terça-feira, 27 de março de 2012

A NORMA E A LEI - A REGULAÇÃO DOS CORPOS



Numa livre reflexão sobre a construção dos corpos sou levado a pensar sobre duas instancias poderosas que se sobrepõem, e se impõem, aos homens e mulheres: a norma e a lei. Penso que a primeira poderia ser entendida como um conjunto de regras estabelecidas pelos membros de um grupo a fim de garantir certa regularidade e controle nas relações sociais. Também como aquilo que se estabelece como base ou medida para a realização ou avaliação de alguma coisa [Aurélio, 2012]. Logo, assume o sentido de princípio, preceito, regra ou lei. Servirá como modelo ou padrão para a regulação das condutas e comportamentos aceitáveis dentro de uma determinada comunidade, bem como para controlar os corpos e os desejos e prazeres que deles possam advir. No sentido dos corpos, a norma estabelece a normalidade, que representa a qualidade ou estado de normal. Gramaticalmente, normal, que deriva do latim “normale”, se traduz como tudo que é segundo a norma. Assim, normal se torna o que é habitual e natural para uma determinada cultura. No Brasil a norma estabelece o “ser homem” e o “ser mulher”, bem como suas atribuições e representações correlatas. Cria-se então uma regra ou doutrina, no sentido de ensinamento, do que é ser homem e do que é ser mulher pautada nas diferenças anatômicas e fisiológicas propostas pelo paradigma biologista.

Por sua vez, entende-se lei, também derivada do latim, “lege”, como obrigação imposta pela consciência e pala sociedade. Ainda, como regra do direito, ditada pela autoridade estatal e tornada obrigatória para manter, numa comunidade, a ordem e o desenvolvimento [Aurélio, 012]. Neste sentido, a lei estabelece a norma como verdade máxima e útil a vida em sociedade. Logo, não existe sociedade sem lei, pois que sem esta não existirá desenvolvimento. Neste sentido, o Estado torna-se uma instituição poderosa na regulação dos corpos, e também das sexualidades. Muitas vezes respaldados pelas doutrinas religiosas e científicas encontra os meios para estabelecer controles sobre o corpo e a corporeidade, ditando os conceitos de normalidade e anormalidade que serão introjetados pelos membros de um determinado grupo. Logo, a lei torna-se a representação do pensamento de um povo sobre um determinado assunto, aprisionando-os em paradigmas sociais. Se a norma surge da cultura, respaldada pelos ensinamentos doutrinários dos antepassados, a lei torna-se a verdade máxima e consolida a vontade popular. Neste sentido as separações, exclusões, estigmatizações, sentimentos e formas de como lidar com as diferenças, que são criadas, estabelecidas e ensinadas a partir da norma social, tornam-se consolidadas enquanto instrumento legal, meio pelo qual se outorga ao Estado a regulação e controle do grupo social.

O importante nisso tudo é pensar que tanto a norma como a lei precisam ser contextualizadas. O que quero dizer é que ambas se encontram inseridas dentro de um determinado período de tempo e espaço, variando de sociedade para sociedade. Sendo sociedade entendida como conjunto de pessoas que vivem em certa faixa de tempo e espaço, seguindo normas comuns, e que são unidas pelo sentimento de consciência do grupo, ou corpo social [Aurélio, 2012], observa-se que tanto a norma quanto a lei são representações máximas de uma cultura. O conceito de cultura por sua vez também se torna contextual e situacional, ou seja, precisa ser entendido dentro de um determinado contexto local e temporal. Não existe uma cultura única, mas, várias e diferentes culturas. Podemos então questionar como diferentes culturas mantêm, ou se respaldam em padrões eixos para definir o que é aceitável ou não, tolerável ou ultrajante. Seria então como se com o tempo, os povos fossem construindo suas culturas a partir de uma “matriz original”. Especificamente nas culturas ocidentais parecem ter partido de uma espécie de matriz universal, da qual se originou ramificações que sofreram influencias geográficas, étnicas e sociais, entre outras, mas que mantiveram a concepção primitiva, ou seja, primordial, da origem humana. Neste caminho a matriz universal da norma sexual, por exemplo, se confirma inclusive nos dias atuais, através de certos posicionamentos relativos ao controle sobre condutas corporais e comportamentais. Em entrevista recente, o presidente da França, Nicolas Sarcozy, afirmou que “nestes tempos conturbados, quando a nossa sociedade precisa de referencia, eu não acho que devemos manchar a imagem desta instituição social e vital que é a do casamento entre homem e mulher”. Já em Recife, na semana passada, duas jovens lésbicas foram expulsas de um famoso restaurante por estarem demonstrando afetos recíprocos, ou seja, estavam se beijando em publico.

Se a norma social se estabelece a partir das demandas de um grupo, ou sociedade, observa-se que essa tende a se ajustar as novas situações. Torna-se flexível, até certo ponto, para possibilitar ajustes impostos pelo grupo de origem. Assim, o que poderia ser padrão para um determinado período de tempo, pode não mais corresponder às necessidades de funcionamento social nos dias atuais. Nestas situações, a atualização, ou adequação da norma servirá para a definição de novas leis, inclusive, invalidando antigas doutrinas. A instituição casamento, levantada pelo presidente francês como de vital importância a sociedade, é um bom exemplo desse processo de ajuste jurídico. A lei deve servir para atender as necessidades de um determinado grupo de pessoas que vivem de acordo com as normas comuns, que são criadas e aceitas pelo corpo social, a fim de estabelecer os parâmetros das relações saudáveis. Então, adéqua-se ou atualiza-se o conceito de casamento, mas mantém-se a concepção de sua importância e força social. Logo, a lei torna-se um instrumento a favor do homem social. Porém como representam doutrinas, entendidas como conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico, científico e etc, levam mais tempo do que a norma social para se ajustar as novas circunstancias e fatos sociais. Outro exemplo interessante refere-se ao conceito de família, que na nossa Constituição Federal, lei magna, faz referencia direta a um grupo social formado por um homem, uma mulher e filho[s]. Considerando que a mesma é data de 1988 [ultima revisão], observa-se seu descompasso com a realidade social brasileira, onde as famílias assumiram, e continuam assumindo, novas formas, dinâmicas e configurações formais. Neste sentido, a legislação brasileira não contempla ainda, de forma abrangente, o que habitualmente se acostumou a chamar, ou classificar, como “novos arranjos familiares”, incluindo-se as famílias aglutinadas, monoparentais e homoafetivas, entre outras.

Entende-se então que sendo a norma atualizada, o grupo social necessitará de um maior tempo para absorver, compreender, introjetar, e então adotar os novos princípios como regra natural, comum e habitual. Neste aspecto, ressalta-se o estudo realizado pela Universidade de Ontario, Canadá, que revela que quanto menor o grau de desenvolvimento intelectual de uma pessoa, ou de um grupo social, maior será sua tendência ao conservadorismo, manutenção de preconceitos e racismos. Será preciso entender que o tempo de adaptação de um determinado grupo às novas regras de condutas sociais irá variar de um para outro, considerando-se suas doutrinas filosóficas, científicas, políticas, e acima de tudo, religiosas. O grande conflito entre o estabelecimento da norma e a legitimação da lei apresenta-se então, quando a ultima passa a atender interesses particulares ou de pequenos grupos sociais, e não mais aos interesses coletivos. Os dois casos de intolerância as novas regras que contemplam os direitos de livre expressão dos membros da comunidade LGBTTI, citados acima, demonstram como a lei pode ser violada, ou deturpada em entendimento de uma minoria conservadora que luta pela manutenção do poder. Em ambas as situações, as justificativas se respaldam no antigo “atentado violento ao pudor” que ainda serve de aparato legal para legalizar um descontentamento dito coletivo, mas que, contudo, não se revela generalizado.

Penso então que mal pode haver em demonstrações públicas de afeto entre duas pessoas. Beijos e carinhos são regras comuns entre pessoas envolvidas em relações efetivas e sexuais. Existem regras sociais para o beijo em público, porém não existem leis no Brasil que versem sobre sua proibição. Porém as regras sociais nem sempre se traduzirão em normas gerais, ou seja, para todos. O beijo público é possível e aceito entre homens e mulheres. Contudo, entre dois homens ou duas mulheres, ou em suas variantes consideradas transgressoras, ainda causa espanto e certo desconforto. Mas não é o beijo que causa mal estar, mas sim os resquícios conservadores de doutrinas religiosas e científicas sobre a origem humana. É o reflexo de uma educação sexual pautada na procriação. Neste sentido, busca-se então uma brecha na lei para justificar o beijo como atentado ao pudor. Qual a solução para o impasse? Proibir todos os beijos ou modificar a norma social para abranger a todos os cidadãos e a todas as cidadãs de direitos, respeitando-se suas livres expressões, inclusive sexual, garantida legalmente a todas as brasileiras e todos os brasileiros? Não é o mesmo caso do casamento? Se estabelecermos o direito de todos e todas se relacionarem afetiva e sexualmente com outras pessoas, de forma livre e consciente, desde que não haja comprometimento das partes, o que impede o casamento entre pessoas do mesmo sexo? O que causa mal estar é o ato casamento ou a contrariedade e negação da doutrina sexual unicamente reprodutiva?

