Comunidade Peruana |
DE VUELTA A LA TERRA DE LOS HERMANOS
Quatro de janeiro de 2013. Chegamos
com o por do sol. Eram oito horas da noite e o céu estava amarelo. Abaixo de
nós, nuvens cinza e espessas contrastavam a beleza colorida e luminosa. Uma
inclinação suave para a direita e iniciamos o pouso. Não posso negar meu
próprio espanto. Estava absolutamente tranquilo e pela primeira vez viajava sem
medos ou receios. Acho que a idade trás sobriedade. Estávamos voltando à
Argentina depois de seis meses e era de certa forma como se retornássemos para
casa. Este lugar me trás a estranha sensação de algo conhecido e muito próximo.
Algo que não consigo explicar e muito menos entender. Ainda do alto
vislumbra-se uma cidade que parece geometricamente organizada, com vias longas
e retas que parecem não ter fim. Apesar do verão anunciado, chovia bastante.
Relâmpagos iluminavam o céu que era cotado por grandes e sucessivos raios. O Aeroporto
Internacional de Ezeiza estava apinhado de gente. A mistura de idiomas sempre
me deixa meio confuso e o fluxo de raças me desperta atenção. A burocracia para
registro do visto provisório de residência toma mais tempo que o previsto. Apanhar
as malas, se organizar, contratar um taxi, consomem mais alguns preciosos
minutos. Significava um atraso que acarretaria multa. Na Argentina os incômodos
são pagos em dólar. Quem aluga apartamento em Buenos Aires deve dar entrada no
imóvel até às dez da noite, e saída a partir das oito da manhã. Não há acordos
e muito menos o famoso “jeitinho brasileiro”. Assim, já estávamos no prejuízo. Quarenta
minutos por estradas bem conservadas e devidamente sinalizadas revelam as
vantagens da privatização das principais vias e rodovias. Um primeiro sinal
para salientar as diferenças culturais. O veículo parecia deslizar sobre a
pista molhada, livre dos solavancos tão comuns aos brasileiros.
Pela Av. Córdoba chegamos a
Callle Jean Jaurés, no bairro de Abasto, nosso destino nos próximos vinte dias.
O prédio é antigo e segue o padrão da arquitetura que classificaria como
novo-portenha. Descemos do taxi em baixo de chuva e corremos para a marquise.
Mas aqui elas não existem. Como bem sinalizou Tulio Carella, marquises é
invenção brasileira. O interfone de estilo europeu é dourado e repleto de botões
que indicam os andares por letras. Diferente do Brasil, as letras substituem os
números dos apartamentos. Não havia ninguém para nos receber e o receio de
ficar na rua nos apavorou por alguns minutos. Tempos depois, um casal de
argentinos nos abriu a porta e contatou a síndica. Simpáticos e solícitos
quebram uma antiga impressão pessoal relacionada à receptividade de “los
Hermanos”. Não tenho dúvida de que tal impressão é resquício de uma antiga e
fantasiosa rivalidade que alimentamos por décadas. A síndica é uma senhora meio
agitada. Meio desconfiada nos recepciona e conduz ao apartamento. Uma sala
grande é dividida em dois ambientes por um biombo. Um banheiro e uma cozinha
completam o ambiente. Uma janela grande dá para os fundos de uma escola, onde
vejo uma bandeira de Israel. Por um minuto receei o barulho durante a manhã. Com
o tempo descobrir que os portenhos não incomodam vizinhos. Isto é regra. A síndica
fala bastante rápido, o que dificulta a compreensão precisa das coisas. É
necessário tempo, e certa paciência, para ajustar a escuta.
Na manhã do dia seguinte saímos
cedo e percorremos as ruas para mapear pontos e identificar caminhos mais
curtos que nos levem a universidade. Diferente do inverno, Buenos Aires se
mostra mais colorida e leve. Também parece menos agitada, provavelmente devido
ao feriado prolongado do final de ano. Para alguns estabelecimentos as férias
se estendem até março. As praças estão floridas e as ruas mais limpas, ao
contrário do que presenciamos em julho passado, período de grandes greves. O
calor está ameno, mas o ar está abafado. Na Avenida Corrientes, esquina com a
Calle Paraná, entramos no La Faina para uma refeição rápida. O tostado misto (que
nada mais é do que nosso famoso mixto quente) acompanhado de café com leite ou
gaseosa (refrigerante) está em promoção e custa a pequena bagatela de $ 23,00
(vinte e três pesos), equivalente a mais ou menos R$ 9,20 (nove reais e vinte e
cinco centavos), dependendo da cotação do dia. Esse é um problema a se
enfrentar de imediato, pois nunca sabemos realmente o valor das coisas. A
carestia revela a fragilidade econômica e a desvalorização da moeda local.
