domingo, 16 de setembro de 2012

O CONTO DOS NEGRINHOS TONTOS DE CRACK



OS MENINOS DA RUA DO HOSPÍCIO

“No meio do caminho tinha uma pedra... Tinha uma pedra no meio do caminho”. No caminho do nada. No caminho da noite. No caminho das perdas. Pedras da morte no meio do caminho de crianças solitárias.

Na minha rua tem um ponto negro. Tem um ponto negro na minha rua. Na rua da minha cidade. Na rua do meu prédio. Rua de meninos negros. Negros como a noite. Negros como as ruas. Na minha rua tem pontos negros que se multiplicam. Na minha rua não há segurança e nem cidadania.

Toda noite vejo um, dois, três, quatro, cinco, seis... Faltam-me os dedos das mãos. Mas com os pés não conto. Porque assim não se conta gente! Aprendi que quem conta um conto sempre aumenta um ponto. Mas nesse caso sempre me perco, e subtraio. Porque o conto que conto se passa num canto. Em um canto onde não existe canto, nem acalanto, muito menos melodia. Nesse conto de desencantos, os cantos somam pontos. E os pontos somam negros. Pequenos pontos que são todos negros.

Então o conto torna-se sobre negros pontos que não marcam pontos, não somam gols, não ganham o jogo. Porque não falo de um jogo que se joga brincando. Mas sobre um jogo de vida e morte. Não se joga com a vida. Não se ganha com a morte. Por isso não deveria ser de crianças. Crianças negras jogando um jogo de azar. Jogo que só joga os sem sorte, sem direitos, sem dignidade.

Nesse jogo os pontos negros sempre morrem, e por isso não crescem e não se desenvolvem. Mas se multiplicam em velocidade vertiginosa, assim como deveria crescer nossa vergonha. A vergonha de uma cidade que espalha pedras pelas ruas. Por isso logo aviso que o conto que agora conto, conta da inevitável morte dos negros pontos. Negros tontos de cola, que frequentam e se consomem no isolamento frio do portão de serviços de meu prédio.

No centro da minha cidade tem um portão. Tem um portão num canto da minha rua. Um portal do inferno num ponto do meu prédio. Repleto de outros pontos. Todos negros. Macabra coincidência meu portão dar para a Rua do Hospício. É lá onde a loucura toma a vida. As rouba dos pequenos pontos negros. Onde se concentram os loucos negros tontos de crack.

Pequenos negros malucos, diariamente jogados nas ruas de uma metrópole completamente louca e insana. Uma cidade repleta de pedras que se queima. Pedras que se fuma, que se exala, queimando vidas. Vidas de pequenos pontos negros já quase sem vidas. Esquecidos no meio da rua. Diante de um portão que os separa do todo. Que lhes nega tudo. Que lhes relega a sorte. Crianças em estado lastimável. Crianças sem Estado!

Um portal da morte, num canto da minha rua, no centro da minha cidade, no meio do caminho de crianças vazias. Um portão como tantos outros, nas tantas outras ruas de um mesmo centro urbano. Quando a noite cai, eles chegam. Mas só quando eles caem, a noite dorme. E com ela dorme a cidade anestesiada por seus erros.

À noite eles sempre voltam: um, dois, três, quatro, cinco, seis... Qualquer dia desses, eu perco a soma! Qualquer dia desses, eles perdem a vida! Por isso minhas contas nunca são exatas! Por isso meu conto só tem começo, e nunca tem fim! Como as pequenas vidas dos curtos pontos negros. Como as curtas vidas sem vidas dos pequenos e negros pontos.

Porque os pequenos pontos negros sempre se perdem no meio? No meio da rua; no meio da vida; no meio do nada? Porque não somem de vez pra que eu possa cessar minha conta? Mudar meu conto? Conto que não tem canto, nem acalanto, muito menos melodia. Faltam-me os dedos das mãos. Mas com os pés não conto, porque assim não se conta gente!

Não se conta de uma cidade doente, que diariamente fabrica novos pontos tontos. Uma cidade que assassina criança atirando-lhes pedras. Que extermina pontos tortos que se multiplicam cambaleando. Todos pequenos! Todos negros! Todos sujos! Todos feios! Todos tronchos! Todos zonzos de cola! Todos malucos de pedra!

