terça-feira, 31 de maio de 2011

PORQUE NÃO FALAR DA MORTE?


OS MISTÉRIOS E TABUS DA MORTE

A morte é realmente um tema cercado por mistérios e tabus. Temida e indesejada, tem por séculos permeado o imaginário dos homens. Ultimamente ela tem me sido cotidiana, seja através dos noticiários das TV, jornais e revistas, ou mesmo através da parida de amigos e parentes. Talvez ela venha me rondado nos últimos meses. Talvez exista algum motivo. Talvez seja coincidência. Talvez nem seja nada demais. Fato é que há algum tempo tenho evitado o assunto, mas agora acho que tenho bons motivos para tais reflexões.

Não me considero supersticioso e por isso penso que na verdade a morte tem rondado a todos. Na verdade a morte tornou-se uma constante nas conversas, debates e discussões relativas às crescentes ondas de violência que atingem os grandes centros urbanos, seja na área metropolitana, seja no interior do estado. Especificamente no mês de abril, o Brasil parou chocado diante da televisão para assistir ao massacre de crianças de uma escola carioca. Também nos comovemos com a morte do ex-vice presidente José Alencar. Um jovem foi assassinado dentro de uma livraria na Avenida Paulista. A descoberta das caixas pretas do avião da Air Frence fez submergir centenas de corpos das profundezas oceânicas.

No mesmo mês, um de meus cunhados faleceu depois de lutar durante anos contra um câncer de próstata. Era um aviso de sua proximidade. Dias depois, um amigo morreu por complicações causadas pelo HIV. Eram de certa forma mortes preanunciadas. Mas aí, outro amigo, com quem trabalhei, foi assassinado a pedradas e pauladas no município de Bom Jardim, município da Região de Desenvolvimento do Agreste Setentrional, a uns cento e sessenta quilômetros do Recife. Uma jovem estudante da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE foi morta durante a tentativa de assalto em Aldeia, bairro nobre, localizado no município de Camaragibe, cidade onde vivi minha infância e parte da adolescência.

Os meses seguintes trouxeram mais mortes. Um assaltante foi assassinado por um policial durante um assalto no município de Garanhuns. Sua morte foi transmitida em rede nacional. O mesmo ocorreu com uma travesti morta a facadas, na cidade de Campina Grande, na Paraíba. A cena transmitida no Fantástico me deixou estarrecido. Nem tanto pela morte em si, mas pela banalização da notícia [afinal de contas mata-se travestis e mulheres em Pernambuco quase todos os dias]. Mas as posturas de indiferença estampadas nas vozes e rostos dos ancoras da revista eletrônica [como gostam de anunciar] me chocou. Foram vinte sete facadas exibidas e relatadas como se descreve uma receita de bolo. Talvez se tivesse sido transmitido no melodramático e oportunista programa da Ana Maria Braga tivesse causado mais impacto. Mais uma vez a morte saiu das telas e aproximou-se de minhas janelas. É que uma pessoa se jogou do ultimo andar de um edifício a menos de quinhentos metros do meu. Não soube quem era. Qual sexo, idade, raça, classe social e muito menos sua história de vida. Isso acontece nas grandes cidades e em Recife não é novidade pessoas alçarem vôos em quedas livres. Quem mora nos centros das cidades sabe que não só jarros caem das janelas, mas também corpos que se espatifam nos meio-fios.

Dizem que a morte só precisa de uma desculpa para se anunciar. Dizem também que ela chega para todos sem distinção. Não se sabe quando, onde, a que horas e de que forma se encontrará conosco. A única certeza que temos é que mais cedo ou mais tarde ela virá. A morte não falha. Acho que não escolhe suas vitimas aleatoriamente ou por acaso. Existe uma lógica para se morrer. O grande problema é que ainda não conseguimos entendê-la [ou simplesmente aceitá-la]. Seja qual for o caso, a morte parece causar sempre surpresa. E apesar de próxima nos parece sempre distante. Isso até que ela se anuncia em sua família. A simples perspectiva de sua iminência causa desespero e incômodo. Não sabemos lidar com uma realidade tão fria. Talvez porque não nos preparamos. Talvez porque nos negamos a reconhecê-la enquanto fato natural. Provavelmente porque não temos a certeza de uma continuidade.

