A IRREVERENCIA
DO TEMPO.
Silenciaram-se as trombetas! Abafaram-se
as melodias! Dissiparam-se as multidões! Recolheram-se os foliões! E pela
primeira vez na vida agradeci o silencio e pedi a volta da “normalidade”. Sobrou
apenas a incomoda sensação de ter somado mais um carnaval, de ter contabilizado
coisas que ainda não sei explicar. As cinzas da quarta-feira ainda estão em brasas,
queimando meu peito. Não se apagaram como na fadiga de anos anteriores. Acho que
numa sátira debochada, o carnaval brincou comigo. E isso não me fez mais feliz.
Diante de mim, agora, dois “abês”, um chapéu de palha e fantasias empacotadas
parecem falar de um tempo remoto. A casa parece vazia. Eu pareço vazio.
Nas ruas antigas do Recife revi os
foliões mirins de minha infância, encantados com as novidades e surpresas. Na multidão
do Galo avistei os bebês que marcaram minha mocidade. Nas ladeiras de Olinda
perdi a piada da irreverencia, e por isso, o riso espontâneo e a malicia inocente
não vieram. O carnaval passou sem me contagiar, mas não deixou de me atravessar.
Como um samba mal cantado, desentoei na avenida. E estava tudo lá. De certo
modo, tudo parecia igual. Menos eu. Foi como uma espécie de retrospectiva atrasada.
Uma espécie de autoavaliação que não combina com Momo. Em cada esquina, em cada
rua, em cada beco, em cada bloco encontrei comigo mesmo. Eram fotos vivas que
demarcavam épocas e momentos inesquecíveis de minha história. Minha vida passou
diante de meus próprios olhos. Quase cinco décadas revisitadas em apenas cinco
dias de folia.
Penso que não tenha me preparado
devidamente para o carnaval deste ano. E não falo de fantasias, adereços,
ingressos para as prévias ou camarotes. Falo de emoções reprimidas, com todos
os seus significados e consequências. Até o ano passado éramos dez, e agora
somos nove, meio órfãos. A subtração começou a substituir a soma, e a
multiplicação natural tornou-se digna da minha própria próxima geração. Acho que
a morte tem esse caráter de demarcação. Não só fecha como abre novos ciclos,
sinalizando mudanças. Velhos amigos, que também partiram nos últimos anos, me
fizeram falta. Outros que reencontrei apenas me mostraram a passagem de um
tempo estampado em seus rostos. Minha geração já não tem a mesma cara, o mesmo
humor, o mesmo pique. Mas o carnaval, ao contrário, insiste em se manter intacto,
intocável, se recriando a cada novo ano. Um fenômeno de massa que se reinventa
independentemente dos indivíduos. Como se diria nos tempos atuais, o bloco anda.
Talvez meu incômodo tenha se dado na constatação de que o meu correu em uma
velocidade além de minhas forças, mas não de minha vontade. Talvez seja comum, talvez
seja natural, talvez seja só uma crise da meia idade.
De tudo que eu sei apenas me
resta a grande certeza de que não se envelhece o carnaval. Com sorte se
envelhece com ele. O grande desafio talvez consista na reconciliação com o
tempo. Que é de cada um, mas que também é de todos. Assim, que Dionísio me dispense
à sabedoria necessária ao não desencantamento. A inteligência dos grandes
foliões que também se reinventam em novos blocos pra lá de frenéticos. E que
venham os próximos carnavais. Muitos e muitos, a ponto de me fazerem rir também
da morte. Pois que esta também é farsa. E como tal deve ser reverenciada. Até que
seu manto nos transporte para outras ladeiras, para outras folias. E que venham
os sucessores da irreverencia, pois que a vida deve se perpetuar na festa e no
frevo.
E que assim seja. Sempre, e para sempre. Amém!