Fala-se muito em recessão e inflação, o que me faz lembrar a década de oitenta
e inicio dos anos noventa no Brasil. Com um mapa sobre mesa sinalizamos o
retorno pela Marcelo T. de Alvear, onde se localiza a Universidad Del Salvador.
Já situados, retornamos ao bairro onde Carlos Gardel viveu ao lado de sua mãe
seus últimos dias de vida. Sua antiga casa foi transformada em museu e serve
como referencia ao local.
O bairro é residencial e
apresenta uma mistura étnica e religiosa. Apesar da força da religião católica
no país, pois a Argentina não é um país laico, pelo menos neste bairro é comum
à presença de judeus. Ao lado se encontra uma rua denominada popularmente como
corredor peruano. A identificação torna-se inevitável. Mulheres e crianças
descansam embaixo de árvores ou sentadas nas portas das casas. Os homens por
sua vez, se reúnem nos bancos das ruas para beber e conversar. De menores
estaturas e pele morena, os peruanos circulam por várias quadras que parecem
formar um gueto. Em meio a tudo isso, uma variedade de casas de show, bares,
cabarés e kioskos com fachadas coloridas se espalha pelas ruas, revelando a
força do tango. Carlos Gardel parece surgir em cada esquina, em cada
estabelecimento. Várias escolas de dança oferecem opções para iniciantes e
turistas que pretendem se arriscar nos passos de uma dança que já foi
considerada imoral.
Sigo pela Viamonte em direção ao
centro. Pelo caminho revejo velhos endereços que compõem o mercado homoerótico
da cidade, aos quais precisarei voltar para novas observações. As aulas só
começam na segunda-feira, então resolvo continuar bancando o turista fascinado.
Chego ao Teatro Colón. Na praça em frente há uma exposição de fotografias que
remontam sua história. Torna-se engraçado perceber a passagem dos anos e as
consequentes transformações urbanas que caracterizam cada cidade. Paro diante
das fotos em preto e branco e me perco imaginando sobre a vida daquelas
pessoas, que agora estampam sorrisos congelados no tempo. Dos jardins eleva-se
a sinfonia de Bethoven e o caminhar lento e tranquilo dos visitantes mais
parece um bailado. Existe uma harmonia encantadora entre natureza e historia
naquele local. Arrependo-me por não ter trazido a máquina fotográfica. Pelo
lado oposto chego novamente a Av. Corrientes e sigo em direção ao Obelisco,
símbolo máximo da cidade. A diversidade de flores coloridas que o rodeiam me
chama a atenção. Finalmente encontro a Calle Florida, centro de compras e fluxo
de artistas populares. Ali também as diferenças étnicas se fazem presentes.
Imigrantes, em sua maioria, “latinos”, pedem esmolas nas calçadas de ricas
lojas de departamentos. Crianças e adolescentes perambulam em meio à multidão.
Raças, estilos e tonalidades de peles se misturam formando um grande mosaico
humano. Uma espécie de Torre de Babel onde os povos se encontram, cruzam, mas
não se conhecem. A Galeria Pacífico está lotada, assim como as demais lojas e
estabelecimentos comerciais locais. Homens e mulheres abordam transeuntes
divulgando os serviços de prostitutas. Os panfletos em formas e cores
diferentes se espalham pelo chão. Identifico alguns homens que supostamente
parecem garotos de programa, porém não tenho dados ou informações suficientes
que confirmem a hipótese. Cansado, inicio o retorno e volto para casa.
À noite volto a Boate, que aqui
denominarei como “Boate A”. Justifico a utilização de códigos para os
estabelecimentos como forma de preservar os segredos da cidade. Não me sinto no
direito de expô-la de forma inconsequente, e nem desejo que minhas impressões
sirvam como roteiros para o turismo sexual. Já é meia noite e o fluxo de
homossexuais é pequeno para um sábado de um grande centro urbano. Garotos
conversam encostados a um muro e parecem se proteger da visibilidade imposta
pela rua. Um carro da patrulha municipal encontra-se estacionada na frente do
estabelecimento. Observo que os gays portenhos são bastante reservados. Muitos
se posicionam em esquinas paralelas esperando a abertura da casa noturna. As
aglomerações também são pequenas, diferentemente de Recife. Acredito que existe
certa repressão em relação à diversidade sexual. Muito raramente verifica-se a
troca de carinhos ou demonstrações de afetos entre homens homossexuais nas
ruas. Casais de homens andando de mãos dadas nem pensar. Até as travestis se
mostram discretas e reservadas.