A morte é o antônimo da vida [ou será o contrário?]. E é engraçado pensar que quando criança não se tem medo de morrer. Na verdade nem sabemos seu significado. Aprendemos a receá-la através dos adultos. Na verdade ninguém nos explica nada, mas todos reafirmam sua existência. Quando minha avó paterna morreu fiquei feliz porque parecia festa. Tinha passeio garantido e todos pareciam me dedicar maior atenção. É que os adultos temem que as crianças se assustem e por isso criam fantasias mirabolantes e ilógicas. Alguns dizem apenas que a pessoa morta está dormindo. Outros por sua vez dizem que viajou para longe e que um dia nos reencontraremos com ela no céu. Mas aí a gente pensa, partiu por quê? Para onde essa pessoa foi se ninguém havia nos dito de sua partida? E onde fica o céu que ninguém esclarece? Quando minha avó materna morreu, senti alívio. Não havia convivido com ela e logicamente não existia afinidade ou afetividade. Nunca nem mesmo a havia conhecido, até que foi morar com a gente. Velha e cansada, não conseguia mais se alimentar e nem se mover sozinha. Era um trabalho extremo para crianças tão pequenas cuidar de uma senhora que parecia com as bruxas dos contos de fada.

Quando meu pai morreu [por incrível que pareça não lembro a data e nem ano] encontrei pela primeira vez a morte de perto. Internado na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital, os dias se arrastaram. Era uma morte lenta e inconsciente. A nós, filhos e demais parentes cabia a espera. Um dia acordei sobressaltado com o anuncio de sua partida. Tenho certeza que ele veio me avisar. Pensaram que havia sido apenas um sonho. Não era. Liguei para o hospital e tive a confirmação do fato que se dera há poucos minutos antes. Coube-me informar a família. E isso nunca é uma tarefa fácil. Não se sabe o que dizer e muito menos como dizer. Como é que se anuncia a morte de alguém próximo sem causar comoção ou dor? A gente não aprende isso nas escolas e muito menos em casa. Nascimento é fácil porque tem comemoração. Anuncio de morte nos exige embargar a voz. Tem que ter cuidado com o tom, e se possível, aconselha-se usar pausas que devem ser acompanhadas de penar e sofrimento.

Acho que já relatei a incompreensão de muitos de meus amigos de faculdade com o fato de ter bebido um amigo de sala de aula. Chama-se beber o defunto. Acredito que é uma forma de se comemorar sua passagem [se é que existe passagem]. De qualquer forma comemora-se o fechamento de um ciclo, inclusive em nossa vida. Afinal de contas a morte não marca apenas a vida [ou ausência desta] de quem se vai, mas de quem fica também. Fiz o mesmo na morte de meu pai. Nem sei o que pensarão meus irmãos ao lerem tal relato. É a primeira vez que confesso o que para muitos pode parecer heresia. Mas para mim é homenagem. Acho que é assim que lido [tenho lidado, ou talvez, tenho tentado lidar] com a morte. Acho até que não tenho medo dela. Tenho sim, medo da forma como pode se apresentar. Não é a morte em si que assusta, mas a qualidade da mesma. Penso que tememos o sofrimento, a dor, a agonização. Tememos o desconhecido e a incerteza. E talvez isso contribua para nos manter cuidadosos e vivos. Até porque se tivéssemos certeza da continuidade da vida, e ainda que esta se desse num paraíso, muito prefeririam antecipar a “viagem”. Então o medo nos mantém vivo.