O conservadorismo incondicional da norma, que outrora atendia as demandas do grupo social brasileiro, talvez seja à base das tantas e quantas fobias sociais que enfrentamos atualmente. Não seria a homofobia, assim como a xenofobia, resultados de uma resistência individual, ou de pequenos grupos, em entender que o direito a diferença é constitucional, e por isso, garantido a todos e todas? Não existe direito pela metade. O direito não pode ser ofertado ou exclusivo a apenas determinadas classes ou seguimentos sociais, pois que assim, o próprio Estado, instancia a quem cabe a regulação da norma geral, torna-se o grande violador dos direitos. Os corpos ainda se mantêm no âmbito do privado, e não do público, apesar de milhões de tentativas de regulação social a que estão expostos, seja pelo Estado, religiões, famílias e ciências. Todos e todas nós temos o direito ao uso e usufruto dos prazeres proporcionados, pelo, e no próprio corpo. Cabe unicamente a nós a decisão de cuidá-lo, alterá-lo ou adequá-lo aos nossos desejos conscientes. Resumindo deveria caber a cada um, indivíduo consciente, o direito de beijar e casar, pois que estas são decisões do campo privado e não do público. São questões de fórum intimo. O que cabe ao coletivo é a convivência harmoniosa, meio pelo qual se atinge o desenvolvimento pessoal e social.

O que precisamos pensar é sobre o que se torna mais agressivo, um beijo entre pessoas do mesmo sexo ou o espancamento e morte de milhares de pessoas em nome da tradição? O que é mais grave e necessita de controle e intervenção estatal, a utilização do corpo privado ou a violação e aniquilamento deste através de um sentimento de ódio extremado que se respaldada por uma norma dita universal? Quem disse realmente que todos os homens e mulheres devem procriar? Se isso fosse um fato “natural” se tornaria uma lei universal e extensiva a todas as espécies. Assim, logicamente, não existiriam árvores que não dariam frutos. Não existiriam animais, tais como homens e mulheres estéreis. Ainda, quem disse que homossexuais, bissexuais e transexuais não podem reproduzir? A reprodução e geração humana não precisam ficar presas a um modelo doutrinário. O ser humano, assim como a natureza, encontra seus meios de se reinventar, descobrir e criar possibilidades. A norma é flexível, assim como nossas possibilidades e capacidade de se redescobrir e se constituir enquanto pessoas maduras e racionais.

A única e verdadeira norma geral é que todo homem e toda mulher tem a capacidade de racionalização. A inteligência é o que nos separa dos demais animais. Agora, inteligência é uma capacidade que precisa ser desenvolvida. E neste sentido, nada melhor do que a “desordem”, no sentido de quebra da norma, para se construir e reconstruir novos paradigmas que atendam em sua totalidade e amplitude as novas demandas sociais que se apresentam. Foi por isso, e para isso que criamos as normas, para serem questionadas e reinventadas quantas vezes se fizer necessário. É por isso, e para isso que as normas sociais respaldamos em leis, para garantir inclusive o direito a fluidez e flexibilidade social. É por isso, e principalmente para isso, que nos fizemos racionais, para criarmos um mundo melhor e digno para todos e todas.

domingo, 25 de março de 2012

A TRANSEXUALIDADE E OS NOVOS MODELOS DE MASCULININO E FEMININO







TRANSEXUAIS - OS VIAJANTES SOLITÁRIOS.

Este mês tive feliz possibilidade de conhecer a história de vida de João W. Nery. Trata-se de uma autobiografia onde revela passagens marcantes de uma criança do sexo feminino, que aos quatro anos descobre sua transgressora identidade de gênero. “Viagem Solitária – Memórias de um Transexual Trinta Anos Depois” é sem dúvida alguma uma grande oportunidade par se melhor conhecer o universo Queer, onde se encontram as identidades ditas marginais, ou seja, identidades que contrariam as normas do binarismo masculino/feminino que ainda norteia nossas sexualidades. Acima de tudo, uma grande oportunidade para se repensar no quanto nos tornamos escravos da nossa própria cultura. Difícil não se emocionar. Impossível não refletir sobre a crueldade com que condenamos quem se mostra “diferente” a habitar a marginalidade, a fim, única e exclusivamente, de garantir a supremacia da heteronormatividade.

João Nery era uma criança que se descobre em descompasso entre o corpo físico e o corpo essência. Nascido menina, logo se descobre menino. Dentro de uma cultura heterossexista, onde cruelmente os papeis e as identidades de gênero nos são ensinados a partir de uma norma que se respalda na sexualidade reprodutiva, descobre formas e cria seu próprio universo particular para vivenciar e construir sua masculinidade. Atravessa a infância e a adolescência de forma conturbada, encontrando refúgio na fantasia, mecanismo pelo qual passa a viver duas vidas paralelas, onde socialmente é visto como Joana, enquanto que na sua particular intimidade se reconhece como João. Em sua trajetória trava grandes batalhas onde se evidencia as dificuldades impostas a quem transgride as regras, e mesmo assim, tenta manter-se íntegro. Primeiro consigo mesmo e depois com seus desejos e os da sociedade em que se encontra inserido. O descompasso entre o corpo anatômico e o corpo subjetivado, ou idealizado, o atormenta. A busca pela adequação do corpo fisiológico a identidade de gênero torna-se sua meta. E a viagem solitária continua e permeia todos os processos cirúrgicos, realizados na clandestinidade, devido à falta de regulamentações legais e científicas, que nos anos 70, e início dos anos 80, ainda não reconheciam a transexualidade enquanto categoria identitária. O autor [re]nasce aos 27 anos, já adulto. Mas será preciso matar simbolicamente a identidade antiga. Será preciso apagar, ou aprender a viver com o passado para escrever o próprio futuro.

Neste sentido, não é preciso dizer o quanto o não reconhecimento de pertencimento a um determinado corpo, bem como o processo de exclusão social infringido aos “desviantes” da norma comprometem a auto-estima e o desenvolvimento saudável de qualquer ser humano. O desamparo condena a solidão, todo e qualquer transgressor. E é no momento da exclusão que se revela o requinte da crueldade humana. Devido à falta de aparato legal, o autor é obrigado a abdicar de sua carreira profissional como psicólogo; da carreira acadêmica, iniciada no mestrado; a situação socioeconômica, que lhe garantiam o cargo de professor em cinco faculdades. A sociedade moralmente tradicionalista estabelece o preço e o fardo a quem ousa desafiá-la. Poderosas instituições, como família, religião, estado e ciência estabelecem as classificações de normalidade e anormalidade, para categorizar e dividir pessoas. Assim, aprendemos a não aceitar as diferenças, seja estas de classe, étnica, religiosa ou ideológica, e principalmente, sexual. Dentro desse contexto nos tornamos frutos de uma cultura limitada e limitante em possibilidades de entendimento quanto à dimensão mais ampla da sexualidade. Não somos mais livres, se é que algum dia já o fomos, mas reféns de nossas próprias construções sociais, que logo cedo começamos a introjetar de forma anti-reflexiva e alienante.

Não paramos para pensar que, como disse Simone de Beavoir, “ninguém nasce mulher, aprende-se a ser”. Do mesmo jeito não se percebe que ninguém nasce homem, assim como não se nasce heterossexual, homossexual, bissexual, gay, lésbica. Como também não se nasce médico ou engenheiro, bom ou mau. Nossos corpos e nossos desejos são construídos para se adaptar a norma social. Não somos livres em essência, pois que não nos é permitido a magnitude das descobertas. Nosso processo de formação social torna-se pré-definido, conduzindo-nos a opções limitadas e limitantes de constituição pessoal. Nascido no Rio de Janeiro e vivendo em plena ditadura militar João Nery luta pela preservação da sanidade enquanto se depara com a inexistência de uma categoria identitária. A transexualidade só passaria a ser entendida e aceita enquanto expressão da sexualidade humana a partir do novo século. Nossa necessidade de pertencimento nos leva a identificação com o outro e com grupos sociais. Mas com quem, homossexuais e transexuais, masculinos e femininos, conseguiam se identificar quatro décadas atrás? Como desenvolver o sentimento de pertencimento quando se era encarado como aberração da natureza? Como sobreviver num ambiente hostil onde não se era reconhecido enquanto pessoa normal?