Por que sempre existe uma pedra no meio de seus caminhos? Porque não tiveram tempo de ler o Drummond? Porque o poeta não avisou que a pedra no meio do caminho às vezes mata? Porque as pedras da minha rua não se destinam apenas as calçadas? Porque insistem em invadir as esquinas, cantos e recantos, desfigurando as ruas e as caras do Recife?

Ah, meu Recife repleto de ruas marcadas por pontos negros sonâmbulos. Impregnado de pontos cegos e vagos! Pontos que não se vê, mas que exigem visibilidade. Que somem na fumaça alienante que embaça nossos olhos ébrios de indiferença. Por isso se perdem as vidas. As vidas dos pequenos pontos negros. Porque se descarta as vidas dos tantos tontos pequenos negros zonzos?

Na minha rua tem pedras que enlouquecem. Pedras que queimam as sucessivas vidas de pequenos pontos negros. Pequenos pontos negros que insistem em se reproduzir. Que teimam em resistir. Que insistem em existir. Pequenos meninos negros que consomem pedras. Maluquinhos por Crack. Louquinhos por vida. Doidinhos por sorte.

São milhares de negrinhos birutas diante do portão da morte. Que só conhecem o jogo da fatídica insensibilidade moral. Peças de um desumano e ineficiente joguete político e social. Jogadores da vida que não fazem gols, que não marcam pontos. Pois que se tornam eles mesmos pontos negros zonzos de fumaça ácida. Como ácidas se fizeram suas vidas corroídas. Frutos de uma cidade viciada, maluca, digna de hospício. Produtos da Rua do Hospício. Da minha rua. Do meu portão.

E toda noite eu os conto: um, dois, três, quatro, cinco, seis... Sempre me faltam os dedos das mãos. Mas com os pés não conto, porque assim não se conta gente. Assim não se devem somar as mortes. Mesmo as dos pequenos e insignificantes pontos negros. Mesmo as das crianças negras tontas de cola. Mesmo as das negras crianças zonzas de crack. Mesmo as dos que morrem em estado de graça. Principalmente as dos que morrem sem a graça do Estado.

Na minha rua tem uma pequena Cracolândia. Uma cracolândia no centro da cidade. Onde brincam crianças negras. Onde, todos os dias, morrem crianças pobres de vida. Órfãos de sonhos. Com fome de futuro. Por isso, toda noite continuo contando: um, dois, três, quatro, cinco, seis... E mesmo que me faltem os dedos das mãos, com os pés não conto. Porque assim não se conta gente. Mesmo que crianças sozinhas. Mesmo que crianças perdidas. Mesmo que quase sem vidas. Principalmente as coladas no portão do meu prédio.

Um, dois, três, quatro, cinco, seis... Com os pés não conto. Porque assim não se conta gente! Com os pés se apezinha gente! Mas, se me emprestares teus dedos, juntos contaremos, sete, oito, nove, dez, vinte, trinta e um alerta! Porque esse é o jogo que deve ser jogado. Seremos trinta e um dedos; trinta e um mil olhos; trinta e um milhões de brasileiros em alerta. Um país inteiro removendo as pedras do meio dos caminhos. Uma nação em luta pela garantia de seus direitos, inclusive o de ser criança. Ainda que negras. Ainda que zonzas. Ainda que loucas.

Um, dois, três, quatro, cinco, seis... A soma só cresce, mas com os pés não conto. Porque assim não se conta gente. Mas se me emprestares teus dedos, com eles virão às mãos. E com estas virá a força. A força que preciso para continuar contando sobre a morte diária dos pequenos pontos negros de nossa cidade. Porque esse, não é um conto que se conta só. É um conto sem canto, acalanto ou melodia. É mais que isso, é um pedido de socorro, de ajuda, de auxílio, de providências urgentes.

Um, dois, três, quatro, cinco, seis... Com os pés não conto! Porque assim não se conta gente! Num canto da minha rua tem um portal do inferno. Como tantos outros, nas tantas outras ruas da nossa cidade. Hospícios urbanos abertos para o vazio das ruas, para escuro do medo, para o breu frio da solidão, que os transforma em supérfluos pequenos pontos negros. Manicômios ácidos onde diariamente tombam milhares de crianças tontas de cola, loucas de pedra.

Um, dois, três, quatro, cinco, seis... Se me faltam os dedos das mãos, com os pés não conto. Porque assim não se conta gente. Principalmente crianças que morrem por falta de Governo.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

GABRIELA NUA NA BOA VISTA: SERÁ QUE DÁ VOTO?





