Viernes, 11 de
Enero de 2013.
Após uma extensiva e exaustiva
semana de aulas, reinicio minha peregrinação pelas ruas de Buenos Aires em
busca de informações sobre o mercado sexual homoerótico da Argentina, objeto de
minha pesquisa de doutorado. Uma consulta na internet facilita a definição de
meu alvo: Calle Gascon. A “Boate B” fica situada em uma rua extremamente calma,
em um bairro residencial. Sua fachada em tijolos aparentes revela uma
imponência que sinaliza a diferenciação do publico. O ingresso é mais caro,
porém a cerveja é livre durante toda a noite, pelo menos as sextas-feiras e em
algumas festas realizadas aos sábados. O protocolo de entrada se repete. Homossexuais
portenhos vão chegando, e aos poucos vão se posicionando em esquinas próximas
ou pontos menos iluminados da rua. Raramente alguém para em frente ao
estabelecimento. É como se houvesse um código, um ritual, que parece objetivar
a invisibilidade. Segundo Ernesto Meccia (2011), sociólogo portenho, a
homossexualidade na Argentina passa por um processo de transição social e
histórica que se dá de uma perspectiva de “la homosexualidad” para “la
gaycidad”. Em outras palavras, os argentinos se encontram em pleno processo de
restruturação e consolidação de uma nova representação da homossexualidade, e
logicamente da identidade gay, pela qual buscam se firmar diante de uma sociedade
ainda fortemente guiada pelo modelo heteronormativo. De certa forma, a situação
me parece estranha, uma vez que o país tornou-se o primeiro da América Latina a
oficializar leis que estabelecem as garantias de direitos das pessoas de
orientação sexual “no-heterosexual”, tais como o casamento entre pessoas do
mesmo sexo, a adoção de crianças por homossexuais e a lei de gênero que garante
a cirurgia de transgenitalização e mudança de documentação civil, inclusive
para as travestis e transexuais estrangeiros residentes.
Posiciono-me próximo a boate,
pouco afastado da entrada, cumprindo o ritual local. Tal localização favorece a
minha observação. Dois jovens se encontram e iniciam uma conversa. Os
argentinos falam rápido, o que quase sempre dificulta a compreensão. Eles falam
sobre a noite, trazendo banalidades cotidianas. Começo então a observar
comportamentos e posturas corporais. Diferentemente de Recife, os gays de
Buenos Aires portam-se e vestem-se de maneira bem mais formal. Quase não
gesticulam. Em duplas ou em pequenos grupos travam conversas mantendo o tom de
voz baixo e discreto. Não existe a ferveção noturna recifense, muito menos a
euforia dos encontros. Neste sentido, o que me chama a atenção é a diferença
cultural que se revela no cumprimento social entre os homens, que se estabelece
com um beijo no rosto. Uma “lesbiana”, classificação nativa para as
homossexuais femininas, me aborda tentando vender seu ingresso, que comprado
antecipadamente tem abatimento de 20%. Já meio alta, ela tenta me convencer das
vantagens da barganha. Recuso a oferta e ela se afasta irritada. Nesse aspecto,
percebo que as mulheres homossexuais parecem mais a vontade com o
posicionamento social. A postura corporal e as indumentárias revelam de maneira
mais evidente suas identidades e orientações sexuais. Penso então como se
estabelece esse processo de transformação sóciohistorica e política também para
as mulheres homossexuais portenhas. Minhas reflexões são interrompidas com a
chegada de uma “Van-Escuela” (Van-Escolar) de onde descem uma travesti,
acompanhada por seu companheiro, uma lesbiana e um homossexual, que aqui pode
ser classificado como “munhequita”, denominação popular para os afeminados. Os
boys de programa parecem seguir o modelo de estereótipo universal. Malhados,
revelam a definição de musculaturas cuidadosamente trabalhadas em horas de
academia. As roupas justas revelam volumes e também sensualidades. O mesmo
ocorre com os munhequitas, em grande parte com seus cabelos descoloridos,
tingidos ou modelados em gel. Por sua vez, as travestis parecem mais a vontade,
imponderadas de uma autoridade garantida em lei. São reconhecidas e
identificadas como mulheres. Porém, mesmo nesses grupos de categorias
identitárias a discrição se estabelece como padrão.
Resolvo entrar na boate e
aproveito para observar mais uma vez a movimentação. Aos poucos os homossexuais
vão chegando a pés, de taxi ou em carros particulares. Outro ponto que chama a
atenção refere-se ao fato de não existir filas de entrada. Com a abertura das
portas, eles parecem seguir novo protocolo. Não se aglomeram, mas entram de
forma individualizada e rápida. No exterior um mundo novo e específico parece
se abrir as novas possibilidades. A socialização parece mais intima, com
abraços e beijos. A música é alta e de pancada forte. Da pista principal, duas
escadarias paralelas levam aos mezaninos, onde bares bem equipados e coloridos
servem como espaços grupais. Já são quase duas horas da manhã e o dancing está
vazio. Uma travesti magra e alta movimenta-se “bailando” pelo salão, como a
convocar a todos para a grande festa. Um vestido vermelho vivo ajustado ao
corpo revela sua magreza. Os cabelos ondulados cobrem-lhe parte do rosto e
servem as performances das caricatas. No bar principal, de frente a pick-up,
várias pessoas esperam sentadas, com copos nas mãos. O champanhe parece
tradicional, que servido em copos finos e longos (canillas), parece reluzir em
cores vibrantes ao comando da iluminação computadorizada. O espaço é amplo, com
capacidade para mais de duas mil pessoas. No pavimento superior um mini-dancing
aglomera pequenos grupos. Pergunto sobre a existência de fumódromo e sou
direcionado ao banheiro masculino. A concentração de fumantes torna o ambiente
quase insuportável, envolvido por uma espécie de neblina. Algumas cabines e
mictórios compõem tais espaços, dotados de grandes espelhos. Enquanto fumo,
observo o comportamento dos portenhos e constato a não existência da famosa
pegação, comum as boates brasileiras. Indago se o fato é cultural ou imposto
pela presença de seguranças da casa.
