P.S Após uma curta parada, devido a grande quantidade de artigos que preciso escrever e traduzir, semestralmente, cumprindo com as exigencias do Doutorado que realizo na Argentina, volto ao registro de minhas impressões iniciais sobre o mercado sexual homoerótico de Buenos Aires.
Sábado, 12 de Enero de 2013.
O dia se passa calmo com
temperatura amena. São nove horas da noite e o sol começa a se por. O céu
parece se apagar aos poucos mudando a rotina “em las calles de la ciudad”. Meia
noite e meia saio para a rua totalmente vazia. Novamente visualizo jovens em
frente aos prédios que se reúnem em conversas regadas a cerveja. Sigo pela
Viamonte e percebo que estou sendo acompanhado por uma viatura policial que se
aproxima silenciosamente. A situação me causa certo desconforto considerando a
condição de estrangeiro que engatinha em espaços desconhecidos. De forma
educada os policias me cumprimentam com um “buena noche” cordial. Retribuo a
saudação, ao passo que me perguntam se “está todo bien”. Respondo dizendo que
“sí, todo bien! Gracias!” Observo que o procedimento se repete junto a outros
transeuntes. Depois do susto, sigo na claridade a até a Avenida Poerrydhón,
onde se verifica um maior fluxo e movimentação de pessoas. Bares e restaurantes
estão cheios, porém o silencio é impressionante em toda a cidade.
Caminho observando a dinâmica das
ruas. Nada parece fora do lugar, revelando a organização de uma grande
metrópole que parece não dormir. A boate B se localiza por trás da Universidade
de Buenos Aires, onde existe um terreno vazio que durante o dia funciona como
estacionamento, delimitado por um muro de meia altura, onde vários homossexuais
esperam pela abertura do estabelecimento. Apesar de conhecer a prática, resolvo
chegar antes ao local para melhor observar à dinâmica e os comportamentos de
meu público alvo. A boate tem fachada discreta, com paredes pintadas em
vermelho escuro. Uma grande estrutura metálica, em cor verde escuro, parece
cortar a parede de lado a lado, evidenciando o nome do estabelecimento através
de letras brancas e alongadas. Sobre a porta principal uma pequena placa
metálica destaca a classificação do empreendimento. Segundo informações fornecidas
por um dos seguranças da casa, em Buenos Aires os estabelecimentos comerciais
são classificados por letras. Assim, classe C, que precipitadamente imaginei se
relacionar com as definições de classe social dos clientes, na verdade
refere-se aos empreendimentos comerciais caracterizados como espaços
“bailantes”, que incluem as boates e danceterias. Neste aspecto destaca-se que
aqui as boates são chamadas de “boliches” ou “discotecas”. Tal fato me chama a
atenção para uma das premissas básicas da pesquisa de campo, ou seja, a necessidade
de tempo e paciência. Nem sempre o que se percebe de imediato retrata a
realidade, o que nos salienta a fundamental importância de controle sobre a
ansiedade, principal causa das precipitações.
Diferente da boate anteriormente
visitada, esta apresenta um publico de poder aquisitivo aparentemente mais
baixo. As diferenças se confirmam nas marcações corporais, tais como nas
indumentárias, adereços, dentaduras, cortes e modelações dos cabelos, bem como,
pelo comportamento adotado. Mas expansivos, os homossexuais que frequentam tal espaço
revelam características étnicas mais distintas. Observa-se a influencia da
miscigenação tanto nos traços e estaturas, quanto nos sotaques. Acredito que os
mesmos advenham dos subúrbios ou bairros mais distanciados do grande centro.