AS ELEIÇÕES 2012 E O BANHO DA GABRIELA NO CENTRO DA BOA VISTA

De minha janela vejo uma mulher ao banho. E neste exato momento penso no quanto a cena poderia ser bela se houvesse delicadeza; ser plástica se houvesse arte; ser mágica se houvesse dignidade. Com certeza se tornaria alvo dos flashes anônimos se houvesse humanidade. Reluto em não pegar a filmadora. Porém sei que não me sentiria menos canalha ao registrar um ato tão esvaziado de privacidade e direitos. Busco então um motivo que justifique minha permanência indevida e indisfarçada na janela e encontro minha própria condição de sujeito infame e ignóbil, inerte ou indiferente a tamanha violência. Na cena que presencio não há encantos. Também não há sensualidade, mistério ou erotismo. Apenas uma mulher banhando um corpo sujo. Não há maneirismos, e muito menos sutilezas. Não existe prazer no ato, mas ao contrário, há pressa. Uma espécie de mal-estar, certa agonia que revela o incômodo por estar totalmente exposta a olhos falsamente pasmos e curiosos. É uma negra subjugada à hipocrisia e censura alheia. Uma mãe de corpo gasto, já desnudada dos encantos femininos.

Ao contrário do que se possa pensar, não há indecência, muito menos imoralidade em seu ato. Não de sua parte. O indecoro neste caso torna-se político e social. Seu desprendimento revela, de certo modo, uma espécie de ingenuidade digna dos excluídos. Daqueles que se vêem obrigados a guiar-se por outros parâmetros normativos – os dos marginalizados. Afinal, é apenas uma mulher lavando o corpo coberto pela poeira de uma cidade já adoecida e impregnado de calor. Diria mesmo se tratar de uma espécie de “Gabriela”, uma das tantas que coabitam as calçadas da Boa Vista, e que, como qualquer outra mulher, comumente se banha ou se limpa das ruas. E se a impureza vem das ruas, que sua higienização também se faça nelas. Aliás, este também não se configura enquanto ato tão inusitado para uma cidade abandonada como o Recife. Resolvo então registrar o cotidiano da nossa também heroína, que provavelmente chegou à cidade grande em busca de melhores condições de vida. Porém saliento que, com certeza, por não ser tão exímio escritor quanto o Jorge talvez sonegue detalhes que pudessem caber no erotismo inerente ao ato de banhar-se em público, motivo de altos índices de ibope na literatura televisiva brasileira. Esclareço ainda que, logicamente meu objetivo não é literário, mas unicamente o registro das improbidades de uma cidade que se perdeu em dignidade. Começo então dizendo não saber se moça em questão se chama “Juliana”, mas que de certo “Paz” não é seu sobrenome, e muito menos sua companheira. Destaco também que a certa indiferença moralista, disfarçada por parte dos espectadores, se justifica claramente pela deformidade de suas curvas. Nossa Gabriela não tem um corpo harmonioso, e muito menos fotogênico, como a imortalizada pelo autor baiano. Na cena em questão, não há um chafariz brotando gotas molhadas em forma de chuva para salientar silhuetas torneadas. A água que lhe cai, ou cabe, sai de uma lata velha e enferrujada. Daquelas que se encontra nos esgotos entupidos do Recife. Corre em forma de jato, numa espécie de trombada que lhe bate, e abate o rosto, escorregando impura entre os seios até se espatifar na calçada. Não é uma cena bonita, porém não menos pura do que a protagonizada na novela.

