quarta-feira, 12 de setembro de 2012

GABRIELA NUA NA BOA VISTA: SERÁ QUE DÁ VOTO?





AS ELEIÇÕES 2012 E O BANHO DA GABRIELA NO CENTRO DA BOA VISTA

De minha janela vejo uma mulher ao banho. E neste exato momento penso no quanto a cena poderia ser bela se houvesse delicadeza; ser plástica se houvesse arte; ser mágica se houvesse dignidade. Com certeza se tornaria alvo dos flashes anônimos se houvesse humanidade. Reluto em não pegar a filmadora. Porém sei que não me sentiria menos canalha ao registrar um ato tão esvaziado de privacidade e direitos. Busco então um motivo que justifique minha permanência indevida e indisfarçada na janela e encontro minha própria condição de sujeito infame e ignóbil, inerte ou indiferente a tamanha violência. Na cena que presencio não há encantos. Também não há sensualidade, mistério ou erotismo. Apenas uma mulher banhando um corpo sujo. Não há maneirismos, e muito menos sutilezas. Não existe prazer no ato, mas ao contrário, há pressa. Uma espécie de mal-estar, certa agonia que revela o incômodo por estar totalmente exposta a olhos falsamente pasmos e curiosos. É uma negra subjugada à hipocrisia e censura alheia. Uma mãe de corpo gasto, já desnudada dos encantos femininos.

Ao contrário do que se possa pensar, não há indecência, muito menos imoralidade em seu ato. Não de sua parte. O indecoro neste caso torna-se político e social. Seu desprendimento revela, de certo modo, uma espécie de ingenuidade digna dos excluídos. Daqueles que se vêem obrigados a guiar-se por outros parâmetros normativos – os dos marginalizados. Afinal, é apenas uma mulher lavando o corpo coberto pela poeira de uma cidade já adoecida e impregnado de calor. Diria mesmo se tratar de uma espécie de “Gabriela”, uma das tantas que coabitam as calçadas da Boa Vista, e que, como qualquer outra mulher, comumente se banha ou se limpa das ruas. E se a impureza vem das ruas, que sua higienização também se faça nelas. Aliás, este também não se configura enquanto ato tão inusitado para uma cidade abandonada como o Recife. Resolvo então registrar o cotidiano da nossa também heroína, que provavelmente chegou à cidade grande em busca de melhores condições de vida. Porém saliento que, com certeza, por não ser tão exímio escritor quanto o Jorge talvez sonegue detalhes que pudessem caber no erotismo inerente ao ato de banhar-se em público, motivo de altos índices de ibope na literatura televisiva brasileira. Esclareço ainda que, logicamente meu objetivo não é literário, mas unicamente o registro das improbidades de uma cidade que se perdeu em dignidade. Começo então dizendo não saber se moça em questão se chama “Juliana”, mas que de certo “Paz” não é seu sobrenome, e muito menos sua companheira. Destaco também que a certa indiferença moralista, disfarçada por parte dos espectadores, se justifica claramente pela deformidade de suas curvas. Nossa Gabriela não tem um corpo harmonioso, e muito menos fotogênico, como a imortalizada pelo autor baiano. Na cena em questão, não há um chafariz brotando gotas molhadas em forma de chuva para salientar silhuetas torneadas. A água que lhe cai, ou cabe, sai de uma lata velha e enferrujada. Daquelas que se encontra nos esgotos entupidos do Recife. Corre em forma de jato, numa espécie de trombada que lhe bate, e abate o rosto, escorregando impura entre os seios até se espatifar na calçada. Não é uma cena bonita, porém não menos pura do que a protagonizada na novela.

Então me pego pesando sobre como descrever a poesia de uma água suja, que não lava, e que se esconde apressada, e ainda mais insalubre, entre anônimas pedras retangulares de uma cidade fedorenta e relegada ao lixo, inclusive humano? Como exaltar um corpo que nos fala de outra estética – a dos que não tem nada, inclusive beleza? A imagem aqui, diferente da do folhetim, nos fala de um corpo sem encantos, sem charme, elegância ou atrativos. Afinal, trata-se apenas de uma mulher de rua em seu habitat natural. Pergunto-me então, como tornar a leitura mais prazerosa, colorindo um cenário composto por um abrigo brutalmente feio, que demarca uma das tantas paradas de ônibus na Av. Conde da Boa Vista? Será que deveria descrever a “individual deformidade coletiva” dos coadjuvantes que a acompanham na cena? Será que valeria à pena destacar a presença de crianças nuas e sujas, que acompanhadas de cachorros, gatos e ratos sarnentos, bebericavam os restos da água que não lhe limpava o corpo? Se tivesse uma máquina mais potente, talvez pudesse dar um close em suas partes intimas despropositalmente reveladas pelos trapos esburacados que vestia. Melhor seria se em câmera lenta registrasse seu semi-sorriso vazio de dentes, acompanhado do mínimo movimento dos cabelos colados a um casco áspero e desgrenhado. Talvez pudesse produzir um vídeo-documentário que revelasse o friccionar de suas mãos, que conduziam um pedaço de sabão que lhe cobria a pele com uma espuma ensebada. Poderia dar close na água escura que lhe descia entre o ventre, e que, misturada ao seu próprio mijo escorria por meio as coxas até se juntar a lama da rua. E se enquadrasse o ângulo para melhor focar o desajeitado bailado de seus pés calejados sobre velhos papelões? Será que assim a cena ficaria mais leve, mais artística, e consequentemente mais digestiva?

