
o convencional. Sou um homem do mundo, e neste sentido, busco pelas partes e
fragmentos que compõem o todo. Cada mundo estará sempre dividido em submundos,
onde se estabelecerão novos universos. E cada uma dessas dimensões terá seu
lugar, papel e valor. Cada submundo tem sua importância e sua historicidade
especifica, assim como sua dimensão espacial, econômica, social e politica. Os
submundos de uma cidade se transformam em fragmentos de um mundo dentro do
próprio mundo. Tornam-se peças de um quebra-cabeça, que aos poucos se unem para
revelar uma paisagem ou retrato de algo que supomos conhecer, mas que em
essência é apenas superficialidade. Não se conhece algo em profundidade sem
recorrer as suas bases. E estas não se revelam a olhos nus de forma imediata.
As bases que formam uma cidade, um povo, uma sociedade, estarão sempre
escondidas ou camufladas. Faz parte de outro mapa, uma espécie de guia que não
encontramos em bancas de revistas. É preciso olhar além das fachadas, ler os
subscritos e entender os nãos ditos.
Assim, não me basta à beleza, não
encanta a superfície do mundo aparente. O que busco não é a verdade absoluta,
pois que esta não existe. O que procuro está nas partes que compõem as verdades
individuais, ou em suas representações, que formam ou estabelecem um mosaico
coletivo e vistoso, porém não menos traiçoeiro. Parto das partes que compõe o
todo, ou a representação coletiva deste. Neste sentido, sei que o que se
apresenta de imediato nunca será realmente o que pretende se mostrar, mas
apenas fragmentos de algo bem mais complexo. Assim é Buenos Aires, que não se
revela instantaneamente diante do estranho. Suas verdades estão no obscuro do que
não se diz ou se divulga, no escuro da noite, no submundo que forma suas
margens. Minha intenção e propósito é conhecê-la pela raiz e não pela copa, que
tende a se mostrar sempre frondosa e sedutora, e que por isso engana ou ilude. Meu
objeto de investigação está entranhado em seu subsolo, em suas sarjetas, quinas
e esquinas que formam o universo marginal. E neste ponto, sei que as margens
são sempre menos belas e interessantes que os centros, focos dos olhares e
flashes seduzidos. Penso que toda cidade é uma Medéia que petrifica olhares.
Não se pode olhá-la de frente. Não se pode fita-la aos olhos. Faz-se necessário
um protocolo. Pedir licença para acessar seus segredos. E isto, é o que tenho
feito, cautelosa e pacientemente. Desvendar códigos de acessos, passes de
autorizos que me levem além das transparentes cortinas que separam seus mundos.
Dois mundos – superfície e subsolo. Dois espaços que geométrica e socialmente
dividem e demarcam uma cidade em subúrbio e centro, compondo uma mesma dimensão.
Metaforicamente falando, Buenos
Aires é realmente uma linda e frondosa árvore fincada nas entranhas culturais
da Argentina. Mas ao contrario de muitos não olho para cima. São as raízes que
me interessam, pois que estas adentram profundezas e conduzem a espaços e
lugares aonde poucos chegam. Uma vez nestes, torna-se preciso encontrar as
chaves através das quais se abrirão novas portas. Sem as chaves ou códigos de
acesso corretos, corre-se sempre o risco de se perder no caminho, ou pior, de
não poder retornar a superfície. Ninguém acessa segredos sem pagar um preço. No
melhor das hipóteses o revelar dos mistérios nos imporá reformulações sobre
nossas próprias concepções de mundo. Em casos extremos, a loucura. Ninguém se
mantém indiferente diante do não dito, do não visto, do invisibilizado. Jamais
se é o mesmo após acessar as margens e os submundos, pois que neles encontramos
a essência humana. O homem-superfície é o mesmo homem-subsolo, contudo suas
concepções de vida e de mundo se alternam e/ou se alteram em conformidade as
regras e normas de cada espaço. Em um, se mostra racional e cumpridor de
formalidades; no outro, se desvincula e nega a razão para se entregar aos
instintos. Mas é no subsolo que lidamos com o cru, com o áspero, com as
vísceras e com os restos. Não sei ao certo se o submundo estabelece os sistemas
de poder, e consequentemente, os sistemas políticos que governam as massas nas
superfícies, ou se apenas lhes servem como esteio e base de manutenção da
hipocrisia social, culturalmente construídas para omitir perversões.
