A DIVERSIDADE DAS IDENTIDADES DE GÊNERO
Nesta semana, mais uma vez, as temáticas sexualidades e gênero
voltaram à pauta dos principais meios de comunicação, seja na mídia tradicional
ou virtual, pelo mundo inteiro. As discussões contribuem para a importância de
se repensar a urgente necessidade de respeito às diferenças através do
reconhecimento legal e social das identidades. Neste sentido destaca-se que
identidade relaciona-se diretamente ao que nos constitui enquanto sujeitos,
individuais e únicos. Parte do próprio reconhecimento sobre o que se é, muitas
vezes, em oposição ao modelo hegemônico biologista. Isto significa a necessidade
de se abandonar o restrito argumento do sexo biológico como único parâmetro para
definição das identidades de gênero. Se na antiguidade a ciência acreditou que
a identidade de gênero poderia, ou deveria ser adequada ao corpo; na atualidade,
a mesma reconhece a inviabilidade das práticas médicas voltadas a domesticação
da subjetividade, dimensão fundamental a estruturação e desenvolvimento das
identidades humanas. Assim, estudos e pesquisas acadêmicas têm revelado que ao contrário
do que se pensava o corpo sim, mostra-se passível de mudanças e adequações
objetivando a consolidação do auto-reconhecimento sobre as identidades de gênero,
favorecendo o estado de bem estar, que define o conceito de saúde.
A exemplo disso, na cidade de Buenos Aires, Argentina, um
professor de xadrez da rede pública de educação, assumiu sua nova identidade de
gênero após as férias escolares. José D´oro agora se chama Melissa e se
reconhece como travesti. Torna-se assim a primeira professora transexual da
capital argentina. Há mais de seis anos iniciou sua transição, que incluiu a
implantação das próteses de silicone nos seios, mesmo vestindo-se com roupas
masculinas. Pai de duas filhas, 21 e 16 anos de idade, sentencia: “Eu sempre
soube o que eu era e, quando era criança, por causa da minha delicadeza, sofri
violência de gênero e tive que mudar de escola. Hoje, depois que tirei a capa
de homem, me sinto muito melhor comigo mesma”. Por parte das escolas, os pais
dos alunos foram comunicados sobre a alteração de sua aparência após as férias.
''Ela é uma excelente professora e as
crianças têm que se acostumar'', disse uma das mães dos alunos ao jornal La
Nación. O mesmo sentimento é compartilhado pela também professora Claudia
Araujo, que disse ter explicado a mudança aos alunos por meio de contos para
abrir o debate sobre a temática sexualidade e gênero. Para ela, ''as crianças e
jovens têm muitos exemplos que vêem na televisão. Eles têm muita informação e
entendem essas questões melhor que os adultos. Estamos em uma sociedade que
muda frequentemente e acho que a decisão da Melissa foi corajosa''. Em Buenos
Aires, a partir de junho de 2011 passou a vigorar a Lei de Identidade de
Gênero, que permite a mudança de nome em documentos civis, além de garantir o
acesso aos tratamentos médicos necessários à mudança de sexo através da rede de
saúde pública. Para o antigo professor, a lei era o que faltava para que “cada
um possa assumir quem realmente é”. No que se refere a sua identidade declara
não sentir a necessidade de se submeter à cirurgia de transgenitalização: "Eu
sou travesti e não tenho conflito com meu corpo".