O quanto será que realmente mudamos e evoluímos nestes mais de quarenta anos que separam a primeira cirurgia de transgenitalização e os dias atuais? No universo científico é inquestionável os avanços. Mas nos campos pessoal e social, o quanto conseguimos caminhar no entendimento da sexualidade humana livre dos estigmas fisiológicos? Nossa educação não é ainda severamente marcada pelos rígidos papéis de gênero? Ou se é homem, ou se é mulher. Não existe meio termo, não existem possibilidades viáveis fora da norma, o resto é transgressão. “meninos brincam com bola e meninas com bonecas”, quem nunca ouviu essa máxima afirmativa popular, pelo menos uma vez, ou algum dia na vida? Como aprendemos a nos vestir, nos comportar, como falar e/ou reagir no mundo? A cultura nos é imposta de forma implacável. Desde cedo somos obrigados a aprender, decorar, introjetar e aceitar os códigos de uma ética moral que norteiam e nortearão para sempre nossas vidas e futuros. “Tem que ser, por que é assim. Sempre foi assim e sempre será assim, quer você goste ou não!”, quem nunca ouviu a reprimenda diante dos questionamentos transgressores? Sem dúvida a vida se torna mais fácil na adequação a norma, contudo, até hoje questiono se mais bela. Se já é difícil ser e se constituir enquanto homem quando se tem um corpo masculino, imagina quando o mesmo é preciso ser feito em um corpo feminino? Esse é o caso do autor, um viajante solitário, que se descobriu homem dentro de um corpo de mulher. Um homem honesto consigo mesmo, que resolveu desafiar o mundo para se encontrar inteiro dentro deste.

João Nery é um excelente exemplo de que transexualidade não se trata de um simples caso de homossexualidade. Não se trata apenas de um deslocamento do objeto de desejo, mas da constituição da própria personalidade, da essência de se constituir enquanto pessoa, enquanto sujeito, independente das regras impostas. Não era só o corpo que o incomodava por não corresponder a identidade, mas os papéis sociais previamente estabelecidos e organizados pela cultura, que como diria o grande poeta Cazuza, já vem marcada antes mesmo da gente nascer. E neste sentido, não se muda identidade de alguém. Mas o corpo é passível de mudanças, de ajustes e adequações. Fazemos isso cotidianamente e muitas vezes nem reparamos ou percebemos. Fazemos ginástica para aumentar a massa corporal, pintamos cabelos, implantamos silicone, fazemos cirurgias plásticas e corretivas. Incorporamos as tecnologias do corpo. E tudo isso prá que, a não ser adequar adequá-lo a nossa própria identidade e assim obter qualidade de vida? Transplantamos órgãos, recebemos transfusão de sangue, de medula e de células tronco. Isso já não choca ou incomoda, porque foi inserido e aceito socialmente. Por que passaram a ter respaldos científicos e jurídicos. O que incomoda e causa histeria coletiva quando se fala em cirurgia de transgenitalização é o tabu outorgado ao sexo. Aprendemos de várias formas, e por vários meios, a não falar de sexo. O sexo, e consequentemente a sexualidade se tornam temas do campo privado. É preciso esconder ou encobrir nossas dúvidas, anseios, e principalmente os desejos sexuais. É como se socialmente fossemos quase seres assexuados.

Em palestras e aulas que dou sobre sexualidade, por exemplo, consigo identificar comportamentos padrões de reação a temática. Primeiro o público silencia. Depois surgem as reações estanques, tais como: riso desconcertado; desvio do olhar; piadas despropositadas; e por fim, aprovação ou reprovação. Não aprendemos a falar sobre sexo, menos ainda sobre sexualidade. Talvez por isso se confunda tanto as coisas. É difícil sair do modelo reducionista do pênis/vagina, para adentrar no campo do desejo e das descobertas do prazer, que pertencem ao campo da subjetividade. Neste sentido, aprendemos a falar de ejaculação, mas não de gozo, ou orgasmos. Falamos de fuder, mais não de relações sexuais, que se estabelecem na troca de prazer mútuo, aja ejaculação ou não. Simplificamos ou ridicularizamos tudo aquilo que não entendemos ou dominamos. E agimos por puro mecanismo de defesa. A safadeza e o escracho muitas vezes substituem o conhecimento e a racionalização. Penso que se o desenvolvimento da sexualidade é fundamental ao desenvolvimento da própria identidade e caráter, somos ainda seres subdesenvolvidos ou não desenvolvidos em plenitude. Não podemos nos conhecer em verdade se desconhecemos nossos desejos. Não usufruímos da plenitude do prazer sexual por que renegamos partes do corpo em nome de uma cultura moral. De uma cultura falocêntrica e sexista. E neste sentido é sempre bom lembrar que o maior instrumento sexual que dispomos não é o pênis, mas a mente. É com ela que atingimos o gozo. É ela quem sensibiliza o corpo. É nela, e por meio dela, que se estabelece e se constrói as identidades. A mente não entende de pênis e vagina, mas de plenitude e possibilidades de desenvolvimento, livre de regras, livre de normas, porque se guia pelo “princípio do prazer” tão falado por Freud. Assim, quem não conhece a mente não conhece a si mesmo, logo não pode conhecer o próximo. Por esse viés, automaticamente não se pode julgar o que não se conhece, pois que sempre corremos o risco de nos tornar tolos e/ou ingênuos.

João Nery é mais que o primeiro transexual masculino [trans-homem] cirurgiado no Brasil, mas um marco para nossa história da sexualidade, cotidianamente construída e reconstruída para possibilitar os avanços humanos. Seu livro torna-se acima de tudo um exemplo de como a história deve-se ajustar ao homem, e não apenas o contrário. Ele subverte ao reescrever a história, que não é só sua, mas de milhares de pessoas que sofrem pela intolerância da cultura moral. Cultura construída por nós mesmos, para depois nos tornarmos vitimas. Vítimas de nós mesmos. “Viagem Solitária” torna-se então um excelente instrumento para reflexão, para se reconstruir concepções, ideologia e posicionamentos mais dignos e humanos diante do outro, e de si próprio. Assim, em total consonância com grande mestre Antônio Houaiss, “leiam-no e humanizem-se”.

Referência: Nery, João W. Viagem Solitária: memórias de um transexual 30 anos depois. São Paulo, Leya, 2011.

segunda-feira, 19 de março de 2012

A ESCANDALOSA INDECÊNCIA BRASILEIRA



QUEM SOMOS NÓS: CORRUPTOS OU CORRUPTÍVEIS?

Lembro que quando era criança encontrei um cavalinho verde de brinquedo. Era uma pequena peça, sem grande importância ou valor, mas que me fascinava. Dentro da concepção de que “achado não é roubado” levei o brinquedo comigo e brinquei durante todo o dia. À noite mostrei minha nova aquisição a meu pai, que logo indagou sobre sua origem. Contei que o tinha encontrado perto de casa e que agora me pertencia. Meu pai, sem pestanejar disse-me que voltasse ao local no dia seguinte e o coloca-se exatamente onde o tinha encontrado. Não houve espaços para negociação. Nossa educação era assim. Se não comprou, ou ainda, se não ganhou de alguém por algum mérito, não poderia ficar com algo que não lhe pertencia. Lógico que naquele momento me revoltei com a decisão, principalmente porque meus argumentos não foram considerados. Chorei a noite inteira e me arrependi de ter lhe contado sobre o fato. Se houvesse omitido não teria que devolver e poderia manter o cavalinho comigo. Mas também tínhamos aprendido que não devíamos esconder nada dos pais. Era uma regra que nos obrigava o respeito devido. Assim, voltei ao local e com muita dor e dúvidas coloquei o brinquedo sobre o montinho de matos. Esperei um bom tempo até que o desconhecido dono o encontrasse. Durante esse tempo imaginei mil e uma possibilidades de burlar a ordem, mas não conseguia encontrar uma que inviabilizasse o controle fiscalizador de meu pai. A noite teria que comprovar o cumprimento da determinação. Ainda fui advertido que se estivesse mentindo sofreia as consequencias punitivas.

Sem dúvida alguma nossa educação foi rígida. Meu desagravo foi tão grande que até hoje guardo na memória tal fato, que por muito tempo considerei como de extrema violência. Não pelo fato de ter que devolver o brinquedo, mas por ter sido taxado como irresponsável e inconsequente. Não havia cometido crime ou infração alguma. Apenas peguei o que encontrei perdido ou esquecido. Não entendi porque teria que devolver algo que não tinha dono, ou pelo menos não conhecia. Também achava que outro menino iria encontrar o cavalinho verde e o levaria para casa sem precisar devolver. Meu pai, em sua sábia filosofia de vida me explicou que não podia responder pela educação dos filhos alheios, mas que era sua responsabilidade nos educar como homens de bem. Também me fez ver que se eu estava feliz por tê-lo encontrado, provavelmente, alguém deveria estar muito triste por tê-lo perdido. E assim, encerramos o assunto. Hoje, sem sombras de dúvidas, agradeço pela educação recebida. Imagino o quanto foi difícil para meus pais cunhar em seus dez filhos os princípios morais e éticos que respaldam a honestidade, hombridade e caráter. Graças a eles, essas são características que aprendi a cultivar e exercitar durante toda a vida.