Existe uma grande mistura em estilos e idades. Assim, jovens, adultos e idosos interagem
e se socializam de forma aparentemente mais tranquila. O mesmo ritual de
chegada e entrada na boate se repete. Enquanto alguns se concentram no muro,
outros ocupam esquinas e pontos menos iluminados das proximidades. Sempre em
pequenos grupos ou sozinhos, parecem isolados, a espera da abertura de um
portão mágico pelo qual acessarão um espaço secreto de autorizo à expressão de
suas essências. Aqui também se torna mais frequente a presença dos
“munhequitas”, que gesticulam e revelam performances mais afeminadas. Para um
bom comparativo, poderíamos dizer que este espaço se aproxima em muito do MKB,
localizado no centro do Recife. Também existe um maior fluxo de travestis, que
provavelmente exercem a prostituição. Neste sentido, destaca-se a ausência dos
boys de programa, o que evidencia a invisibilidade inerente a este segmento de
operadores da prostituição.
A boate possui três ambientes
distintos. Por uma escada chega-se a bilheteria, aqui conhecida como
“boleteria”. A entrada custa 50% do valor da concorrente e inclui o consumo de
duas bebidas. Na entrada, duas estátuas de gesso, pintadas em cinza,
representam anjos. Não existe refinamento ou valor artístico em tais artefatos
que classificaria como cafona. Adiante se encontra um bar, num estilo pub, com
bancos altos e algumas mesas próximas às paredes. Novamente o champanhe
mostra-se a bebida de referencia local, porém os copos aqui perdem o colorido
translúcido pela ausência dos grandes recursos tecnológicos de iluminação. Mais
a frente, um salão menor concentra pequenos grupos. Por uma escada metálica paralela
se chega aos demais ambientes. No pavimento superior encontra-se o dancing. As
pareces são pretas e o piso pintado em xadrez como um tabuleiro de damas. A
pick-up é modesta e parece espremida em uma das quinas do salão. Um telão exibe
clips com musica internacional e nacional, seguindo a tradição das boates. Este
pavimento também é dotado de um pequeno salão onde as pessoas podem conversar
mais tranquilamente. Somente neste, se pode fumar. Sem circulação de ar o
espaço fica impraticável com o passar das horas. Uma segunda opção é voltar à
rua, após pegar uma ficha de acesso que lhe garante o retorno. Esta estratégia
me serviu como pretexto para contatos e verificação da dinâmica das ruas. Assim
pude, por exemplo, constatar que vários jovens gays se reúnem no muro para
“fechar” e dar pintas. As performances involuntariamente nos geram risadas.
Alguns simulam desfiles de moda sobre a muralha, enquanto outros fazem poses
bem ao estilo manecas. Novos flashes são disparados. Percebo que as semelhanças
com o universo gay de Recife começam a se descortinar diante de meus olhos.
No terceiro ambiente, localizado
no térreo, mas que assume um aspecto de subsolo, a música é popular. O estilo é
próximo ao caribenho, com ritmo alegre e acelerado. Um portenho puxa conversa e
aproveito para perguntar sobre a origem da música. Ele me explica que é algo
como uma música popular da Argentina, que classificou como “Post-Eletrônica” ou
algo parecido. Sua aparência denotava a mistura das raças e seu sotaque era
diferente do que me acostumara a ouvir. Contou-me que era casado e que devido à
infidelidade da mulher entrou em depressão e se submeteu a psicoterapia. Disse
que para os argentinos as relações devem se estabelecer no contexto de um casal
e nunca na possibilidade ou na inclusão de uma terceira pessoa. Explicou que
aquele era um espaço liberal onde homens e mulheres podiam se divertir sem
grandes censuras por parte da sociedade. E era aquilo que estava buscando
enquanto não encontrava uma nova parceira. Ao perguntar sobre a dinâmica do
universo homossexual em Buenos Aires, disse que para eles um homem não precisa
ser homossexual para se envolver com outro homem. Tentei aprofundar a
discussão, mas ele se limitou a dizer que a temática era besteira e não tinha
grande importância. Assim desistir e seguir falando sobre banalidades. Ao me
convidar para dançar, preferi inventar uma desculpa, aproveitando para fumar.