Então me pego pesando sobre como descrever a poesia de uma água suja, que não lava, e que se esconde apressada, e ainda mais insalubre, entre anônimas pedras retangulares de uma cidade fedorenta e relegada ao lixo, inclusive humano? Como exaltar um corpo que nos fala de outra estética – a dos que não tem nada, inclusive beleza? A imagem aqui, diferente da do folhetim, nos fala de um corpo sem encantos, sem charme, elegância ou atrativos. Afinal, trata-se apenas de uma mulher de rua em seu habitat natural. Pergunto-me então, como tornar a leitura mais prazerosa, colorindo um cenário composto por um abrigo brutalmente feio, que demarca uma das tantas paradas de ônibus na Av. Conde da Boa Vista? Será que deveria descrever a “individual deformidade coletiva” dos coadjuvantes que a acompanham na cena? Será que valeria à pena destacar a presença de crianças nuas e sujas, que acompanhadas de cachorros, gatos e ratos sarnentos, bebericavam os restos da água que não lhe limpava o corpo? Se tivesse uma máquina mais potente, talvez pudesse dar um close em suas partes intimas despropositalmente reveladas pelos trapos esburacados que vestia. Melhor seria se em câmera lenta registrasse seu semi-sorriso vazio de dentes, acompanhado do mínimo movimento dos cabelos colados a um casco áspero e desgrenhado. Talvez pudesse produzir um vídeo-documentário que revelasse o friccionar de suas mãos, que conduziam um pedaço de sabão que lhe cobria a pele com uma espuma ensebada. Poderia dar close na água escura que lhe descia entre o ventre, e que, misturada ao seu próprio mijo escorria por meio as coxas até se juntar a lama da rua. E se enquadrasse o ângulo para melhor focar o desajeitado bailado de seus pés calejados sobre velhos papelões? Será que assim a cena ficaria mais leve, mais artística, e consequentemente mais digestiva?

Duvido! Mas se houvesse um patrocinador, juro que lhe garantiria o retorno em marketing comercial. É que na nossa cena real e crua o bailado dos pés sujos e desgastados se deu sobre papelões de embalagens de eletrodomésticos, com direito a exibição ou exposição gratuita de uma famosa casa comercial. Neste caso, penso se não caberia terminar a filmagem com a foto da Ivete Sangalo rindo, estampada ao lado da tal logomarca? Mas isso se fosse esse um vídeo comercial. Porque se a proposta aqui fosse mais provocativa, sugeriria deixar a “baianidade” com o mestre Amado, substituindo a foto da cantora pela dos candidatos a prefeito na atual eleição. Será que isso contribuiria para que algum deles apresentasse propostas coerentes e eficazes voltadas a população em situação de rua? Mais uma vez duvido. Mas de certo, confesso que teria meu voto! E acho mesmo que até elevaria o ibope do fantasioso guia eleitoral, repleto de promessas mirabolantes que beiram o fantástico. Mas como população em situação de rua não dá voto, melhor voltar a nossa Gabriela-da-Boa-Vista em seu banho magistral em pleno centro da cidade. Porque se o corpo em si não chamava a atenção, o ato obrigava a constatação de suas condições, ou ausência destas. Estava feito! Ali estava uma mulher seminua revelando o desenho representativo dos esquecidos. Era o banho dos marginalizados, que metaforicamente molhava os hipócritas incrédulos. Atingia diretamente cidadãos alienadamente de bem. A indiferença era recíproca. A Gabriela-das-Ruas na sua rotina. Os transeuntes atrapalhados em seus afazeres. Haviam senhoras envergonhadas. Talvez delas mesmas. Mas, havia também senhores sem vergonhas. Porque o lixo também se faz carne. E para o cafajeste a carne alheia será sempre alvo de cobiça. E neste sentido, é bom não esquecer, que como disse o poeta: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Como negra também se tornou sinônimo de safadeza na boca dos alarmistas burgueses. E num sentido inverso a cena tornou-se sobre uma Gabriela-Negra-Safada. Uma espécie de cachorra sem dono que se atrevia a despertar o cio dos abutres “civilizados”.

O ápice estava por vir. A Gabriela-Difamada tiraria a roupa por completo? Como se livraria dos trapos molhados? Teria ela mudas mais condizentes com as etiquetas urbanas? O povo esperava por respostas. O povo torcia por escândalo. Os olhos cobiçavam partes e detalhes pecaminosos. Alguns fingiam virar o rosto, enquanto uns riam jocosamente. Outros, menos discretos, buscavam lugares estratégicos. A Gabriela-Nua se tornara um espetáculo gratuito. Desinteressada e insensível aos olhares, a mulher posiciona-se abaixada, por trás de uma nova embalagem. E aquilo que outrora embalara uma geladeira ou freezer empacotou também a Gabriela-Bangela e feia. Suaram suspiros de alívios e decepções. Quem esperaria que uma simples mulher de rua tivesse pudores? Quem acreditaria que tivesse inteligência suficiente a ponto de elaborar estratégias de privacidade? Fato é que assim o público se dispersou e a nossa heroína lentamente voltou aos seus afazeres domésticos depois de um dia de trabalho intenso. Ainda na calçada espremeu suas peças de roupas velhas e as estendeu sobre as grades de sua carroça repleta de papelões que recolhe ajudando a limpar as ruas. De minha janela pensei: Ah, se não fossem as Gabrielas-das-Nossas-Calçadas? Quanto trabalho restaria aos garis mal pagos do Recife? Que espaços sobrariam aos tão limpos e soberbos transeuntes? Que imagem se faria de uma cidade tão civilizada e democrática? Era final de tarde e o sol ainda ardia no asfalto dilatando pneus. Hora perfeita para o descanso merecido. E como uma verdadeira musa, a Gabriela-Mãe deitou-se aconchegada ao pequeno filho despenteado e chorão. Aninhou-o em seu seio e ambos sumiram embalados nos velhos papelões. E por hilária coincidência, uma Ivete rasgada ao meio apontava para a frase de campanha: “Foi a Mamãe Quem Mandou...”!