Tais lembranças do passado foram motivadas pela reportagem do “Fantástico”, sobre a corrupção brasileira, exibido pela Rede Globo no último domingo, 18. Não posso negar minha total indignação diante de tanta falta de respeito, justificada por uma “ética de mercado” que depõe contra os mais valorosos princípios morais de um povo. Empresas de fachada, negociatas escandalosas, licitações fraudulentas, pregões de cartas marcadas, falsificação de documentação pública e desvio de dinheiro. Era o retrato de um Brasil corrupto, controlado por uma rede de perigosos falsários. Pessoas sem escrúpulos, capazes de roubar o dinheiro público. Capazes de rir e debochar do povo. Pessoas que naturalizaram a roubalheira e criaram regras próprias para deturpar o mercado. Eram ladrões dando aula sobre suas estratégias fraudulentas. Criminosos se vangloriando de suas utópicas espertezas. Homens e mulheres maquiavélicos e sem caráter ou escrúpulos. Seres desprezíveis. Pessoas virulentas que adoecem o país e apodrecem a sociedade. São formadores de quadrilhas de ladrões que repassam suas experiências através de novas gerações de corruptos.

Que exemplos de vida esses homens e mulheres, hipocritamente risonhos, repassam a seus filhos? Como será forjado o caráter dos mesmos? Como dorme esses indignos? Será que descansam a cabeça e sonham com os milhões roubados? Será que por algum momento imaginam as consequencias de seus atos? Será que se sentem responsáveis pela morte de milhares de pessoas que não acessam serviços públicos de qualidade? Será que, em algum momento, temem pagar pelos crimes cometidos, ou se sentem confortáveis em suas seguranças possibilitadas pelo sistema de impunidades que se alastra pelo país? Não creio que sofram os remorsos de seus atos. Não creio que sofram a insônia pelo sofrimento alheio. Muito menos padeçam de culpa por crimes que classificam como banais. Pelo contrário, devem festejar cada nova artimanha e roubalheira. São pessoas que se desafiam a novas estratégias e aperfeiçoamento das ilicitudes. Pessoas que se esmeram na ilegalidade. Que se vangloriam pela astúcia da violação. Animais que brindam ao ato ou efeito de corromper, a decomposição e putrefação das relações sociais e políticas. Insolentemente pregam a devassidão, a depravação e a perversão humana. Impunemente subornam e peitam a legalidade. Cospem e desprezam a lei. Negam a civilidade e condena milhares de miseráveis a morte. São os corruptos de carteirinhas.

De quem a senhora louca e ares débeis estava realmente rindo? Do povo ou dela mesma? Quem é mais vítima nesta situação? Quem sofre as consequencias imediatas na ponta, ou ela mesma que se mostra presa fácil de um sistema corrupto e corruptor que seleciona pessoas de fraco caráter e comprometida educação de base? Qual o sentimento de realização profissional de uma senhora como aquela? Como se fortalece a auto-estima de uma pessoa que se sabe contraventora. Como dizem os sábios, “o risinho é o que mais incomoda”. É a mais pura imagem da impunidade. Apesar de combater a violência, confesso que meu desejo de justiça maior não é a cadeia, mas uma bofetada no meio da boca. Uma porrada que lhe quebrasse os dentes e a fizesse estremecer diante do espelho. Não que os outros não mercam o mesmo, mas ela é o sinônimo do deboche e do desrespeito. Sua vilania beira o esdrúxulo, o inverossímil. Seu descaramento é simplesmente inacreditável. Não acredito em ressocialização para pessoas com personalidades tão comprometidas.

A corrupção é um fenômeno social que se consolida pelo binarismo corruptor/corruptível. Neste sentido, quem tem mais culpa? Quem corrompe ou quem se deixa corromper? Quem padece mais da falta de caráter e de vergonha? Creio ainda, que a corrupção nada mais do que o reflexo de cultura da vantagem. De uma sociedade que aprendeu a regra do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, ou seja, a lei é um ótimo instrumento para ser aplicado aos outros. O corrupto rir da lei porque se acha acima dela. Se acha mais esperto e superior aos simples mortais. O espertalhão só existe e sobrevive porque existe o alesado e inocente. Mas no Brasil, parece que esperteza e inocência são ambas comprometidas. Todos buscam por vantagens e regalias. Algo só é muito ruim quando não me trás vantagens. Se trouxer, fica tudo resolvido. E assim, acredita-se esperto mediante os demais inocentes. O ciclo se repete em todas as categorias e classes sociais. Até que nos sentimos enganados em nossos ganhos e/ou lucros. É uma cultura de cobra engolindo cobra. E neste sentido, vale a máxima de sempre uma jibóia será engolida por uma anaconda. Quando nos acharmos muito espertos, é sempre bom pensar que alguém mais vivido e menos escrupuloso poderá sempre nos passar a perna. Enquanto não mudarmos a cultura respaldada na “Lei do Gerson – aquele que gosta de levar vantagem em tudo” nos manteremos no lamaçal da corrupção e da deslealdade.

O mais impressionante é certeza de que retrato da corrupção mostrado no “Fantástico” se efetiva no cotidiano brasileiro. Somos corruptos naturalizados. Nos vendemos a preço de banana. Nos acostumamos a negociar votos, vagas em estacionamentos, comprar atendimento em serviços públicos, comprar vagas de empregos, passar calotes em amigos, enganar e ludibriar leis de trânsito. Nos acostumamos aos favorecimentos e favores alheios. Mesmos daqueles que elegemos para nos representar legalmente. Naturalizamos e incorporamos a idéia de que quem tem dinheiro tem o poder, e quem tem o poder, pode tudo. Idolatramos, de certo modo, a vilanice. Não almejamos destituir o vilão, mas ocupar seu lugar para fazer tudo exatamente igual. Nossa revolta canaliza-se a uma espécie de vingança e de revanche. Tendemos ao mais fácil. Não nos arriscamos às mudanças e tememos represálias ao tentá-lo. Somos corruptíveis a ponto de desestimular os mais corajosos e afoitos. Juramos apoio, porém preferimos o anonimato e a reserva. Nos acostumamos a eleger os bois de piranha. Até encorajamos alguns, mas mantemos um pé sempre atrás para a necessidade de abandonar o barco na primeira ameaça. Somo a cultura do “salve-se quem puder e fodam-se todos”, porque o que eu quero mesmo é me dar bem. Desenvolvemos assim uma tendência de caráter ao desvio e ensinamos ás próximas gerações a covardia e a tirania por tabela. Educamos nossos filhos para a esperteza. E esperto é quem ganha fácil, sem grandes esforços. A moral se torna relativa, onde tudo é situacional. Formamos pessoas de caráter flexível e fluido demais. Capazes de se adequar a qualquer situação, desde que gratificante e rendosa. A sociedade brasileira tornou-se uma grande fábrica de hipocrisia e mentiras.

Questionamos posturas transgressoras e desonestas, mas no fundo questionamos se não faríamos o mesmo em situações semelhantes. Assim, como dizia meus pais, “a oportunidade faz o ladrão”. Nos tornamos ladrões de nós mesmos ao não entendermos que quando estimulamos, ou simplesmente nos tornamos alheios, a corrupção nos tornamos os próprios alvos dos roubos. Assinamos um atestado de idiotas quando não entendemos que a “sofrível senhora de sorriso débil” e toda aquela quadrilha de larápios do dinheiro público riram e riem de nós mesmos. Quando não entendemos que é o nosso próprio dinheiro que escoa pela vala da corrupção. Quando não compreendemos que o dinheiro público se traduz em horas e horas da nossa força de trabalho. Quando não calculamos que uma pequena propina de 10% sobre uma licitação pública de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) significa 160 salários mínimos, no valor atual de R$ 625,00. Salário mínimo pelo qual a maioria dos brasileiros vende 240 horas mensais trabalhadas. Ou seja, o que um ladrão como esses, que rouba os cofres públicos, leva em uma simples negociata o que corresponde a mais de 13 anos de trabalho duro e honesto de um cidadão comum. E como o corrupto não “passa recibo”, torna-se difícil calcular em valores preciso os prejuízos causados pela corrupção consolidada. Porém estudos e pesquisa estimam que mundialmente a corrupção usurpe dos cofres públicos mundiais mais de um R$ 1.000.000.000.000,00 (um trilhão de reais). Só no Brasil, a falcatrua ultrapassa R$ 85.000.000.000,00 (oitenta e cinco bilhões de reais); valor que corresponderia à construção de mais de 900 mil casas populares. É preciso entender que no cenário mundial, o Brasil aparece como 73º lugar no ranking da transparência sobre o uso do dinheiro público. É preciso entender que somos os responsáveis diretos por esse tipo de impunidade. Até por que, esta, só se consolida e fortalece com nossa omissão e falta de compromisso político.