Duvido! Mas se houvesse um patrocinador, juro que lhe garantiria o retorno em marketing comercial. É que na nossa cena real e crua o bailado dos pés sujos e desgastados se deu sobre papelões de embalagens de eletrodomésticos, com direito a exibição ou exposição gratuita de uma famosa casa comercial. Neste caso, penso se não caberia terminar a filmagem com a foto da Ivete Sangalo rindo, estampada ao lado da tal logomarca? Mas isso se fosse esse um vídeo comercial. Porque se a proposta aqui fosse mais provocativa, sugeriria deixar a “baianidade” com o mestre Amado, substituindo a foto da cantora pela dos candidatos a prefeito na atual eleição. Será que isso contribuiria para que algum deles apresentasse propostas coerentes e eficazes voltadas a população em situação de rua? Mais uma vez duvido. Mas de certo, confesso que teria meu voto! E acho mesmo que até elevaria o ibope do fantasioso guia eleitoral, repleto de promessas mirabolantes que beiram o fantástico. Mas como população em situação de rua não dá voto, melhor voltar a nossa Gabriela-da-Boa-Vista em seu banho magistral em pleno centro da cidade. Porque se o corpo em si não chamava a atenção, o ato obrigava a constatação de suas condições, ou ausência destas. Estava feito! Ali estava uma mulher seminua revelando o desenho representativo dos esquecidos. Era o banho dos marginalizados, que metaforicamente molhava os hipócritas incrédulos. Atingia diretamente cidadãos alienadamente de bem. A indiferença era recíproca. A Gabriela-das-Ruas na sua rotina. Os transeuntes atrapalhados em seus afazeres. Haviam senhoras envergonhadas. Talvez delas mesmas. Mas, havia também senhores sem vergonhas. Porque o lixo também se faz carne. E para o cafajeste a carne alheia será sempre alvo de cobiça. E neste sentido, é bom não esquecer, que como disse o poeta: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Como negra também se tornou sinônimo de safadeza na boca dos alarmistas burgueses. E num sentido inverso a cena tornou-se sobre uma Gabriela-Negra-Safada. Uma espécie de cachorra sem dono que se atrevia a despertar o cio dos abutres “civilizados”.

O ápice estava por vir. A Gabriela-Difamada tiraria a roupa por completo? Como se livraria dos trapos molhados? Teria ela mudas mais condizentes com as etiquetas urbanas? O povo esperava por respostas. O povo torcia por escândalo. Os olhos cobiçavam partes e detalhes pecaminosos. Alguns fingiam virar o rosto, enquanto uns riam jocosamente. Outros, menos discretos, buscavam lugares estratégicos. A Gabriela-Nua se tornara um espetáculo gratuito. Desinteressada e insensível aos olhares, a mulher posiciona-se abaixada, por trás de uma nova embalagem. E aquilo que outrora embalara uma geladeira ou freezer empacotou também a Gabriela-Bangela e feia. Suaram suspiros de alívios e decepções. Quem esperaria que uma simples mulher de rua tivesse pudores? Quem acreditaria que tivesse inteligência suficiente a ponto de elaborar estratégias de privacidade? Fato é que assim o público se dispersou e a nossa heroína lentamente voltou aos seus afazeres domésticos depois de um dia de trabalho intenso. Ainda na calçada espremeu suas peças de roupas velhas e as estendeu sobre as grades de sua carroça repleta de papelões que recolhe ajudando a limpar as ruas. De minha janela pensei: Ah, se não fossem as Gabrielas-das-Nossas-Calçadas? Quanto trabalho restaria aos garis mal pagos do Recife? Que espaços sobrariam aos tão limpos e soberbos transeuntes? Que imagem se faria de uma cidade tão civilizada e democrática? Era final de tarde e o sol ainda ardia no asfalto dilatando pneus. Hora perfeita para o descanso merecido. E como uma verdadeira musa, a Gabriela-Mãe deitou-se aconchegada ao pequeno filho despenteado e chorão. Aninhou-o em seu seio e ambos sumiram embalados nos velhos papelões. E por hilária coincidência, uma Ivete rasgada ao meio apontava para a frase de campanha: “Foi a Mamãe Quem Mandou...”!

Agora se lhe resta esperar o final de uma novela fracassada que se arrastará até as urnas. Só nos resta fazer nossa parte, para que as Gabrielas-Pernambucanas, as tantas Gabrielas-Mães-Trabalhadoras-Mulheres, como quaisquer outras que não habitam as calçadas e ruas imundas, não precisem repetir o velho refrão: “Eu nasci assim! Eu cresci assim! Vou ser sempre assim...” Gabrielas-do-Lixo!

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