BOLA PRA FRENTE
BRASIL!
Dia 28 de junho de 2014, meio dia
de um sábado e tudo em cima da hora. Depois de uma noite de insônia, assistir
ao jogo do Brasil contra o Chile não parecia uma alternativa, mas obrigação. Na
cabeça apenas a certeza de que aquele seria o melhor jogo da copa do mundo! Nas
ruas uma procissão de camisas amarelas seguia em frente, como pronta para a
guerra. Com certeza uma das cenas inesquecíveis, considerando o clima de
harmonia e felicidade que parecia invadir a cidade. O ronco do estômago, que
exigia providências urgentes, não era menor do que o som das centenas de
estridentes trombetas e cornetas bicolores. O relógio gritava o atraso. Dez
minutos me restaria para atravessar ilhas interligadas por pontes
intermináveis, encontrar um bom local e assistir ao jogo. Recife estava
lindamente diferente. Havia vida no ar, a alegria substituía os contratempos do
cotidiano de um centro urbano conturbado e desorganizado.
De frente ao Paço Alfandega milhões
de pessoas se espremiam e se agitavam. A cada susto ou ameaça, um novo uivado
coletivo. A bola passava longe, batia na trave, e as mãos se apertavam em
preces. A religiosidade se fazia presente em suas diferentes formas e
expressões. Não importava a doutrina, apenas o objetivo. Alguns se ajoelhavam
em orações, enquanto outros oferendavam bebidas aos santos. Era a certeza e convicção
de que Deus é brasileiro, e pelo jeito torce pela seleção canarinha. Religião,
bebidas e futebol, temas complexos e que despertam emoções afloradas, às vezes
descabidas, mas permitidas. A harmonia reinava nas diferenças fossem étnicas,
raciais, de classes ou de identidades de gênero. Estranhos e desconhecidos se
abraçavam, choravam, reclamavam, xingavam a mãe do juiz. A prorrogação provocou
lamentos receosos. Mãos nas cabeças, murros no ar, gritos de desespero e lágrimas
exprimiam a aflição generalizada. Um apito final nos condenava a uma espécie de
mata-mata perigoso.
Como havia previsto, e temido, terminaríamos
nos pênaltis. Defendemos o primeiro e o segundo. Erramos o terceiro e o quarto,
para somente finalizarmos no ultimo e derradeiro chute. Um grito animalesco,
que parecia preso em milhões de gargantas, me atravessou como uma onda de calor
capaz de provocar arrepios. Era a vitória mais sofrida que já vivi em toda
minha vida de leigo torcedor. Era belo e assustador ao mesmo tempo. Não representava
apenas uma vitória no futebol, mas a energia investida de um povo. Era a catarse
de uma gente guerreira, que acredita no país e em suas possibilidades de
sucesso. Era uma expressão de raça, digna dos lutadores que vencem os próprios
limites. Havia admiração e respeito nos rostos dos gringos. Havia uma alegria histérica
que se transformava em festa. Aquele momento, que para mim será inesquecível, é
a melhor representação visual do brasileiro.
Dia 04 de julho, faltando apenas
dois dias para meu aniversário, uma nova empreitada. Brasil e Colômbia, a
seleção de melhor campanha no mundial. O receio de ser derrotado era evidente
na nova procissão que seguia determinada rumo ao Recife Antigo. A festa voltava
às ruas e a cidade novamente se coloria de verde e amarelo. Impossível ao morador
da Boa Vista ficar indiferente às manifestações da cidade. As pontes estavam
tomadas, apinhadas de gente. Parecia uma nova versão do Galo da Madrugada. A diferença
é que o verde e amarelo não parecia apenas fantasia, mas uniforme, roupa de
guerra. A seleção estava também nas ruas com seus milhões de atacantes. Eram todos
técnicos, eram todos capitães, comentaristas especializados, estrategistas e
paliteiros. Eram todos guerreiros.
Na Fan Fest não havia mais
espaço, não havia chão. Apenas centenas, milhares de pés enfiados em sapatos coloridos
ou descalços. A frente outra centena de cabeças de diferentes formatos,
cabeludas ou carecas, penteadas, desajeitadas, fantásticas, inquietas. A luta
pelo melhor ângulo parecia estratégia de sobrevivência. No meio daquela
multidão não vi o primeiro gol. Entendi que não veria os demais. O Recife
Antigo estava totalmente tomado pela multidão. Na impossibilidade de permanência,
resolvi buscar por um aparelho de televisão qualquer, em um bar qualquer, em
uma rua qualquer. Na Madre de Deus um grupo de torcedores vibrava em frente a
uma pequena tela. Um balcão serviu de abrigo e apoio. Aos poucos outros tantos
frustrados se juntaram, formando uma torcida digna de um jogo de decisão. E lá
estava eu novamente em meio a desconhecidos, gritando e vibrando com cada
lance, cada nova tentativa de furar o bloqueio. Lá estavam novamente os gritos
desesperados, os socos no ar, os aplausos do Neymar e os suspiros pela bunda do
Hulk. Era o Brasil irreverente que espantava e fascinava estrangeiros ao mesmo
tempo.
O mais belo gol foi do David Luiz
e a prorrogação de cinco minutos a mais interminável do mundo. A contagem se
tornou regressiva até o levantar do braço por parte do juiz, e mais uma vez o
grito de alivio invadia a cidade. Impossível não se contagiar. Impossível não
se sentir participante, não se sentir coletivo. Impossível não se emocionar
diante da imagem dos jogadores enfileirados em campo, do hino nacional em
lapela e na boca do maior couro popular do mundo. Certo ou errado, todos cantam,
expressam o amor à pátria e a sua identidade. Nunca assisti uma copa no Brasil
e não vou negar que o slogan “Somos Todos um Só” mexe comigo. Desperta o
sentido de brasilidade, de nacionalismo ou nacionalidade. Afinal de contas, toda
demonstração de patriotismo é sempre bela, mesmo quando bem exercido apenas nos
momentos festivos. Assim, porque não me deixar alienar um pouco e seguir em
frente, engrossando um cordão humano pra lá de barulhento, pra lá de festivo,
pra lá de guerreiro?
Amanhã é Brasil contra Alemanha,
a maior barreira do mundial de 2014. Vou sair pras ruas, me misturar ao povo. Vou
ser, mais uma vez, povo também. Vou vestir verde e amarelo, buzinar, beber e me
divertir. Vou me revigorar para enfrentar a próxima disputa, a próxima batalha
em prol das mudanças necessárias. Sem sombra de dúvidas a mais importante para
o Brasil, e que se fará nas urnas.