O que vimos no último domingo apresenta-se como uma chamada à população, mais que isso, uma convocação ao combate das quadrilhas organizadas que controlam e manipulam o poder público, que se mantém com o dinheiro de nossos impostos. Criminosos que criam as leis de um mercado fraudulento que se respalda na “troca de favores”. Assaltantes de colarinhos e decotes que postulam a lei do “eu protejo o meu contratante e meu contratante me protege”. Profissionais do crime organizado que deturpam e mancham a “ética de mercado” e através de ameaças diretas ditam as cartas, seduzem gestores públicos corruptíveis e amedronta os de caráter consolidado. O jornalismo responsável cumpre assim com seu papel. Algumas providências do Governo Federal, em nome da presidenta Dilma Rousseff, sinalizam averiguação em todas as contas de hospitais universitários onde as empresas apontadas atuam. Ministros e defensores públicos solicitam que o dinheiro de transações fraudulentas envolvendo as tais empresas sejam devolvidos aos cofres públicos. Parlamentares se alvoroçam numa possível CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito, da Saúde. E você? Vai levantar da cadeira e exigir explicações sobre aplicação da sua força de trabalho, ou vai simplesmente, mais uma vez, lamentar e eleger heróis que lutem pelo bem comum? Se sua opção for à primeira, comece agora. Nem que seja contando de sua insatisfação para alguém do lado. Vamos criar e ordenar um grito de insatisfação! Mas, se preferir optar pela segunda, melhor ter cuidado, pois os heróis são personagens de ficção e só habitam as telas de cinema. Já a corrupção no Brasil é real. É sobre o teu Real que estamos falando.

sábado, 17 de março de 2012

BARBIES, MARICONAS, BOYS E CAFUÇÚS








MASCULINIDADES ESPELHADAS NA ACADEMIA DE GISNÁTICA

Olho-me no espelho da sala e logo penso: o que é um corpo? Um conjunto de membros e órgãos forma o corpo humano. A resposta, biologicamente satisfatória, não preenche a lacuna reflexiva. Um corpo não pode ser apenas um conjunto de massa e ossos que nos dá forma. É mais que isso, pois do contrário seriamos apenas matéria. Mas penso mais num sentido de corporeidade, numa referencia direta as qualidades do corpo. Sobre a existência de uma razão para que estes assumam formas e contornos que nos diferenciam e homogeniza ao mesmo tempo. Na luta pela individualização, por exemplo, lutamos para nos tornar únicos ao mesmo tempo em que ansiamos a igualdade. Esse antagonismo existencial nos faz recorrer ao desejo das categorias sociais. Sentimos-nos mais confortáveis quando pertencentes a um grupo. Então o corpo transforma-se em instrumento de pertencimento, não só no campo do individual, mas também do coletivo. Como toda categoria ou grupo social impõe regras e parâmetros, o corpo torna-se escravo da norma. O transformamos não por um agrado pessoal, mas por motivos sociais e mercadológicos. Ou seja, absorvemos modismos e introjetamos conceitos ditados pelo mercado capitalista. O corpo torna-se então objeto de consumo. Consome ao mesmo tempo em que será consumido para tornar-se objeto de desejo, nosso e do outro.

Assim, quanto vale um corpo? Atualmente penso que a valoração parece depender mais do outro do que de si. É o outro, e não nós, que estabelece os parâmetros de valia que se dará dentro de uma visão mercadológica. Perco-me em novos devaneios e mais uma vez me ponho a refletir: o mercado constrói os corpos, ou construímos o mercado para, a partir daí construir também os corpos? Economicamente mercado se configura como “conjunto de atividades de compra e venda de determinado bem ou serviço”. Logo, relaciona-se diretamente com comercio, que se estabelece a partir da demanda por determinado bem ou serviço. O mercado então constrói o corpo comercial, ou seja, estabelece os parâmetros que transformam o corpo em bem passível de comercialização. Neste aspecto, o corpo perde o caráter privado e assume um caráter público. Não pertence mais a si mesmo, mas também ao outro. Seguindo Lacan, confirmaríamos o postulado de que o olhar do outro nos constitui enquanto sujeitos. O olhar do outro nos transformará, ou não, em sujeitos desejados. Mas eis que também somos sujeitos desejantes. E este desejo se traduz em cobiça ao corpo do outro, forma pela qual atingimos a semelhança. Então o que realmente desejamos? O corpo carne que excita e desperta prazer sexual, ou o corpo matéria que se traduz em aparência de perfeição estabelecida pelo viés mercadológico? Mas o prazer sexual também não é comerciável? Logo, o corpo torna-se objetificado para se transformar em bem de consumo. Assim, não se deseja apenas o corpo aparência, mais também o corpo potência. Cobiça-se a potencia sexual do outro, revelada através da aparência física. Esta potência se traduzirá em virilidade. Virilidade que se torna a razão para a transformação corporal e desemboca na noção de corporeidade, ao se estabelecer qualidades ao corpo.

Penso então que, se nós construímos o mercado, consequentemente, construímos os corpos. Mas quem serve a quem? Se nessa confusão toda, o mercado cumpre o papel de moldar os corpos, estes por sua vez cumprem o papel de movimentar o mercado. Logo, corpo e mercado são indissociáveis. Um não existe sem o outro. Seguindo a mesma lógica, o mercado cria as concepções de sedução e desejo. Então, o desejo pode ser entendido como resultante da construção social. Desejamos o que nos é ensinado a desejar. Mas o que realmente se deseja? O corpo ou a carne, que é parte do corpo? Digamos então, se é que é possível uma divisão sensata, que corpo é essência e carne aparência. A primeira pode ser entendida como “aquilo que constitui a natureza das coisas”, ou seja, é substância. A essência constitui o cerne de um ser, assumindo um significado especial de natureza. Pode ser entendida ainda como espírito ou como existência. Por sua vez, aparência pode ser classificada como “aquilo que se mostra à primeira vista”. Refere-se à exteriorização, ao aspecto de um ser ou de uma coisa. Aquilo que parece realidade sem o ser. Neste sentido, aparência pode ser entendida como ilusão. Filosoficamente, simulação da realidade ou manifestação, total ou parcial, de uma realidade. Cantaria a Elis Regina, que “as aparências enganam aos que odeiam e aos que amam”. Na mesma lógica, a cultura popular postula que “a primeira impressão é a que fica”. Logo, o corpo que atrai é o aparente e não o essencial. Pelo menos num primeiro momento é a aparência e não a essência que provoca desejo e excitação.

Numa análise aproximativa, o corpo que agrada aos olhos reflete-se no espelho. Este dita à regra, pois nos mostra imperfeições, que muitas vezes passam imperceptíveis ao outro, e que se tornam possíveis de correção. E espelho não é igual em todos os lugares. Pelo contrário. O nosso é sempre mais sincero e pontual. Parece nos conhecer em detalhes, em aparência e essência. Talvez porque o privado nos dispa das censuras. A crueldade do espelho privado não esconde ou simula defeitos. Mas ao contrário, se revela taxativo e implacável. Já o espelho público é mentiroso e fingido, talvez porque o público nos revela em parte. Apenas em aparência. E nada é melhor em fingimento do que espelho de academia de ginástica. É neste espaço, que é público, que os corpos semi se mostram, mas não se revelam. Não é o corpo essência, mas o corpo carne que se reflete. E nessa histeria coletiva despreza-se a substância em nome da massa corpórea. Os exercícios físicos tornaram-se verdadeiros exercícios narcísicos. O espelho público desperta o desejo ao corpo alheio, ou seja, desperta o desejo pela aparência alheia. O outro se torna referencial de perfeição. E é na academia de ginástica que as categorias de pertencimento se evidenciam, ressaltando as diferenças de gênero.

Parto então para uma reflexão específica, e que muito me interessa - as masculinidades. Neste caso, poderia mesmo me referir às masculinidades espelhadas ou aparentes. Assim, na academia que frequento há certo tempo consigo distinguir claramente algumas categorias identitárias, que aqui classificarei com: as “Barbies”, as “Mariconas”, os “Boys” e os “Cafuçús”. Salientamos que nesta salada toda, os artigos definidos nem sempre revelarão identidades de gênero, mas, muitas vezes, sinalizarão orientações sexuais. Desta forma, para melhor compreensão tentarei um descritivo resumido de cada categoria. (01) O primeiro grupo, ou categoria, é representado por homens homossexuais de musculaturas quase simétricas. O corpo busca exibir, ou será transformado para expor uma exuberância milimetricamente calculada. O conjunto das formas segue uma regra da harmonia entre cabeça, tórax e membros. Faz referência direta a perfeição das formas da boneca Barbie. (02) A categoria Mariconas será composta por homens homossexuais idosos que parecem lutar contra a lei da gravidade. Alguns se esmeram na utópica possibilidade de atingirem o estilo Barbie, mas no máximo conseguem uma aparência aproximada da “Susy”. Em casos extremos a aparência conseguida poderá assemelhar-se com a da boneca “Wanderléia”. (03) A categoria Boys, inclui homens de orientação tanto heterossexual quanto homossexual, que revelam uma aparência física e muscular mais próxima do estereótipo do macho. Assumem a forma de cuscuzeira, alargados no tórax, e com cintura e pernas finas. Por fim, (04) a categoria Cafuçús, incluirá homens de orientação hétero e homossexual, que buscam por uma imagem não necessariamente musculosa, mas que exprima uma aparência quase que espontaneamente desleixada.

