"POR CAUSE DE QUE" SÃO AS HISTÓRIAS DE NOSSO POVO!
Há exatamente um ano aceitei o
desafio de lecionar no interior de estado, mais precisamente no sertão
pernambucano. Apesar do cansaço devido à viagem prolongada por uma média de
seis horas em estradas maltratadas e que maltratam o corpo, arremessado a cada
novo solavanco, não posso deixar de registrar a riqueza da experiência vivida. Em
um sentido mais amplo, as diferenças entre a cidade grande e o interior não são
apenas geográficas, mas principalmente culturais. O sotaque mais arrastado e
cantado, a quase inocência no olhar cabisbaixo, a recepção calorosa, a
consolidação das crenças ou crendices populares, o contato com a seca e o sol
escaldante, me fazem, muitas vezes, duvidar que sejamos ou que pertençamos, ou
ainda, habitemos um mesmo país. Do sertão tudo parece distante, e a capital
parece apenas uma referência distante, difícil de alcançar. Algo que muitos não
conhecem, e que outros tantos nem desejam faze-lo. Uma cidade, onde se diz que se
avista o mar, repleta de altos prédios, engarrafamentos quilométricos e
violência urbana. Tudo em Recife parece ser grande demais. Uma metrópole,
repleta de coisas que não chegam ou passam por aqui.
Durante este tempo tenho
aprendido, sobretudo, que a melhor forma de se conhecer verdadeiramente um povo é escutando suas
histórias e contos. E é exatamente o que tenho feito, todas as semanas, durante
as longas viagens, que aqui classifico como “histórias de viagens de um
professor pelo sertão pernambucano”, e que passo a relatar como forma
despropositada de registro de um pouco de nossa cultura.
Depois de um mês nas estradas,
confesso que a paisagem torna-se monocromática e monótona. O sertão é quase
melancólico. Com o tempo a vegetação rasteira, os pequenos arbustos, a terra
vermelha, os magros gados e as algarobas provocam certo ar de mesmice
enfadonha. Da janela do ônibus, costumo observar vilarejos, povoados, ruas e
pequenas cidades que correm diante de meus olhos como um filme em preto e
branco. Tudo parece bucólico demais para um ser genuinamente metropolitano como
eu. Busco então por novidades, mas a visão esbarra em altos paredões rochosos,
que em determinados momentos ou trechos da viagem parecem formar uma imensa
cratera de vulcão. A única alternativa parece recorrer aos céus. Porém a rotina
paisagística se repete de forma incômoda em um azul nítido e vivo que se
estende para além dos horizontes. Não dá para contar carneirinhos ou imaginar
monstros porque não existem nuvens. É tudo muito límpido. Uma espécie de manto
celeste que encobre uma espessa camada de barro seco, que parece fervente, e em
alguns pontos inabitável.
De inicio duvidei que suportasse
tão extensa viagem. Como ninguém consegue ler por tanto tempo, precisei
urgentemente encontrar algo interessante com que pudesse ocupar o tempo. Algo
que pudesse me anestesiar e abreviar o sofrimento. Porém, depois de projetar ou
arquitetar alternativas, todas rejeitadas quase de imediato, encontrei no sono
a saída que tanto buscava. Hoje, tudo funciona como um passe de mágica. Durante
o percurso, o ônibus realiza pelo menos três paradas obrigatórias e
estratégicas, o que tem me garantido pelos menos três longos sonhos. Minha
cabeça começou a funcionar como se fosse uma televisão. A cada parada mudo de
canal e novas imagens surgem e me levam para longe. Assim, às vezes durmo
dormindo, às vezes, durmo acordado. Entre um sono e outro, ainda encontro tempo
para ouvir as histórias alheias. E são essas histórias, muitas vezes de vida,
outras de morte, de dores, dissabores, amores e desamores, desassossegos e
desalentos, que fazem das minhas viagens um verdadeiro laboratório, onde
presunçosamente me pego a fazer analises estabelecer conjecturas ou construir
interpretações sobre fatos e atos corriqueiros e aparentemente banais.
As viagens em si tem se
transformado também em espaços de constantes aprendizagens. Aprendi principalmente
a ouvir, sobretudo as histórias, pelas quais as pessoas contam gratuitamente
suas vidas, suas relações, suas concepções de mundo, e às vezes suas
experiências mais intimas. Assim, descobri, por exemplo, que nos dias muito
quentes é preciso aguar a cabeça das galinhas “por cause de que” pode dar nordeste nas danadas e “por cause disso”, elas podem morrer. Também descobri, que por essas terras, que
vacina boa para animal é a que serve para curar dezessete doenças. Não importam
quais, desde que sejam dezessete. Nem mais, nem menos. Também não importa o
animal. Se grande ou pequeno, o negócio é acertar a dosagem de acordo com o
tamanho do bicho. E uma coisa é certa, se ele não morrer, fica curado
rapidinho.
Dizem que de conto em conto, a
galinha enche o papo. Pois, digo que conto em conto povoou minha mente e
liberto minha imaginação e criatividade. O fantástico se confunde com o real e
faz a viagem passar mais depressa que minha própria vontade. Quando a viagem
finda, um novo dia recomeça em terras escaldantes e repletas de histórias
loucas para ganhar o mundo. Creio que esse é meu papel. E é a isso que me
disponho aqui. Registrar e replicar as histórias de nossa gente. Histórias de
chegadas e partidas, de despedidas, de amores desfeitos, de sonhos. Histórias de
gente, de estratégias de sobrevivência. Acima de tudo, histórias de luta e resistência.
Histórias de um povo! Do nosso povo!
Bem vindo as minhas histórias de
viagens!