Quem nunca se deparou com a morte pelo menos uma vez na vida? Não a morte alheia, mas a sua própria? Como dizia o querido poeta da geração oitenta: “eu vi a cara da morte e ela estava viva”. Esteve muito perto de mim durante um assalto [também já relatado] há alguns anos atrás. Mas não era minha hora. O gatilho não foi disparado. Mas senti o frio atravessar meu corpo e eriçar meus pelos. Não tinha manto preto e nem foice. Não havia sinal concreto de sua existência, ma sua presença era real. Estava ali. Ao meu lado. E ao contrário do muitos podem pensar, queria me proteger. Irreal? Talvez! Fato é que a morte pareceu me salvar da minha própria morte e tudo correu, de certa forma, tranquilamente. Pedi calma, retirei a certeira do bolso, entreguei o dinheiro, voltei com as pernas cambaleando para casa. Não olhei para traz, mas sabia que a morte estava me acompanhando. Parada ao longe, cumprindo sua missão. Talvez a morte seja na realidade um anjo que nos ajuda a enfrentar o momento fatídico. Não sei se acredito em anjos ou seres divinos. Mas por via das dúvidas prefiro acreditar que acredito. É menos incômodo pensar que não estamos sós e que podemos sempre contar com a proteção superior.

Independente de todas essas divagações acredito que a única certeza que podemos ter é que não morremos sós. Ela está conosco. A morte é nossa única companheira na hora de nossa morte. De um jeito ou de outro, ela nos conduzirá para outra dimensão, outro espaço ou simplesmente rumo ao finito. E como costuma dizer um grande amigo meu: “só peço que me dêem uma boa hora”. E isso basta.

sábado, 28 de maio de 2011

VAMO APRENDER INGRÊS POR QUE PORTUGUÊS NÓS JÁ SABE


Centro do Recife e a Educação de Qualidade


UM PAÍS RICO É UM PAÍS SEM A MISÉRIA QUE GERA ANALFABETISMO.

Finalmente a educação entrou em pauta no país. Motivo? A aprovação de um livro didático voltado aos alunos das redes públicas onde se ensina o português errado. Onde se ensina a escrever como se falar. E o que mais chama a atenção, contudo, é fato do referido livro ter o aval do Ministério da Educação. Neste ponto, coloca-se em discussão a qualidade do ensino brasileiro, e logicamente as consequencias futuras para uma nação formada por milhares de analfabetos funcionais. Afinal de contas, o que significa educar? Verbo transitivo direto, derivado do latim “educare”, que segundo o novo dicionário da língua portuguesa significa “transmitir conhecimentos; instruir; domesticar, domar”. Pressupõem-se então, que o ato de adquirir conhecimentos torna-se fundamental e necessário ao desenvolvimento saudável de qualquer ser humano, e logicamente de qualquer nação.

Centro do Recife - Cadê a Educação?
Há de se concordar que linguagem em si é uma das principais ferramentas desenvolvidas pelo homem durante todo o seu processo de evolução. Isso significa que a linguagem também se torna evolutiva. Aprendemos a nos comunicar através da fala, pela qual conseguimos articular a palavra. Neste sentido, palavra torna-se um símbolo, ou sinal, com significado construído culturalmente. Um conjunto de palavras forma uma frase e dará sentido a uma mensagem ou pensamento lógico. Mas lógica pode ser entendida como maneira de raciocinar particular a um indivíduo ou a um grupo. De forma figurativa, a lógica representará a sequencia coerente, regular e necessária de conhecimentos ou coisas, o que se traduz enquanto conjunto de regras e princípios que orientam, implícita ou explicitamente, o desenvolvimento de uma argumentação ou de um raciocínio a resolução de um problema, etc.

Movimento Estudantil
por melhores condiçoes de acesso a educação
Logo, linguagem pode ser entendida como uma faculdade humana. Mas linguagem também consiste no uso da palavra articulada ou escrita como meio de expressão e de comunicação entre pessoas. O que significa que se refere a uma forma de expressão própria de um indivíduo, de um grupo ou de uma classe. Em síntese, a linguagem representa tudo quanto serve para expressar idéias, sentimentos, modos de comportamentos, etc. Dentro dessa premissa, falar “os menino pega os peixe” mostra-se lógico por possibilitar a compreensão do sentido expresso por parte de um determinado grupo. Apesar de gramaticalmente errada, a frase em si gera sentido ao fato de mais de um menino pegar os peixes. Logo, a meu ver, existe uma coerência de linguagem e essa cumpre o seu papel no sentido de transmitir uma informação.