O que parece diferenciar os Boys dos Cafuçús é a estética corporal. Enquanto os primeiros primam por uma aparência “mais higiênica”, considerando os parâmetros atuais, que incluem depilação do tórax, axilas e pernas, incluindo em alguns casos, sobrancelhas bem feitas e afinadas; os cafuçús assumem uma imagem mais retrô, com peitos, axilas e pernas cabeludas. Assim, estas duas categorias podem ser subdivididas em metrossexuais e retrossexuais. Ambas aludem às dimensões de tempo e encontram-se inseridas no contexto cultural da ocidentalidade. Os primeiros usam tatuagens, que muitas vezes funcionam como estratégias para impor e justificar depilações em partes do corpo. Exagera em adereços, que incluem, via de regras, correntes metálicas no pescoço, alargadores e pequenos brincos nas orelhas, e os cabelos seguem sempre os modelos da moda atual, hoje com ênfase nos moicanos. De modo geral os Boys se constituem como opostos das Barbies, que também usam adornos mais delicados e discretos como pequenos brincos e argolas em uma das orelhas e anéis. Alguns podem ainda utilizar pulseiras coloridas ou acromáticas, confeccionadas em materiais mais rústicos, nos tornozelos. Porém, estes mesmos apetrechos podem ser utilizados pelos Cafuçús e Boys, e até muitas vezes, pelo grupo das Mariconas.

Independentemente das categorias de pertencimento, todos se relacionam com o espelho público, e provavelmente com o privado. Neste quesito, as Barbies e os Boys lideram a concorrência. Observam-se constante e repetidamente durante a realização dos exercícios físicos. Normalmente se exibem para si mesmo, contudo sempre verificam se estão sendo observados. Buscam o olhar do outro para confirmar ou aprovar a aparência construída. Alguns levantam a camisa, em movimentos aparentemente despretensiosos, momentos no qual aproveitam para examinar a barriga estilo tanquinho. Os movimentos também assumem a lateralidade durante o exame dos braços, peitoral e costas. Especificamente no caso das Barbies, o movimento rotacional serve como pretexto para análise e avaliação das nádegas, normalmente adornadas por shorts justos ou apertados. As coxas representam um divisor de águas entre as duas categorias. Supervalorizadas pelas Barbies, não recebem os cuidados merecidos pelos Boys, o que termina por lhes empregar um aspecto de atrofia muscular muito próximo ao provocado pela paralisia infantil. A indumentária torna-se importante para a construção e diferenciação das performances de gênero. Enquanto as camisetas dos Boys possuem mangas, as das Barbies valorizam alças que salientam decotes. Mas, nos dois casos, as peças serão sempre justas, servindo à revelação de muques e peitorais, às vezes moldados por silicone. São o que se poderia chamar de corpos bombados. Por sua vez, apesar de mais discretas no quesito vestimenta, as Mariconas em alguns casos, também se utilizam das roupas justas para formar quase uma segunda pele. Já os Cafuçús parecem optar por bermudas e camisas mais largas.


Dentro desse contexto de corporeidades possíveis e construídas, os corpos serão adequados as categorias para reafirmar as identidades de gênero. As Barbies transformam-se em “delicadas bonecas”, assumindo durante os exercícios físicos movimentos próximos as das bailarinas clássicas. Os boys, por sua vez, assumem o formato de pião, brinquedo grosso na parte superior e afinado em baixo, e desenvolvem durante os exercícios físicos movimentos mais bruscos, próximos aos lutadores de vale tudo. Constroem-se masculinidades dispares, pautadas em diferentes modelos de virilidades. No entanto, o foco da masculinidade abandona o pênis para se centrar em outras partes do corpo. As Barbies, em sua maioria, valorizam as nádegas, enquanto que os Boys, braços e peitoral. As Barbies se olham no espelho de cima a baixo, de frente e verso. Os Boys olham-se de cima ao meio. Mas precisamente do pescoço à cintura, e a mesma medida focal seve de referencia a análise para o verso do corpo. No que se referem as demais categorias, verifica-se que as Mariconas tendem a omitir partes do corpo que parecem desaprovar. Olham-se focadas em partes que valorizam, podendo variar entre pernas, nádegas ou braços, mas nunca o todo. Os adornos e indumentárias, como perucas, bonés, óculos escuros ou de grau encobrem imperfeições ditadas pelo espelho privado, na busca de se atingir uma avaliação mais amenizadas pelo espelho público. Enquanto isso, os Cafuçús tendem a revelar certa indiferença aparente diante da reflexão da própria imagem. Observam-se no geral, e vias de regras, se contentam com o que vêem.

Neste sentido, as academias de ginástica se consolidam enquanto segmento do mercado corpóreo. São verdadeiras fábricas de construção e montagem de corpos e identidades. Trabalha-se a aparência e não a essência, mesmo justificando suas existências numa perspectiva mais ampla de bem-estar físico e mental. Afinal de contas, é na perspectiva do corpo são e mente sã, que se abrem a fabricação das possíveis masculinidades, ainda que sejam apenas masculinidades aparentes e/ou espelhadas. Vendem ilusões reflexivas. Neste sentido, os espelhos públicos das academias iludem por ampliar massas corpóreas, que inevitavelmente se desconstroem no espelho privado. É como se saíssemos inchados da academia e fossemos murchando durante o retorno a casa. O resultado é sempre menor diante do espelho que nos conhece e reconhece. Espelho que nos impõe uma visão mais completa, exigindo a reflexão da essência, da substancia que nos forma enquanto natureza genuína. Se a essência se mostra adequada e congruente a aparência, a corporeidade se completa. Caso contrário, nega-se a profundidade reflexiva do espelho privado e observa-se apenas em superfície, que se configura enquanto campo e espaço da aparência que nunca se faz satisfatória em sua plenitude.

Talvez essa crise com o espelho privado, justifique a compra ilusória oferecida pelo espelho público. Em alguns anos, vi corpos harmoniosamente bonitos serem transformados em amontoados de músculos disformes. É como se existisse um profundo descontentamento com o que se compra e vende. Sucessivamente o espelho reprova a aparência atingida, o que exige sacrifícios físicos e compromete a dimensão emocional. São “Iincríveis Hulks” fragilizados. São Narcisos que se fundam nas próprias imagens, pois que as masculinidades aparentes não se sustentam. Porque ameaçam as identidades. Assim, chega-se a grande questão: quanto vale um corpo? Talvez a melhor resposta se dê no plágio do mercado midiático. Afinal de contas, “tem coisas que não tem preço, para o resto...” tem sempre um cartão de crédito. Mas tal como este, que se traduz em valoração virtual, apenas simbologia do dinheiro moeda, não é concreto; masculinidades e virilidades espelhadas nada significam se não em harmonia com a essência.

Diante do espelho da sala me questiono: o que é um corpo?





quarta-feira, 14 de março de 2012

SEMLUVAS - 20.200 ACESSOS EM DOIS ANOS E MEIO

INDO CADA VEZ MAIS LONGE.

Iniciei esse blog em 2009. Para ser mais preciso, em 06 de outubro de 2009. Na época, alguns motivos contribuíram para que me arriscasse a revelar fatos de minha vida e pontos de vista acerca de assuntos que me despertavam e despertam interesse. Confesso que no início tudo não passava de uma grande brincadeira. Algo que poderia fazer de forma despretensiosa, nas horas vagas. Também serviria como espaço para registrar pensamentos, devaneios ou loucuras que nos acometem de vez em quando. Uma espécie de diário, que inclusive me serve como referencial para avaliar meus processos de mudanças. O nome surgiu de uma conversa com um grupo de amigos. Como sempre fui tido como um sujeito bastante crítico e, de certa forma direto, sem muitos rodeios sobre o que penso, uma amiga sugeriu algo como “tapas com luvas de pelica”. Achei interessante a idéia, mas como polimento exacerbado nunca foi meu forte preferi tirar a pelica. Não que me considere uma pessoa grosseira, mal educada ou invasiva, muito menos um casca grossa. Muito pelo contrário, considero-me uma pessoa sensível e até de certo modo, delicado. Principalmente no trato pessoal e profissional. Sou adepto da etiqueta social e acredito que tudo pode ser dito, desde que de forma apropriada. Como diria um grande amigo meu: “quem não gosta de mim deve ter algum problema”. Brincadeiras a parte, neste sentido não sou melhor e nem pior do que ninguém, o que me leva a classificação de pessoa comum. Mas não no sentido da trivialidade ou banalidade, mas sim, num sentido mais existencialista, do tipo: “penso, logo existo!” E logicamente, não será preciso dizer que não gosto de pensar como a maioria. Mas gosto sim, de refletir sobre o que está por trás de cada palavra dita, de cada escrito redigido, de cada regra estabelecida, de cada [pré]conceito institucionalizado culturalmente. Acho que na verdade herdei tal característica de um pai que não era lá muito fácil. Fui levado a ver as coisas e fatos com meus próprios olhos e assim desenvolver senso crítico.