Agora se lhe resta esperar o final de uma novela fracassada que se arrastará até as urnas. Só nos resta fazer nossa parte, para que as Gabrielas-Pernambucanas, as tantas Gabrielas-Mães-Trabalhadoras-Mulheres, como quaisquer outras que não habitam as calçadas e ruas imundas, não precisem repetir o velho refrão: “Eu nasci assim! Eu cresci assim! Vou ser sempre assim...” Gabrielas-do-Lixo!

domingo, 2 de setembro de 2012

A TRANSEXUALIDAE EM PAUTA - NOTÍCIAS E REFLEXÕES





A DIVERSIDADE DAS IDENTIDADES DE GÊNERO

Nesta semana, mais uma vez, as temáticas sexualidades e gênero voltaram à pauta dos principais meios de comunicação, seja na mídia tradicional ou virtual, pelo mundo inteiro. As discussões contribuem para a importância de se repensar a urgente necessidade de respeito às diferenças através do reconhecimento legal e social das identidades. Neste sentido destaca-se que identidade relaciona-se diretamente ao que nos constitui enquanto sujeitos, individuais e únicos. Parte do próprio reconhecimento sobre o que se é, muitas vezes, em oposição ao modelo hegemônico biologista. Isto significa a necessidade de se abandonar o restrito argumento do sexo biológico como único parâmetro para definição das identidades de gênero. Se na antiguidade a ciência acreditou que a identidade de gênero poderia, ou deveria ser adequada ao corpo; na atualidade, a mesma reconhece a inviabilidade das práticas médicas voltadas a domesticação da subjetividade, dimensão fundamental a estruturação e desenvolvimento das identidades humanas. Assim, estudos e pesquisas acadêmicas têm revelado que ao contrário do que se pensava o corpo sim, mostra-se passível de mudanças e adequações objetivando a consolidação do auto-reconhecimento sobre as identidades de gênero, favorecendo o estado de bem estar, que define o conceito de saúde.