Se a história da professora portenha choca por confrontar
nossas tradições machistas e conservadora, ou ainda parece distante de nossa realidade, é bom
saber que fato semelhante aconteceu, também este ano, no Brasil. A professora Marina Reidel, viveu como
Mário durante vinte nove anos na cidade de Montenegro, Rio Grande de Sul, até
se transferir para Porto Alegre, onde iniciou sua transformação. Descendente de
alemães se descobriu do sexo feminino ainda na infância. Durante a adolescência
concluiu o magistério em um colégio de freiras, e posteriormente graduou-se em
artes. Aprovada em concurso começou a lecionar em escolas públicas do estado. Seu
processo de transformação se deu de forma gradual, começando pelos cabelos, que
deixou crescer; passou a usar brincos; e, por fim, adotou o nome social. No ano
de 2006, licenciou-se das atividades profissionais e iniciou o tratamento a
base de hormônios, cirurgias plásticas e implante de protestes de silicone. A
direção da escola estadual também promoveu palestras sobre a temática e
comunicou aos alunos que a professora não seria a mesma quando retornasse as
atividades. Apesar das providencias administrativas Marina manteve-se
cautelosa: "A gente aprende a sempre esperar o pior" disse ela em
entrevista concedida ao jornalista Daniel Aderaldo (iG, 15.05.2012). Seu retorno
ao trabalho foi tranquilo, não enfrentando grandes resistências por parte dos
alunos, pais, colegas de profissão ou gestão da instituição de ensino:
"Claro que causou espanto, mas em nenhum momento houve problemas
sérios", disse ela. Como desafios futuros apresentam-se, a defesa de
dissertação de mestrado em educação pela Universidade do Rio Grande do Sul,
onde analisará a realidade e prática de professoras travestis e transexuais em
escolas brasileiras; e a cirurgia de mudança de sexo.
Já em Pernambuco, na semana passada o educador físico
Alexandre Emanuel conseguiu uma liminar na justiça que obriga o estado a pagar
sua cirurgia para mudança de sexo, a ser realizada no Hospital das Clínicas de
Goiás, já que o serviço antes prestado pelo Hospital das Clínicas da UFPE está
suspenso por falta de profissionais especializados, fato já divulgado neste
blog. No dia 29 de agosto, a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco
anunciou a implantação no Estado de um centro especializado no atendimento a
transexuais masculinos e femininos, dentro de um prazo máximo de seis meses. Segundo
a diretora de Políticas Estratégicas da Secretaria de Saúde, Andreza
Barkokebas, com a implantação do serviço, Pernambuco será o segundo estado do
país a ter um centro de referência em mudança de sexo credenciado pelo
Ministério da Saúde.
Enquanto
isso, em Brasília, o estudante de ciências políticas da UnB trava uma batalha
administrativa para ser reconhecido pelo nome que escolheu. Nascido menina,
Marcelo, aos vinte e dois anos, quer ver nos documento da instituição, voz dos
professores, colegas e funcionários, sua nova identidade formalizada legalmente
e reconhecida. Depois
de anos tentando compreender tudo o que sentia, ele conheceu – e aprendeu –
sobre transexualidade. Com ajuda de amigos e da terapia, compreendeu que não
era uma simples “mulher lésbica”, mas sim, homem - a vontade de ser vestir como
um garoto tinha explicação. Para a jornalista Priscilla Borges declarou que não
foi fácil se libertar da antiga identidade. “Não é e nunca será fácil, eu acho”
(iG, 10.05.2012). Sua primeira providência foi comunicar ao pai, que reside no
interior de Pernambuco e com quem restringiu suas relações após a reação
contrária. O segundo passo foi contar aos amigos sobre sua nova identidade, com
quem escolheu seu nome social. Depois disso cortou os cabelos e desde então luta
pelo reconhecimento e respeito dentro da instituição de ensino. Marcelo Caetano
antes de se transferir para Brasília cursava o curso de direito na UFPR onde
tinha reconhecido a sua identidade social em todos os documentos da
instituição, fato não estabelecido pela UnB. Assim era preciso a cada início de
semestre conversar com cada professor sobre a situação. Segundo ele, alguns
reagiam de forma natural e atendiam ao pedido. Outros, no entanto, se negavam,
contribuindo para a efetivação das humilhações sofridas em sala de aula. “A aceitação foi muito tranquila, de modo
geral. Cheguei aqui com uma postura muito diferente. Já fiz muitos amigos, mas
essa questão do nome é muito importante. Rodei tudo quanto é decanato em busca
de ajuda, porque hoje tenho que abrir minha intimidade aos professores e correr
o risco de ser atendido ou não”. Cansado dos constrangimentos, no dia 26 de
janeiro entrou com um pedido junto a universidade para o reconhecimento
incondicional do nome social e aguarda decisão definitiva da UnB, que ao que
tudo indica será favorável. “A sociedade deveria tratar a situação dessas
pessoas com mais atenção e não fingir que elas não existem. O procedimento para
mudar os documentos de quem não se sente dentro do gênero que nasceu deveria
ser mais fácil”, afirmou o professor de direito e chefe de gabinete do reitor, Davi
Diniz.
