terça-feira, 16 de agosto de 2011

A DIMENSÃO DE FERNANDO DE NORONHA


Fernando de Noronha

ENCANTOS E DESENCANTOS ABAIXO DO  EQUADOR
 
Estando em Fernando de Noronha, distrito turístico do estado de Pernambuco, torna-se impossível negar sua dimensão paradisíaca. Torna-se ainda, incontestável a riqueza de seu patrimônio natural. Rica em encantos e em cultura, diz-se na ilha que certo dia fora descoberta a infidelidade de um casal enamorado. Ambos casados, ao tornarem-se amantes passaram a se encontrar nos longínquos recantos que se escondem aos olhos, onde praias de águas claras serviam de cenário às cópulas que manchavam as normas. Aos beijos, foram pegos desnudos e enlaçados, como unidos pela e para eternidade. Amaldiçoados, foram condenados a pagar pelo desvario e sandice comum aos amores desvairadamente proibidos. Não creio ser difícil enlouquecer em Noronha, tão quanto se entregar as tórridas paixões desventuradas em meio a arrebata beleza. Mas assim não pensavam os feiticeiros e maus feitores da ilha encantada que determinaram que suas vergonhas fossem expostas perante todos, e que vistas de qualquer lugar ou ponto do arquipélago, servirem de exemplo a todos os pérfidos apaixonados. A natureza evocada, e cúmplice, fez cumprir a profecia. E das profundezas da terra elevou aos céus dois símbolos que registrariam para sempre a aleivosia. No centro da ilha surge então o Morro do Pico, que como um totem adorado e reverenciado ultrapassa as nuvens. Em meio ao mar, os Morros dos Dois Irmãos evidenciam a volúpia e a inquietude de uma amante afogada em lágrimas. Assim, quem sobrevoa Noronha logo se depara com um grande falo soberano, que desvirginando nuvens de algodão, serve de marco geográfico que denuncia o paraíso luxurioso encoberto. Abaixo, em pleno mar verde azulado, dois grandes e voluptuosos seios se exibem perante olhares incrédulos e admirados. 

Morro dos Dois Irmãos

Falo e seios, positivo e negativo, simbologias das masculinidades e feminilidades - sexualidades nativas. Virilidades e sedução em harmonia com os quatro elementos da natureza: TERRA, representada pelo conjunto de montanhas formadas por pedras e rochas vulcânicas; AR, que baila em forma de brisa, cortando olhares e agouros; ÁGUA, que transborda em praias de clara transparência para se derramar sobre areias finas; e, FOGO, figurativamente revelado na luxuria e desordem dos amores clandestinos. Mistura de sal e areia que encanta e salga a boca, Noronha não é só banhada por águas mansas, mais pelo sol que esquenta e atiça sentidos enquanto queima a pele. Cercada não só pelo mar, mas também por misticismos, crenças e costumes que povoam histórias que vão além do encantado e do fantástico. Impossível não se emocionar diante da inocência preservada entre seu povo. Difícil não ceder a tentação em se instalar para sempre em um arquipélago histórico, enlevado e misterioso. Improvável não se entregar e se abrir a tamanho encantamento inspirador, capaz de nos fazer pensar que a felicidade é eterna e inerente ao homem. 

Centro Histórico de Fernando de Noronha

História é o que não falta na ilha que herdou o nome de um português judeu, convertido ao catolicismo, vivente do século XV [ou talvez XVI]. Também conhecido como Fernão de Noronha, ou Fernão de Loronha, o rico e astuto empreendedor tornou-se um dos primeiros e mais afortunados exploradores do pau-brasil nas terras recém-descobertas. Natural das Astúrias, juntamente como outros novos cristãos comerciantes portugueses recebeu concessão da coroa imperial portuguesa para explorar os recursos naturais na nova colônia. Dizem os mais sábios que em 1503, junto a um rico banqueiro da época, financiou a expedição de Gonçalo Coelho, que em 24 de julho descobria a ilha e a batizaria com o nome de seu patrono. Com a extração da valiosa madeira, o “grande bem feitor [???]” multiplicou fortunas. Dados históricos revelam, por exemplo, que apenas em 1506 foram retiradas das virgens terras mais de 20 mil quintas de pau-brasil. Mas a façanha [e a ganância] do grande homem não se limitaria apenas a despojar nossa flora, tanto que em 1511 o ladino explorador voltou a Portugal com uma carga repleta de especiarias e riquezas que incluíam além das 05 mil toras de pau-brasil, uma grande variedade de animais exóticos e mais de 40 escravos, em sua maioria mulheres nativas. Assim talvez, possamos imaginar que o tal Fernão de Noronha se apresenta na história do Brasil como um dos primeiros chefes das redes do tráfico de seres humanos. Talvez seja também a base para nosso senso de explorador, no sentido mais pejorativo que nos é comum.