Independente destas elucubrações, tendo a refletir sobre a relação dualista
intricada na relação visibilidade/invisibilidade que separa e define tais
espaços. Não existe o submundo sem o mundo superfície. Um necessita do outro,
para juntos coexistirem e se manterem. Ambos, criações e construções humanas, e
assim, servem apenas aos interesses dos homens. Neste aspecto, o mercado do
sexo não se mostrará diferente.
A noite demarca seus limites, mas
não define suas extensões. Ruas calmas e tranquilas parecem possuir portais
mágicos que se abrem as permissividades condenadas na superfície. Paredes
separam mundos e tornam-se fortalezas para possibilitar que o não dito e não
visto se efetivem sem censuras ou repressões. Uma espécie de acordo de
cavalheiros. Um espaço e um tempo para cada coisa. Um lugar onde se retira as
roupas sociais. Um universo, onde parece não haver necessidade de máscaras.
Penso, contudo, que o mundo do sexo comercial é tão ilusório quanto o mundo
superfície. O que muda são os códigos, sejam corporais ou comportamentais.
Porém as regras são tão rígidas, e detalhadamente definidas e negociadas,
quanto no mundo-superfície. As normas são produções humanas que nos servem de
guia e ao direcionamento de condutas. Não existem mundos sem regras ou normas.
Digamos então, que o mundo do sexo comercial é uma tentativa do desmantelo
organizado. Mas apenas uma tentativa utópica, não real. Os que acessam os dois
mundos, parecem ansiar pela quebra de rígidos paradigmas, contudo,
automaticamente reformulam e introjetam novos modelos que nada mais são do que
novos contratos sociais. A norma se reestabelece, ou apenas se reconfigura,
compondo novos códigos de condutas onde se delineiam o velho duelo entre o
proibido e o permitido. A ilusão de liberdade genuína cria apenas uma nova
ilusão de pretensa ou utópica liberdade. O homem se mantém preso em seus
próprios sistemas, seja na superfície ou no subsolo, onde também nada parece
ser o que realmente é, ou se mostra.
Saio às ruas e identifico estes novos
códigos. Não há nada realmente novo em essência, nada imprevisto. Aqui ou lá os
corpos se comunicam. O olhar torna-se o campo do não dito, do não explicito,
onde os pares e/ou semelhantes se encontram. Mas é preciso astúcia para
entender e decifrar mensagens ocultas, palavras não verbalizadas, não
permitidas. Tudo funciona como uma espécie de intercambio invisível, ou melhor,
propositalmente invisibilizado. É como se disséssemos: estou aqui e te vejo.
Não mais te fazes oculto a meus olhos. E a cumplicidade se faz no silencio das
palavras. A confirmação se estabelece em um breve movimento de cumprimento ou
saudação. Uma espécie de confirmação pela qual se sinaliza: também te vejo e te
reconheço. Estabelece-se o primeiro passo para uma potencial interação, seja
social ou sexual. Só a experiência permite a identificação dos códigos
específicos de dois mundos que se cruzam e se relacionam simultaneamente dentro
de espaços de um ou de outro. O olhar também sinaliza recuo ou avanço, pois que
entrega intensões. Objetivos e propósitos parecem ser codificados para evitar
surpresas ou problemas. É preciso que o olhar codifique também os movimentos e
posturas. Tudo é sinalização, tudo é aviso, tudo é alerta. Nada é bastante
claro ou explícito. És a principal regra de quem acessa o universo do sexo
comercial: ler e entender o não dito, o não explícito.