No mesmo caminho, o da garantia de igualdade de
direitos, em maio deste ano, o Conselho Estadual de Educação do Estado de Ceará
regulamentou a adoção do nome social de estudantes travestis e transexuais em
todos os documentos internos das escolas onde estudam, incluindo as
instituições de educação básica e ensino superior vinculadas ao sistema de educação
estadual. A nova regulamentação também permite que alunos/as com menos de
dezoito anos optem pela utilização e reconhecimento do nome social dentro das
instituições desde que apresentem autorização dos pais ou responsáveis. A nova
regulamentação se pauta na chamada popularmente “Lei do Nome Social”, já
aprovada em alguns estados, incluindo Pernambuco [Decreto Lei nº 35.051, de
25.05.2010], que permite aos servidores públicos adoção e utilização do nome social em
documentos institucionais.
Também vem do Ceará a notícia sobre a primeira
travesti doutora em educação do Brasil. No mês passado, Luma Nogueira Andrade
defendeu sua tese de doutorado, pela UFC, revelando o cotidiano das travestis
matriculadas na rede estadual de ensino, onde os maus-tratos tendem a se tornar
corriqueiros. Se durante a infância sentiu na própria pele o preconceito por
parte de professores e colegas de turma, na juventude enfrentou o mau no mesmo
ambiente ao se tornar funcionária pública concursada, passando a lecionar em
uma escola do interior. Com o título “Travestis na Escola - Assujeitamento ou
resistência à ordem normativa”, Luma apresenta um levantamento das travestis
matriculadas na rede estadual de ensino do Ceará e narra os maus-tratos
sofridos por elas no ambiente escolar. Ao longo do trabalho, os relatos das
entrevistadas se confundem com sua própria história de vida, permitindo um
cruzamento de autobiografia e etnografia. “Eu ia percebendo em minhas
interlocutoras que, na verdade, existe uma diversidade de formas de travestis e
que a realidade que elas vivem não é a mesma que eu vivi”. Com o estudo, aprovado
para publicação em livro, ela destaca a inexistência de professores e gestores com
formação que vá além do conteúdo das disciplinas, dando conta das questões de
gênero não apenas para tratar da homossexualidade no currículo, mas
principalmente lidar com as especificidades de cada pessoa. Para o antropólogo
Alexandre Fleming Câmara Vale, um dos professores a participar da banca
examinadora, a tese de Luma é um “marco” para os estudos sobre travestis. “É a
primeira vez que uma travesti escreve sobre a experiência das próprias
travestis” (iG, 17.08.2012).
A quem acredita que tais assuntos não lhes dizem
respeito, o melhor a fazer é buscar por informações. Afinal de contas, a
sociedade se transforma a partir das demandas sociais, das necessidades do
próprio homem, que se constitui e se constrói na própria sociedade e cultura. As
resistências são do âmbito pessoal e atende a interesses particulares. Porém é
sempre bom lembrar que a garantia de igualdade de direitos revela-se e se
estabelecem em uma dimensão maior – o bem coletivo. Neste sentido, vale
destacar que não se precisaria de tanto trabalho e barulho se nossa Lei Maior,
a constituição Federal, fosse respeitada. Ou todos não somos iguais perante a
Lei? Uma sociedade democrática se consolida a partir do respeito individual e
coletivo de seus membros. E se ainda tiverem alguma dúvida sobre o que é
diversidade sexual, na realidade de nossa cultura, aproveitem o próximo domingo
17 e participem da Parada da Diversidade, na orla de Boa Viagem. Boas diversões
reflexivas!
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