Praia do Meio

A história também se preserva [mas mal se conserva] na antiga capital do distrito federal, Vila dos Remédios [destituída do título em 1988, quando o arquipélago foi reintegrado ao estado de Pernambuco]. Os velhos casarios se espalham por ruas de pedras antigas que se perdem em ladeiras que desembocam no mar. Formado por 21 ilhas [e ilhotas] o arquipélago se perde em meio ao Oceano Atlântico, tendo sua principal ilha 17 km², estando localizada a apenas 545 km do Recife. Caminhando por vias e ruelas estreitas encontram-se vestígios das várias invasões estrangeiras [entre francesas, americanas, holandesas e logicamente, portuguesas]. Descendo entre paralelepípedos negros e pontiagudos chega-se ao centro histórico, repleto de ruínas com fortes paredes de tijolos aparentes. Velhas construções se perdem em meio ao mato e ao descaso. Mas apesar disso, resquícios da importante história brasileira ainda podem ser garimpados, revelando os tempos difíceis da ditadura militar, ou da influencia católica sobre a região.  Pela descida íngreme chega-se a Praia do Cachorro, onde se localizava a antiga bica, que apesar de depredada e mal conservada ainda proporciona um bom banho de água doce. Em todas as praias de Noronha vale a velha máxima de que “o mar está prá peixe”. Diante de espelho tão transparente não raramente se verá o movimento livre de arraias e cardumes de peixinhos coloridos que brilham aos raios do sol. 

Praia da Cacimba do Padre

Adiante se chega a Praia do Meio. Caminhar na areia fina e limpa permite um contato inusitado consigo mesmo. A água brinca e lambe os pés enquanto pequenas gaivotas bailam em mergulhos de mira certa. Um, dois, três... Perdem-se as contas em meio aos tantos e sucessivos ataques que elevam do mar filetes brilhantes. A Praia da Conceição tem uma imagem sobre as pedras, e logo, o sincretismo religioso salta aos olhos. Ao passo que Iemanjá parece reverenciar a saudosa África, o mar formado por suas próprias lágrimas parece se lançar do distante continente para se quebrar em pequenas marolas que banham o altar. As rochas saltam da terra e formam verdadeiros caminhos encantados. Duas pequenas enguias malhadas colocam a cabeça para fora averiguando quem chega. Guaiamus escuros de patas vermelhas correm apressados para se esconder enquanto deixamos os rastros de nossa passagem.  Os passos marcados na areia logo serão apagados, eliminando vestígios. É como se a natureza lutasse para se manter pura e virgem da curiosidade que arrasta milhões de espaços e territórios longínquos. Acho que ali é um lugar sagrado que não cabe aos estranhos e invasores.

Centro Histórico - Vila dos Remédios
Uma das trilhas em mata fechada que fizemos, por exemplo, nos levou ao Mirante do Boldró, antigo ponto que serviu como base de observação para testes e lançamentos de mísseis teleguiados dos militares norte-americanos [boldró, deriva do inglês Bold Rock, que significa Pedra Saliente]. Do alto uma inebriante vontade de se lançar ao mar nos invade. É que o azul que se avista adiante alucina ao se misturar ao céu recheado por finas estrias brancas que flutuam preguiçosas e sem rumo certo. Outra trilha, cortando a mata em sentido contrário nos coloca diante da Cacimba do Padre, fonte de água doce histórica perdida na passagem. Sem preservação necessária se perde na floresta e apaga-se sua significância. A desatenção e o desrespeito tamanho com o patrimônio histórico e cultural do lugar nos convencem de imediato do quanto somos pobres em espírito e consciência. 