Centro do Recife - Pobres não têm Escola [ou escolha]?
A fala em si será treinada ou domestica dentro de uma lógica real. O que pretendo dizer é que a forma como a linguagem será absorvida depende diretamente de como nos será apresentada. Logo, o homem mostra-se fruto do processo de socialização. Em outras palavras, aprendemos o que nos ensinam. Se no grupo onde me encontro inserido a linguagem se apresenta em uma forma “anti-gramatical”, a articulação de minhas palavras, que darão sentido ao que desejo expressar, se mostrará presa a essa lógica em particular. Isto é fato. Como é fato também que a escola não é lugar para se ensinar errado. Penso que o papel da escola é proporcionar conhecimentos, que se darão também pela correção e regularização da linguagem, partindo de uma lógica maior e coletiva. Ou seja, se somos brasileiros e temos como língua nativa o português, precisamos falar o português correto.

Centro do Recife
Sem educação não existe transformação social
Para melhor explicar, é preciso entender que o “português” a que me refiro trata-se de uma língua romântica oficial de Portugal, do Brasil, de Angola, do Cabo Verde, do Guiné-Bissau, de Moçambique, de São Tomé e Príncipe, também faladas nas ex-colônias portuguesas Goa (índia) e Timor-Leste (anexada pela Indonésia). Resumindo, o português apresenta duas variedades reconhecidas como padrão: a do Brasil, restrita ao nosso país, e a de Portugal, oficial para os outros seis países. Assim, entende-se que nosso português tornou-se abrasileirado, tornando-se exclusiva e única. Independente das regiões geográficas que compõem o país, nosso português se mantém original, variando apenas em fonética [estudo dos sons da fala, especialmente no que diz respeito à sua produção, transmissão e recepção], que a meu ver influencia na variação de sotaques, que nada mais são do que as pronúncias características de um indivíduo, de uma região, etc.

Estudantes paralizam a Av. Conde da Boa Vista
Independente também das regiões geográficas o nosso português, ou melhor, nossa forma de falar, será influenciada por recortes socioeconômicos. Isso quer dizer que num país como o nosso, pautado por um sistema de exclusões, torna-se natural que determinadas classes sociais falem de uma forma, enquanto outras adotem uma linguagem diferenciada. O que não é natural é o fato do Estado contribuir para a manutenção e consolidação dessas variações de linguagens. Dito de outra forma, a escola não é lugar da confirmação de exclusões. Assim, a qualidade do ensino relativo à língua portuguesa deve ser garantida independentemente de quem patrocina o estudo. Não é admissível que a escola pública se transforme em instrumento de segmentação social, possibilitando à formação de uma elite erudita em oposição às categorias populares que margeiam os grandes centros urbanos.

Lugar de Criança não é na Escola?
Desta forma, o que está em discussão não é só se a lógica linguística popular fere a gramática, mas o quanto a fragilidade do ensino das redes públicas ferem os princípios de igualdade de direitos. A discussão, mais uma vez, concentra-se na eterna luta sobre a manutenção do poder da elite burguesa que se sobrepõe ao proletariado, de quem explora sua força de trabalho. E para não haver confusão no que falo, ou seja, usando um português claro, saliento que é preciso que se entenda que “elite” [derivado do francês], refere-se ao que há de melhor em uma sociedade ou num grupo social. Popularmente, a fina flor da sociedade. Mas sociologicamente elite representa uma minoria prestigiada e dominante no grupo, constituída de indivíduos mais aptos e/ou mais poderosos. Por sua vez, “proletário”, derivado do latim [proletariu], faz referência ao cidadão pobre, que na Roma antiga se mostrava útil apenas pela prole, ou seja, pelos filhos que gerava. Se na sociedade romana o proletariado referia-se a ultima classe do povo, no Brasil de hoje, ainda apresenta-se enquanto camada social formada por indivíduos que se caracterizam por sua qualidade permanente de assalariados e por seus modos de vida, atitudes e reações decorrentes de tal situação. Assim, proletariado não é condição natural, mas resultado das construções sociais e econômicas pautadas no capitalismo. Ser pobre não é escolha é condição gerada.