Como queria algo mais parecido comigo. Algo que de forma direta evidenciasse meu modo de ser e estar no mundo, e de certa forma de agir e interagir no ambiente que me cerca, preferi também abrir mão das luvas. Assim, surgiu o “semluvas”. Para facilitar as coisas iniciei uma breve auto-apresentação salientando minha acidez, que em muitas situações tende a se mesclar com uma suavidade que até me espanta. Apesar disso alguns dizem que sou taxativo e acham alguns textos pesados, motivo pelo qual acabo me expondo “desnecessariamente”. Sei que algumas vezes sou tomado pelo ímpeto da emoção, mas “sem luvas” não daria para ser diferente, pois não seria eu. É meu jeito, meu estilo, minha forma própria de falar e de me expressar. Lembro que uma das primeiras análises que fiz sobre o natal chegou a causar espanto, e até classificada como agressiva. O mesmo aconteceu com outras postagens. Às vezes severas, às vezes amenas, as críticas têm me servido como parâmetro de avaliação. Como as opiniões nunca são unânimes, o que considero, por demais, positivo, me fazem crer que consigo atingir meus objetivos causando sensações diferentes. Na verdade, alegro-me com essa disparidade emocional dos leitores. Fora isso não nego a satisfação em saber que uma idéia despretensiosa tomou proporções nunca imaginadas, chegando ao auge de 2.000 acessos/mês. Logicamente isso trás um sentimento de aceitação, o que reforça o sentido de responsabilidade. Afinal, são pessoas que não conheço e que, em sua maioria, pouco se identificam. São pessoas de todos os cantos e recantos, de norte a sul do Brasil. Inclusive de lugares que nunca nem ouvi falar, ou tenho uma breve noção de onde se localiza geograficamente. Neste aspecto, a internet revela uma força poderosa e surpreendente.

Outro aspecto interessante é não saber o perfil exato destes leitores. Não faço a mínima idéia da faixa etária, raça/etnia ou gênero, por exemplo. Isso me deixa bastante a vontade, uma vez que nunca pretendi atingir segmentos específicos. Também me deixa tranquilo quanto ao que elejo escrever. Ou seja, o anonimato do público me desobriga e escolher ou selecionar temáticas. Os assuntos surgem na medida do cotidiano de um centro urbano. É isso e apenas isso. Por outro lado, as estatísticas evidenciam em certa medida, um possível recorte socioeconômico, partindo do princípio de que a internet ainda não se constitui como um bem comum e de acesso irrestrito. Assim, supõe-se que a maioria dos leitores mensais integra a classe média, com bom nível educacional. Dos 20.200 acessos registrados em trinta meses verifica-se uma média mensal de 670 acessos mensais [considerando que o contador automático só foi colocado um ano após a veiculação do blog], e que destes, 15% são de acesso estrangeiro. São norte-americanos, canadenses, espanhóis, portugueses, ingleses, italianos, alemães, franceses, japoneses, suíços, israelenses, africanos e até russos. Dessa forma, gosto de imaginar que consigo levar aos brasileiros que estão longe um pouco das notícias e atualidades de nosso país, principalmente de uma cidade incrustada no nordeste. Penso também que o grande interesse econômico sobre o país vem contribuindo de forma decisiva para que o que poderia chamar de novo “redescobrimento do Brasil”. Acima de tudo, gosto de saber que temas relevantes como “população em situação de rua” e “exploração sexual de crianças e adolescentes”, mazelas sociais que envergonham a capital pernambucana possam correr o mundo como forma de denuncia. Cumpro assim com parte de minhas responsabilidades enquanto cidadão e militante dos direitos humanos. Gosto mais ainda de pensar que aos poucos vou revelando retratos do Recife. Uma espécie de quebra-cabeças que futuramente servirá para contar parte de sua história. São na verdade fragmentos da vida cotidiana que remontam um tempo. O tempo atual onde me revelo como agente ativo, contando e fazendo também a história. História que não é só minha, mas de um povo rico em tantas e quantas histórias.

Relendo hoje os escritos do passado, me divirto em recobrar os motivos e inspirações. Principalmente as motivações para determinadas colocações, indagações e afirmativas. Lógico que em determinadas situações consigo tecer autocríticas que me fazem pensar em alterações, ajustes, correções ou complementos. Porém por acreditar que histórias contadas consolidam fatos e impressões verdadeiras, e até viscerais, me atenho apenas a reler, reavaliar e claro, rir bastante com algumas besteiras e melodramas que margeiam passagens. Acredito acima de tudo que a escrita é única e por isso fenomenológica. Cada passagem ou registro revela e salienta uma emoção que não volta. Foi o registro da história, ou parte dela, e por isso não cabem retoques. Evita-se assim a alteração de um curso, bem como a depreciação de conteúdos. Uma fez escrita torna-se registro fidedigno. Não é apenas a história do Recife que é contada, mas a minha própria vida que se revela aos poucos. São lembranças e memórias entrecortadas pelas dimensões do tempo, onde passado, presente, e até futuro, se misturam para me contar de mim mesmo. Uma espécie de livro, no melhor estilo autobiografia, que aos poucos vai montando e remontando uma vida. Vida que não se revela completamente devido a implicações éticas, políticas e sociais. Que cruza caminhos e pessoas que precisam e devem ser mantidas em anonimato. História que talvez um dia se revele em plenitude, sem necessariamente expor segredos, desejos e pretensões inconfessáveis e alheias. História que não finda agora, que vai se construindo aos poucos, com o passar dos tempos. Dos muitos tempos que pretendo viver.

Aproveito para me desculpar quanto aos erros gramaticais, ortográficos, de concordância, e tantos outros de digitação. É um registro de minha imperfeição e do quanto sou comum. Contudo, é um registro que também depõe contra mim mesmo devido aos títulos que carrego. Como sou elétrico, acredito que penso numa velocidade diferente da motricidade. Fora isso, confesso não gostar de ler o que escrevi de imediato para não ceder a tentação de alterar e assim me mostrar mais polido do que realmente sou. A pressa é sempre inimiga da perfeição, já dizia minha mãe. Mas essa não é, e nunca será uma característica que também almeje. Além do mais, penso que serve como demonstração da complexidade ortográfica da nossa língua, ou mesmo para revelar o quanto estamos longe de um processo educacional de base com qualidade. Independente de qualquer coisa ou erro, esse sou eu, sem as luvas de pelica. “Espetácio” como chamam alguns, ou adocicado e emotivo como classificam tantos outros. Acima de tudo, um sujeito que não tem a mínima intenção de ferir ou magoar ninguém. Mas que ver na escrita uma forma digna de expressão. Forma pela qual tenta se manter digno e expressivo.

A todos, muito obrigado por insistirem em me conhecer, mesmo sem luvas!

segunda-feira, 12 de março de 2012

RECIFE: OS [DES]ENCANTOS DE SEUS 475 ANOS



 
LEVANTE PARA ACORDAR A LUA! LEVANTE PARA SACUDIR AS RUAS!

Recife amanheceu mais velha! Não mais bela ou menos suja, simplesmente velha. Uma senhora de 475 anos esquecida entre poças e entulhos. Também amanheceu molhada. Suada de esgotos e engodos. E de céus cinzentos caíram fios de lágrimas que encharcaram suas ruas, mas que não lavaram sua alma. Talvez por isso, envergonhada, a chuva se escondeu apressada em galerias entupidas e estúpidas. Ontem até a lua revelava reservas. Seria presságio? Agouro? Misteriosa, parecia inibida entre nuvens enfadonhas. Sufocada num manto negro e espesso que encobria vergonhas. Mas não eram suas, mas tua as vergonhas. Não te aprontasses para a festa. Por isso não se fez prateada e temerosa espiava de lado sem se atrever a mostrar-se inteira. A lua fez-se meia por capricho ou reprovação do que se via, ou se veria em teus atos.

Hoje, nem mesmo o sol quis reinar soberano sobre tuas curvas incertas. Manteve-se longe, talvez em sinal de protesto. Revelou-se entediado e entediou em seu rastro. Abafou o vento que vagou preguiçoso entre tuas paredes de frios e feios concretos. Não te vestisses adequadamente. Tentaram te parabenizar, mas em troca transpirasses carbono e oferecesses maus cheiros. Foste ingrata recusando a festa dos poucos apaixonados e dos muitos oportunistas. Mal humorada, fizestes silêncio enquanto o Capibaribe corria manso e sem brilho. Seu leito pareceu adormecido ou inebriado em teus desalentos. Acaso aborrecido contigo, ou com suas sujeiras. Sol, chuva, brisa e luar castigados pela velha senhora que chorou silenciosa e os faz cúmplices.