A exemplo disso, na cidade de Buenos Aires, Argentina, um professor de xadrez da rede pública de educação, assumiu sua nova identidade de gênero após as férias escolares. José D´oro agora se chama Melissa e se reconhece como travesti. Torna-se assim a primeira professora transexual da capital argentina. Há mais de seis anos iniciou sua transição, que incluiu a implantação das próteses de silicone nos seios, mesmo vestindo-se com roupas masculinas. Pai de duas filhas, 21 e 16 anos de idade, sentencia: “Eu sempre soube o que eu era e, quando era criança, por causa da minha delicadeza, sofri violência de gênero e tive que mudar de escola. Hoje, depois que tirei a capa de homem, me sinto muito melhor comigo mesma”. Por parte das escolas, os pais dos alunos foram comunicados sobre a alteração de sua aparência após as férias.  ''Ela é uma excelente professora e as crianças têm que se acostumar'', disse uma das mães dos alunos ao jornal La Nación. O mesmo sentimento é compartilhado pela também professora Claudia Araujo, que disse ter explicado a mudança aos alunos por meio de contos para abrir o debate sobre a temática sexualidade e gênero. Para ela, ''as crianças e jovens têm muitos exemplos que vêem na televisão. Eles têm muita informação e entendem essas questões melhor que os adultos. Estamos em uma sociedade que muda frequentemente e acho que a decisão da Melissa foi corajosa''. Em Buenos Aires, a partir de junho de 2011 passou a vigorar a Lei de Identidade de Gênero, que permite a mudança de nome em documentos civis, além de garantir o acesso aos tratamentos médicos necessários à mudança de sexo através da rede de saúde pública. Para o antigo professor, a lei era o que faltava para que “cada um possa assumir quem realmente é”. No que se refere a sua identidade declara não sentir a necessidade de se submeter à cirurgia de transgenitalização: "Eu sou travesti e não tenho conflito com meu corpo".
Se a história da professora portenha choca por confrontar nossas tradições machistas e conservadora, ou ainda  parece distante de nossa realidade, é bom saber que fato semelhante aconteceu, também este ano, no Brasil. A professora Marina Reidel, viveu como Mário durante vinte nove anos na cidade de Montenegro, Rio Grande de Sul, até se transferir para Porto Alegre, onde iniciou sua transformação. Descendente de alemães se descobriu do sexo feminino ainda na infância. Durante a adolescência concluiu o magistério em um colégio de freiras, e posteriormente graduou-se em artes. Aprovada em concurso começou a lecionar em escolas públicas do estado. Seu processo de transformação se deu de forma gradual, começando pelos cabelos, que deixou crescer; passou a usar brincos; e, por fim, adotou o nome social. No ano de 2006, licenciou-se das atividades profissionais e iniciou o tratamento a base de hormônios, cirurgias plásticas e implante de protestes de silicone. A direção da escola estadual também promoveu palestras sobre a temática e comunicou aos alunos que a professora não seria a mesma quando retornasse as atividades. Apesar das providencias administrativas Marina manteve-se cautelosa: "A gente aprende a sempre esperar o pior" disse ela em entrevista concedida ao jornalista Daniel Aderaldo (iG, 15.05.2012). Seu retorno ao trabalho foi tranquilo, não enfrentando grandes resistências por parte dos alunos, pais, colegas de profissão ou gestão da instituição de ensino: "Claro que causou espanto, mas em nenhum momento houve problemas sérios", disse ela. Como desafios futuros apresentam-se, a defesa de dissertação de mestrado em educação pela Universidade do Rio Grande do Sul, onde analisará a realidade e prática de professoras travestis e transexuais em escolas brasileiras; e a cirurgia de mudança de sexo.
Já em Pernambuco, na semana passada o educador físico Alexandre Emanuel conseguiu uma liminar na justiça que obriga o estado a pagar sua cirurgia para mudança de sexo, a ser realizada no Hospital das Clínicas de Goiás, já que o serviço antes prestado pelo Hospital das Clínicas da UFPE está suspenso por falta de profissionais especializados, fato já divulgado neste blog. No dia 29 de agosto, a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco anunciou a implantação no Estado de um centro especializado no atendimento a transexuais masculinos e femininos, dentro de um prazo máximo de seis meses. Segundo a diretora de Políticas Estratégicas da Secretaria de Saúde, Andreza Barkokebas, com a implantação do serviço, Pernambuco será o segundo estado do país a ter um centro de referência em mudança de sexo credenciado pelo Ministério da Saúde.