Inicio uma conversa com um rapaz
que aguarda na frente da boate. Ele é de estatura mediana e pele bastante
clara. Diz ser venezuelano e que está em Buenos Aires a estudo. Outro se
aproxima e entra na conversa. Aproveito para conhecer melhor a realidade local.
Questiono porque poucos se aproximam da boate e eles explicam que a reserva é
uma característica portenha. Pergunto como se denomina popularmente os
homossexuais. Respondem que vulgarmente se chamam “munhequitas”, porém tal
classificação se emprega apenas aos “afeminados” e não aos “normais”. Questiono
então sobre o que é ser um homossexual normal. Respondem que significa ser um
homossexual discreto e que se veste como homem. Pergunto se sabem algo sobre a
prostituição masculina nas ruas e informam-me alguns endereços que visitarei
posteriormente. Chama-me a atenção uma categoria que utilizam para denominar
heterossexuais que se envolvem ou se relacionam sexualmente esporadicamente com
homens homossexuais. Estes são classificados como “Homo-Curiosos”, uma vez que
as relações estão vinculadas a curiosidade, descobertas ou as possibilidades de
novas experiências. Uma espécie de exercício ou elasticidade da sexualidade ou
vivência sexual. Observo uma placa na entrada da boate. De imediato imagino que
sinaliza as diferenças de classes sociais. Tal estabelecimento é descrito como
espaço de diversão destinada a “Classe C”.
Os demais jovens parecem
isolados, conectados ao mundo via celular. Ninguém fala, ninguém brinca,
ninguém chama a atenção. Depois de um dia exaustivo decido não prolongar a
noite e volto para casa sem conhecer o estabelecimento. Penso que terei
bastante tempo e que as informações colhidas já representam um bom começo. Já consigo
me comunicar com os nativos, mesmo não tendo a fluência necessária. São duas
horas da madrugada e muitos moradores passeiam com cachorros pelas ruas. Apesar
da grande violência anunciada, Buenos Aires mantém um ar de calmaria que me
agrada.
O domingo é extremamente calmo. Acordo
sem a tradicional suada do comercio da Boa Vista. As ruas também em nada
lembram o Recife dos últimos quatro anos. São limpas e organizadas. Algumas obras
revelam a ampliação da rede de metro, aqui chamado de “Subter”. As árvores
estão floridas e a cidade parece paralisada no tempo e no espaço. Os restaurantes,
cafés e kioskos estão abertos, contudo não interferem na calma silenciosa. Placas
de sinalização pedem desculpas pelos transtornos das obras. Observo que as
calçadas possuem estruturas de acessibilidade, possivelmente devido a grande
concentração de pessoas idosas. O envelhecimento da população é uma constatação
inevitável, porém o número de pessoas com deficiência física e/ou cadeirantes
parece bem reduzido. As pessoas passam silenciosas. Não há gritos, ninguém anuncia
produtos nas frentes de lojas. A população em situação de rua se espalha por
vias e praças menos visíveis. Nas praças, pessoas se deitam nos gramados e
jardins para curtir o sol. Como não existem casas, e muito menos terrenos, as
praças são invadidas por várias famílias. Crianças correm e brincam sem grande
baderna. Casais foram toalhas e armam espreguiçadeiras. Grupos de rapazes bebem
e conversam amenidades. Tudo parece um grande pequi-nique.
Da janela observo a rotina de uma
família portenha que mora ao lado da escola. São três mulheres e um menino de
mais ou menos cinco anos de idade. Sobre a laje do primeiro andar, um terraço
se estende até os muros da unidade de ensino. As mulheres, sentadas a mesa,
conversam calmamente enquanto tomam chimarrão. Penso que podem ser irmãs ou
amigas em folga. Da interior da casa surge a voz de Adele. A melodia me traz
lembranças e saudades. A tarde chega e elas continuam no mesmo lugar e na mesma
sonoridade. O dia parece preguiçoso para aquelas mulheres. A tarde finda, mas
não escurece. São oito horas da noite e elas continuam bebendo e conversando. O
céu ainda está amarelado. A noção de tempo é outra. A rotina é outra. A cidade
é outra.
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