Hoje estás mais velha e te mostras cansada. Recolhida em si mesma. Talvez no mesmo arruinado e pacato marasmo de sempre. Digna dos relegados. Símbolo dos desvalidos. Sufocada não se faz mais bela, mas ao contrário revela-se porca. Alheia nem notasses passistas que dançaram na Sete de Setembro em tua homenagem. Também não reverenciasse o Galo, muito menos o samba que veio de longe. Estavas vazia de si e dos seus. Que esperaste da noite? Complacência? Piedade ou devoção? Tinha tudo que te acostumasses a oferecer. Tinha pão e tinha circo. Tinha um seleto grupo feliz e protegido. Tinha “morta-fome” esquecidos. Estava tudo lá, como sempre. Acaso te sentisse aviltada? Pois te digo que não és menos culpada que teus próprios filhos, por te mostrares domada. Te entregasse ao falso romance de quem hoje te vira as costas. Oh, que culpa tem tua gente se te fizestes ingrata? Te desses ao tirano de forma subserviente e agora reclamas a submissão de teu povo? Que podem os que têm sede? Que pensam os que passam fome? Não vês que teus filhos clamam que levantes? Porque silenciasses quando o povo ensaiou uma vaia ao teu falso pretendente? Porque não aproveitasses o momento para ecoar tuas próprias insatisfações? Esperamos tanto por ti e mais uma vez calasses a dor do orgulho ferido que nos atormenta o peito.

Hoje estás mais velhas em idéias e ideais. Perdesses o rumo e nosso prumo. Estás pesada. Inchada de desencantos que não mais encanta aos teus. Doente e alienada agonizas futuros. Aprendesses a mendigar piedade e relegasses os muitos que sobrevivem as tuas sobras. A estes não tens o que oferecer além de migalhas adormecidas, pois que não te fazes mais digna da soberania que um dia proclamamos em teu nome. És apenas uma senil senhora que contabiliza os dias. Sem sol, sem lua, sem o vento vigoroso que te deu ares de guerreira. Oh, porque te fizestes tão frágil e ingrata diante dos teus? Escuta novamente o clamor das ruas. Acorda Recife, acorda! Vamos, levanta! Vamos ao levante, pois que um novo tempo se anuncia. Nove meses são bastante para gerar novos frutos. Por isso, faz das urnas teu ventre vindouro e pródigo. Levante para acordar a lua. Levante para sacudir as ruas. Para se mostrar viva e tenaz, porque só quem te ama de verdade sabe o penar de te ver assim. Levante Recife! Levante para lustrar o sol, ainda que precisemos fazer brilhar outras estrelas!

sexta-feira, 9 de março de 2012

UM GRITO DE INDECÊNCIA SECULAR



NOVOS [?] RETRATOS DO RECIFE.

Em doze de março, segunda-feira próxima, Recife comemorará seus 475 anos. Hoje, nove de março, o Jornal do Commercio estampa na capa uma nova fotografia da cidade. Nela não se vêem os tradicionais casarios históricos ou mesmo as belas praias mansas e mornas do litoral urbano. É uma foto mais crua, desprovida de beleza ou encantos. Em contra posição a imagem revela uma realidade que se tornou comum e corriqueira. Uma família em descanso em uma praça pública. Nada mais bucólico e poético pensaram os apressados românticos. Mas o problema não está no ato, e sim no fato. A foto torna-se então mais que artística, pois que em si trás conceitos que revisam preceitos. Família, crianças, praças, gestão pública e miséria, aspectos entrelaçados por um único fenômeno: a dependência química. Mais que isso, a foto evidencia recortes de etnia/raça, classe social e geracional, abrindo espaço ainda para se pensar questões de territorialidade.

Segundo Jorge Cavalcanti [JC, Caderno Cidades, p.4, 2012], em matéria de uma página, intitulada: “Entregues à Própria Sorte”, “Eles estão sempre por aí. Aos montes e, inevitavelmente, na companhia de um tubo de cola e dos efeitos mais visíveis do crack sob o corpo”. Sim, eles estão sempre aí e acolá. Não têm paradeiro certo, pois que são vidas insertas e desprovidas de dignidade. Desprovidas de tudo, menos da sorte, pois que esta pertence ao destino e não se configura como direito. Pessoas que encontram em praças sujas e descuidadas, como também em ruas e becos fedorentos, o que lhes restam como abrigos. Tornam-se invisíveis aos olhos civis e públicos. Por isso alerta o jornalista: “Você pode não notá-los. Por pressa, por desatenção e até por conveniência. Mas eles continuam por aí”. O aviso soa como presságio de perigo. Para quem? Numa concepção mais rápida perigo salienta a existência de potencial agressão ou agressor. Neste caso específico, quem agride ou será agredido?

Dias atrás abordei aqui o dilema das muitas “meninas que passam e morrem nas ruas do Recife”, destacando a situação da população em situação de rua na Praça Maciel Pinheiro. A praça está fechada para restauro. Tapumes em madeirite impedem o acesso aos inexistentes jardins, mas não impede a proliferação e manutenção de famílias desassistidas. E a Praça da República? Até o começo desta semana permanecia interditada pelo camarote da Rede Globo. Há quanto tempo mesmo o carnaval acabou? A Praça do Parnamirim congrega quantas famílias? E a Joaquim Nabuco? Alguém se lembrou da Sérgio Loureto? Será que a Praça Chora Menino tem famílias abandonadas? Eu sei que na Praça Oswaldo Cruz tem. Na pracinha da Soledade e do Riachuelo também. Será que estas também serão restauradas? Somente as praças ou as vidas que delas dependem diretamente? Será que já começou a campanha eleitoral? Será que dará tempo para maquiar o que se perdeu, ou apodreceu, durante quatro anos?

Todos os dias se vêem crianças soltas em vidas e presas a tubos de cola, ou a cachimbos de crack, nos gramados sujos da Aurora. A Av. Arthur Lima Cavalcanti está em obras para desafogar o transito. Porém os mangues continuam congestionados de crianças e adolescentes em situação de exploração sexual e dependentes químicos. Quando começaremos as obras para restaurar seus direitos de cidadania? Nossas praças se transformaram em territórios dos desprovidos, é verdade. Mas, será necessário entender que o processo de territorialização desorganizada, muitas vezes, se dará pela falta de acesso as condições dignas. E não estamos falando de invasão dos espaços públicos ou pudicos da cidade. Estamos falando do escoamento de uma parcela da população que procura, ou melhor, só encontra abrigo as margens.

Segundo informações da Prefeitura, exite atualmente 1.500 pessoas em situação de rua no Recife [ver reportagem]. Não serão mil e quinhentas famílias? Só embaixo do meu prédio já contabilizei mais de quinze. Alguém já foi na frente do Habbibi`s? E na frente do Lojão dos Calçados? Passaram em frente ao Atacado dos Presentes? Na Loja Riachuelo? No Banco Santander? Fica então a dica para quem desejar conhecer e melhor contabilizar à noite e a madrugada da Av. Conde da Boa Vista. Como diz Cavalcanti [JC, 2012], “não precisa procurar muito”. Eles e elas estão por toda a parte. O problema é que a noite todos os gatos são pardos, e talvez passem despercebidos por estarem misturados a cachorros e ratos. Basta olhar as transversais e paralelas.

Que cerca de 70% desta população possua casa [ver reportagem] até se entende ou aceita. Isso já é sabido de todos. mas o fato não se justifica por si. E muito menos se auto-explica. A questão é entender porque as casas nem sempre se revelam como espaços mais seguros e acolhedores do que as ruas. Neste contexto entende-se que o desafio é maior e tem raízes mais profundas. É preciso trabalhar a família e não individualizar ou particularizar o problema. O atendimento é na base. É preciso rever o processo de socialização primária. Assistir a família é assistir ao indivíduo, e consequentemente a sociedade.

Também é sabido que a mendicância é um problema crônico e cultural de nossa cidade. Tanto que o retrato atual revelado pela foto de uma família negra instalada na Praça das Cinco Pontas, não difere do apresentado pelo professor argentino que viveu em Recife entre os anos de 1960 a 1962, publicado em “Orgia – Os Diários de Túlio Carella, Recife 1960 [São Paulo, 2011]. Não nos bastam descupas ou argumentos fossilizados. Esperamos soluções concretas. O fato é que se cinquenta e dois anos não foram suficientes para se concretizar políticas publicas mais eficazes, talvez nos seja necessários mais 475 novos anos para repensá-las. Como não estaremos vivos até lá, nos consola pensar que reportagens como estas, bem como as repetitivas denuncias que tenho publicado neste espaço, possam ao menos servir de referencia ou alento a possíveis gritos contra a indecência que se fará e se faz secular. E que as praças continuem sendo do povo.





FELIZ ANIVERSÁRIO RECIFE!