No fumódromo, uma travesti
acompanhada de um boy pedia a um dos clientes do estabelecimento que tirasse
algumas fotos. No segundo flash, insistiu para que o boy tirasse a camisa e
revelasse sua musculatura. Aquilo pareceu uma sinalização para que o cliente se
aproximasse. “La maricón”, como são classificados os homossexuais idosos aqui,
revelou receptividade e conhecimento relativo aos códigos de abordagens. Pouco
tempo depois os vi, os três, sentados em uma mesa mais afastada. Volto ao
dancing principal e reconheço um sujeito que malha na academia que comecei a
frequentar. Musculoso ao extremo, beirando ao halterofilismo, desfilava em meio
ao público como se exibisse seus atributos. O estereótipo corporal corresponde
ao adotado pelos boys brasileiros. Peitoral desnudo, tatuagens nos braços,
calça jeans extremamente colada ao corpo. As travestis evidenciam o exercício
da prostituição e fazem abordagens diretas junto aos clientes mais velhos.
Existe verdadeiramente uma procura considerável por parte destes. Neste aspecto,
salienta-se que os consumidores dos serviços oferecidos são aparentemente de
poder aquisitivo baixo, provavelmente trabalhadores operacionais, o que
sinaliza o baixo custo dos programas. De modo geral os homossexuais de Buenos
Aires parecem menos efusivos que os pernambucanos. No meio do dancing
encontra-se um “queijo” ou prato, onde alguns sobem e dançam. Apesar da liberdade,
bem como da quentura em todo o estabelecimento, dotado de grandes ventiladores,
ninguém retira a camisa. Existe uma espécie de formalidade institucionalizada.
Os encontros afetivos e amorosos também se mostram raros. Apesar da fácil
identificação de casais, poucos dançam agarrados, se acarinham ou se beijam em
meio ao público.
As lesbianas, classificação para
as mulheres homossexuais argentinas, parecem mais confortáveis no
posicionamento perante a sociedade. Muitas apresentam marcações corporais bem
definidas. Grande parte das frequentadoras do local são “pesadas” ou
masculinizadas. Usam calças jeans e camisas de malha folgadas. Algumas adotam
os bonés, enquanto outras se valem da utilização de pircens e/ou grandes
tatuagens. A maioria usa o cabelo curto, ou adota um modelo próximo ao de
Maradona em seus tempos áureos. Também diferente da outra boate, os garçons não
são jovens malhados e desnudos, mas homens maduros, provavelmente proprietários
do espaço. Nesta, não existe dark-roon. Se as pegações ocorrem nos banheiros,
esta se faz de forma bastante discreta. Seguindo um procedimento que parece
padrão, aqui também é verificada a presença de seguranças nestes espaços, o que
talvez se apresente como estratégia para evitar as interações sexuais e/ou
afetivas.
Saio novamente para rua e durante
um cigarro sou abordado por homem alto e magro. Mas uma vez aproveito a
oportunidade para garimpar maiores detalhes. Não nego meu desanimo ao descobrir
sua origem espanhola. De férias na cidade, se mostrou mais havido por
informações relativas aos espaços gay/homossexuais da cidade do que eu.
Conversamos então sobre nossas impressões pessoais e pude então reafirmar minha
pretensa percepção sobre o hipotético comportamento e postura reservados dos homossexuais
de Buenos Aires. Seu interesse estava no contato com os boys de programa.
Expliquei que aparentemente os mesmos atendem por telefone, em locais próprios
e reservados. Contudo, não sabia dize-lo onde localizar tais telefones, pois
diferentemente da prostituição feminina, a divulgação de espaços e
profissionais não é feita nas ruas. Pautado no mapeamento realizado em julho do
ano passado, indiquei-lhe os endereços de uma sauna, localizada nesta mesma
rua; e, de um sex-shop, localizado na Florida, onde poderia encontrar os
catálogos turísticos voltados ao público gay.