Enquanto isso, em Brasília, o estudante de ciências políticas da UnB trava uma batalha administrativa para ser reconhecido pelo nome que escolheu. Nascido menina, Marcelo, aos vinte e dois anos, quer ver nos documento da instituição, voz dos professores, colegas e funcionários, sua nova identidade formalizada legalmente e reconhecida. Depois de anos tentando compreender tudo o que sentia, ele conheceu – e aprendeu – sobre transexualidade. Com ajuda de amigos e da terapia, compreendeu que não era uma simples “mulher lésbica”, mas sim, homem - a vontade de ser vestir como um garoto tinha explicação. Para a jornalista Priscilla Borges declarou que não foi fácil se libertar da antiga identidade. “Não é e nunca será fácil, eu acho” (iG, 10.05.2012). Sua primeira providência foi comunicar ao pai, que reside no interior de Pernambuco e com quem restringiu suas relações após a reação contrária. O segundo passo foi contar aos amigos sobre sua nova identidade, com quem escolheu seu nome social. Depois disso cortou os cabelos e desde então luta pelo reconhecimento e respeito dentro da instituição de ensino. Marcelo Caetano antes de se transferir para Brasília cursava o curso de direito na UFPR onde tinha reconhecido a sua identidade social em todos os documentos da instituição, fato não estabelecido pela UnB. Assim era preciso a cada início de semestre conversar com cada professor sobre a situação. Segundo ele, alguns reagiam de forma natural e atendiam ao pedido. Outros, no entanto, se negavam, contribuindo para a efetivação das humilhações sofridas em sala de aula.  “A aceitação foi muito tranquila, de modo geral. Cheguei aqui com uma postura muito diferente. Já fiz muitos amigos, mas essa questão do nome é muito importante. Rodei tudo quanto é decanato em busca de ajuda, porque hoje tenho que abrir minha intimidade aos professores e correr o risco de ser atendido ou não”. Cansado dos constrangimentos, no dia 26 de janeiro entrou com um pedido junto a universidade para o reconhecimento incondicional do nome social e aguarda decisão definitiva da UnB, que ao que tudo indica será favorável. “A sociedade deveria tratar a situação dessas pessoas com mais atenção e não fingir que elas não existem. O procedimento para mudar os documentos de quem não se sente dentro do gênero que nasceu deveria ser mais fácil”, afirmou o professor de direito e chefe de gabinete do reitor, Davi Diniz.
No mesmo caminho, o da garantia de igualdade de direitos, em maio deste ano, o Conselho Estadual de Educação do Estado de Ceará regulamentou a adoção do nome social de estudantes travestis e transexuais em todos os documentos internos das escolas onde estudam, incluindo as instituições de educação básica e ensino superior vinculadas ao sistema de educação estadual. A nova regulamentação também permite que alunos/as com menos de dezoito anos optem pela utilização e reconhecimento do nome social dentro das instituições desde que apresentem autorização dos pais ou responsáveis. A nova regulamentação se pauta na chamada popularmente “Lei do Nome Social”, já aprovada em alguns estados, incluindo Pernambuco [Decreto Lei nº 35.051, de 25.05.2010], que permite aos servidores públicos  adoção e utilização do nome social em documentos institucionais.
Também vem do Ceará a notícia sobre a primeira travesti doutora em educação do Brasil. No mês passado, Luma Nogueira Andrade defendeu sua tese de doutorado, pela UFC, revelando o cotidiano das travestis matriculadas na rede estadual de ensino, onde os maus-tratos tendem a se tornar corriqueiros. Se durante a infância sentiu na própria pele o preconceito por parte de professores e colegas de turma, na juventude enfrentou o mau no mesmo ambiente ao se tornar funcionária pública concursada, passando a lecionar em uma escola do interior. Com o título “Travestis na Escola - Assujeitamento ou resistência à ordem normativa”, Luma apresenta um levantamento das travestis matriculadas na rede estadual de ensino do Ceará e narra os maus-tratos sofridos por elas no ambiente escolar. Ao longo do trabalho, os relatos das entrevistadas se confundem com sua própria história de vida, permitindo um cruzamento de autobiografia e etnografia. “Eu ia percebendo em minhas interlocutoras que, na verdade, existe uma diversidade de formas de travestis e que a realidade que elas vivem não é a mesma que eu vivi”. Com o estudo, aprovado para publicação em livro, ela destaca a inexistência de professores e gestores com formação que vá além do conteúdo das disciplinas, dando conta das questões de gênero não apenas para tratar da homossexualidade no currículo, mas principalmente lidar com as especificidades de cada pessoa. Para o antropólogo Alexandre Fleming Câmara Vale, um dos professores a participar da banca examinadora, a tese de Luma é um “marco” para os estudos sobre travestis. “É a primeira vez que uma travesti escreve sobre a experiência das próprias travestis” (iG, 17.08.2012).
A quem acredita que tais assuntos não lhes dizem respeito, o melhor a fazer é buscar por informações. Afinal de contas, a sociedade se transforma a partir das demandas sociais, das necessidades do próprio homem, que se constitui e se constrói na própria sociedade e cultura. As resistências são do âmbito pessoal e atende a interesses particulares. Porém é sempre bom lembrar que a garantia de igualdade de direitos revela-se e se estabelecem em uma dimensão maior – o bem coletivo. Neste sentido, vale destacar que não se precisaria de tanto trabalho e barulho se nossa Lei Maior, a constituição Federal, fosse respeitada. Ou todos não somos iguais perante a Lei? Uma sociedade democrática se consolida a partir do respeito individual e coletivo de seus membros. E se ainda tiverem alguma dúvida sobre o que é diversidade sexual, na realidade de nossa cultura, aproveitem o próximo domingo 17 e participem da Parada da Diversidade, na orla de Boa Viagem. Boas diversões reflexivas!