Trilha para o Mirante do Boldró
Se do alto, em meio às nuvens, o já arquipélago encanta, o passeio de barco revela surpresas em cada baia, em cada praia, onde vultos, imagens e rostos se configuram em rochas pré-históricas. Avistar o “falo gigante” diante dos “seios exuberantes”, de pleno mar, pode lhe causar a impressão da constante presença do sagrado e do intocável. Cada rocha, cada pedra delicadamente sobre posta configura o paraíso diante dos olhos. Mergulhar na Baia do Sancho é desvendar um mundo mágico onde tudo parece preciso e harmonioso. Tudo parece certo e tranquilo, dentro de uma lógica incomum para alguém metropolitano demais como eu. Do alto das colinas aves enormes parecem nos observar, enquanto pequenos animais correm sobre as pedras em sua rotina habitual. Nada parece os incomodar. E tudo parece permanecer exatamente em seu lugar através dos séculos. Neste sentido, delicadeza e destreza se evidenciam parecendo revelar nossa insignificância, nossa “desnecessidade de estar”. Temos a nítida impressão de que apesar de ser bem vindos, não somos necessários. De que ali, nós humanos não contamos a história, e nem fazemos parte da mesma. Somos limitados a apenas a presenciá-la. Alçados ao posto de pequenos espectadores, insignificantes figurantes, perdidos em um cenário de dimensões prá lá de cinematográficas. Talvez ali entendamos o quanto somos por demais pequenos diante da gigantesca e lógica natureza. 
Mergulho na Baia do Sancho
À volta ao velho porto nos relembra saudades nunca outrora sentidas. Não sei se todo porto cheira a despedidas, mas aquele em especial parece nos dizer da impossibilidade de ficar. Da obrigação de partirmos, e de que a memória será nosso único vinculo mais concreto [será que é por isso que dizem que as ilhas enlouquecem?]. Adiante uma estrada em madeira nos aponta direções inevitáveis. De um lado a Baia da Bimboca, onde as arraias novamente parecem insistir em nos fazer sentir intrusos. Do outro, bem ao alto, as ruínas do Forte Santo Antonio nos convida ao relento momentâneo e fugaz. Se é verdade que existem sereias e seres mitológicos que habitam os oceanos, acredito que ali eles se divertem ao cair do sol. E este sobre a imensidão azul do mar nos provoca uma comoção tão grande, que só mesmo o vento frio parece capaz de acalmar nossos pêlos que insistem em se eriçar diante da grandiosidade cósmica. A experiência fenomenológica vivenciada me dá a certeza de que diante de tais situações a racionalidade tradicional se esvazia e o divino torna-se a explicação mais lógica.
A Imensidão do Azul
Ir a Fernando de Noronha é realmente uma experiência inesquecível. É na verdade, e acima de tudo, uma grande oportunidade de reflexão sobre nós mesmos enquanto homens construtores de sociedades e predadores “naturais”. É que no paraíso perdido no Oceano Atlântico tudo assume grandes dimensões, do Pico do Morro as velhas estradas mal conservadas; Do charme e elegância dos “golfinhos rotatores” a visível falta de infraestrutura de habitação; do misterioso Buraco de Raquel ao enigmático cotidiano de crianças e adolescentes expostos as possíveis investidas do turismo sexual; da beleza esbranquiçada da mulher estrangeira que ri ao sol a pele escura da mulher nativa que chora no escuro dos escombros por sofrer violência domestica. E se é verdade, como dizia o poeta, de que “não existe pedado do lado de baixo do equador”, talvez possamos acreditar que estes, os pecados sociais, não são construções socioculturais e humanas. E que assim, também não temos culpas, e muito menos responsabilidades. 
Baia dos Porcos
É que se em Fernando de Noronha as belezas e encantos saltam aos olhos, as contradições nos aperta o estomago. O que inevitavelmente nos faz entender que nem só de beleza e importância histórica se constitui um lugar. Ali também a miséria chama a atenção e alarma, ao passo que micro favelas parecem se espremer em espaços ermos e abandonados. A fartura que a primeira vista se sobressai, é a mesma que encobre a miséria. Ao mesmo passo, a acessibilidade de poucos assunta a necessidade de muitos. Nada muito diferente para quem conhece outras realidades semelhantes, seja estas, em Porto de Galinhas, Tamandaré ou Itamaracá – também importantes distritos turísticos. Talvez a única, e mais gritante diferença consista no fato de se estar em meio e sobre a imensidão oceânica, isolado e acuado em uma estrutura socioeconômica que metaforicamente lhe confere a condição de apêndice. Por isso, quem conhece um determinado espaço ou território por fora, pela superfície, deve também buscar conhecê-lo por dentro, em profundidade. É o que chamo de turismo consciente. E que considero como única forma viável para compreendermos [e reconhecermos] o quanto herdamos do caráter “explorador” dos nossos bem “feitores” portugueses dos séculos passados, no significado e sentido mais pejorativo que nos é comum. 

 
Paraíso Abaixo do Equador




Centro Histórico - Visão Palácio do Governo
Porto de Fernando de Noronha

Normando Viana na conferência da Assistência Social


Nenhum comentário:

Postar um comentário