Três horas da manhã e finalmente
o dancing está cheio. Apesar da multidão é possível se mover com facilidade e
sem grandes tropeções ou atropelos. Os argentinos pedem passagem com um breve
“permición” mesmo em lugares lotados. A cada esbarrão ou tropeço pedem
“perdón”, o que nos obriga uma radical mudança de comportamento. No palco, onde
se encontram os DJs, dois go-go boys dançam de forma sedutora. Os corpos
musculosos, mais uma vez, se sobressaem e despertam a atenção do público. Uma
pequena aglomeração se concentra diante dos deuses apolíneos. Mulheres
aproveitam a proximidade para as fotos que insinuam erotismo. Os homens se
mostram reservados e menos eufóricos. Novos dançarinos assumem o posto e dançam
de forma comum, cumprindo um ritual específico. Os corpos bem torneados e
suados parecem atiçar as libidos, mas diferente de Recife, as demonstrações de
aprovação mantém-se dentro de um modelo de reserva.
Em um dos mezaninos uma grande
cortina me chama a atenção. Resolvo explorar o ambiente que é acessado por duas
escadarias em lados opostos. No corredor de acesso várias pessoas se mantêm em
uma espécie de bem-me-quer. Sigo em frente e chego a um espaço que serve como
dark-room. Centenas de pessoas se aglomeram em uma espécie de suruba
generalizada. São homens, mulheres e travestis em práticas sexuais. Confesso
minha surpresa diante da inusitada cena. De repente um único espaço abre
possibilidades a dois mundos. Observo que as luzes se mantem acesas, o que
possibilita a visualização de tudo que se passa. Naquele espaço não existe o
anonimato comum a estes ambientes. É possível verificar as variações de
encontros e práticas sexuais envolvendo duas, três, quatro ou multidões de
pessoas. Por todos os espaços que já andei ou circulei nunca havia presenciado
nada tão grandioso no que se refere à concentração e envolvimento de pessoas.
Relembro que algo desta magnitude só havia presenciado na Praça da República,
em São Paulo, durante uma das paradas da diversidade, fenômeno que denominei
como “Árvore de Avatá”, em relação direta ao filme.
O sexo parece quebrar barreiras e
liberar tensões. Ali, naquele espaço, parecia não haver medos, culpas ou
receios de exposição. Existe de certa forma uma espécie de liberação
consentida. Não sei se é precipitado de minha parte registrar a presença de
seguranças da casa como forma de manutenção da ordem ou segurança, ou apenas
como curiosos. Fato é que estes não se envolvem ou interferem nas ações. Acho
que aquele é o melhor exemplo para reafirmar a sabedoria popular que diz que a
noite todos os gatos são pardos. Não existem diferenças ou diferenciações. As
identidades e desejos se misturam. Assim, pude observar a livre interação entre
um homem, uma mulher e uma travesti, ao mesmo tempo em que constatava as
interações entre homens, entre mulheres e entre grupos mistos. Do alto do
bem-me-quer pude observar a indiferença da maioria das pessoas presentes nos
demais ambientes da boate. Eram realmente dois mundos em um mesmo espaço. Para
mim, era o inicio da compreensão de um universo que se estabelece em modelos
universais, ao mesmo tempo em que define e expõe particularidades e
especificidades: o mercado sexual argentino.
Cinco horas da manhã e resolvo
voltar pra casa. Saio para a rua que se mantém calma e alheia. Nada chama a
atenção ou viola a tranquila normalidade da cidade. Da faixada à estrutura
arquitetônica, a boate se mostra integrada ao contexto da clandestinidade,
também comum a outras cidades e regiões. Chego a Avenida Córdoba e a encontro
vazia. Poucas pessoas transitam no local, talvez se direcionando aos locais de
trabalho, ou chegando de outras festas. Tudo é muito calmo e discreto. Não há
barulhos, espalhafatos ou algazarras. Sigo quatro quadras caminhando pelas
calçadas até chegar a Jean Jaurés. Alguns grupos de jovens encontram-se
sentados em frente aos prédios bebendo e conversando, enquanto algumas outras
pessoas passeiam com seus cachorros. Tudo é muito silencioso, inclusive a
circulação das viaturas da polícia municipal que parece garantir a
tranquilidade e segurança de quem vivencia a noite portenha.