Desta forma, a experiência em
Buenos Aires tem me proporcionado momentos incríveis e inusitados. Não se pode
esquecer a condição de estrangeiro, que nos coloca em uma outra posição, em um
outro lugar. As perspectivas se alteram, e neste sentido assumimos o lugar de
“outro”. Tornamo-nos os diferentes, e em certo sentido, os intrusos. Muitas
vezes, as interações sociais se estabelecerão em uma relação de receptividade e/ou
repulsa, e o acesso a espaços, costumes e rotinas se fará lento. As diferenças
se estabelecem a partir do idioma, e se estendem em hábitos, costumes e condutas.
A tradição estabelece as regras e normas. Na perspectiva em que me encontro sou
observador, ao mesmo tempo em que me torno observado. Lembro-me então do Tulio
Carrela, professor argentino que viveu em Recife no início dos anos sessenta e
que de forma biográfica revelou o submundo do universo homossexual da cidade.
Apesar das diferenças temporais e socioculturais que separam nossos momentos,
em muito as situações se assemelham. Num caminho oposto, saí do Recife para
desvelar o submundo do universo homoerótico argentino. Enquanto suas impressões
sobre a temática surgem de uma constatação quase que inusitada, não prevista ou
pretendida, as minhas revelam-se como desdobramentos intencionais e previamente
planejados. Representa a continuidade de minhas pesquisas sobre as sexualidades
masculinas.
Identificar e conhecer um mercado
homoerótico em Buenos Aires, para depois compará-lo ao de Recife, me estimula a
analisar a influencia de diferentes culturas sobre a estruturação e
consolidação das relações de gênero. Assim tenho estabelecido estratégias que
me possibilitem a circulação e interação com a capital portenha. A cada estadia
em Buenos Aires tenho me instalado em um bairro diferente. Anteriormente no
Congresso e hoje no Abasto. As localizações geográficas tem se mostrado
decisivas para o mapeamento do grande centro urbano que parece se estender por
quilômetros de extensão. Outra estratégia é a inserção na rotina e no cotidiano
local. Se envolver no emaranhado social na tentativa de diminuir a visibilidade
estigmatizada pelas marcas corporais. Somos latinos. Não que os portenhos não o
sejam, mas nos diferenciamos em estatura física, cor da pele e sotaques. Em
contra posição, os nativos desta cidade se classificam como “Europeus de
espírito latino”. Em meu entendimento tal classificação não representa apenas
um conjunto de palavras, mas um conceito. Falamos de uma identidade que os
diferenciam de seus pares. Nesta cidade não só a arquitetura é europeia, mas
também os costumes revelam sua forte influencia. O argentino é pacato e
reservado. Não é efusivo. À primeira vista nos parecem isolados, solitários e
intransigentes. Mas cada povo tem seu jeito e suas características. De forma
simplista poderíamos dizer que aqui, o espaço do outro termina na porta de
casa. Existe um limite muito sólido entre o público e o privado. Os segredos
são mantidos da porta para dentro. A vizinhança se estabelece pela cordialidade
formal. Não há espaço para violação ou invasão, características tão comuns aos
brasileiros. Assim, falar a mesma língua, comer as mesmas comidas, adotar os
mesmo hábitos, acima de tudo, tem me possibilitado acessar os sujeitos que vão
se tornando potenciais informantes. O processo é lento, mas extremamente
necessário. Conhecer a cultura de um povo não se faz de imediato, desvendar sua
essência e natureza muito menos.
Inicio então uma espécie de
diário de bordo, na tentativa de descrever minhas principais impressões sobre a
estruturação e consolidação de um mercado sexual homoerótico na capital
argentina. Saliento, contudo, que estas são apenas minhas impressões e não
verdades absolutas sobre a temática, sobre a cidade, e muito menos sobre a
cultura de um povo. Meu objetivo é registrar uma experiência, que para mim tem
sentido e valor pessoal e acadêmico. Servirá como experiência, como forma e
estratégia de avaliar o paulatino desenvolvimento, bem como os processos de
minha investigação.
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