A miséria que atinge crianças e adolescentes
 no Centro do Recife
Logo, o que precisa ser revisto no Brasil não se refere às regras gramaticais, mas as premissas e bases do sistema econômico adotado. Acredito que não é ensinando ao proletariado a linguagem específica de pobre que se mudará uma cultura de exclusões. Até porque para haver desenvolvimento econômico se faz necessário desenvolvimento intelectual. E um sistema político só se mostra verdadeiramente democrático quando disponibiliza e fornecesse as possibilidades de condições de desenvolvimento para todos. Afinal de contas um país rico é um país sem miséria. Miséria que também deriva do latim para sinalizar desgraças e infelicidades. Miséria que se traduz no estado lastimoso, deplorável; pobreza extrema; indigência, penúria. Miséria que se configura enquanto estado vergonhoso, indigno e infame. Miséria que acomete milhões de brasileiros vistos e tratados como passageiros de segunda classe, sem educação, saúde e assistência de qualidade.

Crianças e adolescentes usam crack no centro do Recife
Como professor, acredito que só conseguiremos mudar a realidade social e econômica do Brasil através da educação. Como cidadão penso que devemos lutar por uma educação de qualidade. Educação enquanto processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser humano em geral, necessária à sua melhor integração individual e social. E neste contexto, a referida qualidade educacional deverá se estender a educação política, cívica, social e ética, possibilitando uma melhor formação aos gestores públicos e políticos que equivocadamente assumem pastas e cargos para os quais não possuem habilidades, sensibilidades e/ou competências. Até porque se, “um país rico é um país sem miséria”, é preciso entender que esta se extingue somente com [e pela] educação de qualidade.

UM PAÍS RICO É UM PAÍS SEM MISÉRIA
 Centro do Recife

sexta-feira, 27 de maio de 2011

EXPLORAÇÃO SEXUAL DE MENINOS NAS RUAS DO RECIFE


Epitacio Nunes e Normando Viana
Coordenadores do Projeto História de Meninos



MENINOS QUE FAZEM PROGRAMA

Esse texto é parte integrante do artigo: A invisibilidade do Masculino, não podendo ser reproduzido, integral ou em parte, sem prévia autorização.

Por:
Epitacio Nunes de Souza Neto
Normando José Queiroz Viana

Nas ruas do Recife verifica-se nuances na dinâmica e prática da prostituição que demonstram como esta vem se reformulando e se (re)adequando as novas possibilidades demográficas e/ou sociais da contemporaneidade. Não mais exclusiva do feminino, a prostituição tem perpassado as questões de gênero, idade, etnia/raça e classes sociais. Dentro desses novos arranjos, territórios e modalidades vêm sendo recriados para permitir a manutenção e prática da atividade sexual comercial em atendimento a um mercado que vem se expandindo e se consolidando como segmento econômico. Neste aspecto, destaca-se a ação concreta dos agenciadores no processo de inserção de crianças e adolescentes no mundo da prostituição, que envolve também os meninos. Reconhecidos como “cafetões de boys” , estes agenciadores se revelam nas figuras de empresários comerciais, boys de programa mais velhos e experientes que se intitulam “donos dos pontos”, ou ainda em muitas situações, na figura de familiares.

Tem chamado a atenção a implantação e o fortalecimento de um comércio formal e informal, que se dá a partir da prostituição masculina, e que contribui diretamente para sua legitimação e institucionalização enquanto atividade “profissional” ou “meio de se ganhar dinheiro fácil”. Novos cenários são organizados nos grandes centros urbanos, ao passo que cinemas, saunas, bares, boates, sex-shops, pousadas e motéis, entre outros empreendimentos, vão se instalando estrategicamente nas principais vias de acesso, compondo uma espécie de rede de serviços e produtos específicos e especializados (VIANA, 2010). E prioritariamente à noite, quando este mercado abre espaço à vitrine humana, os corpos traduzidos em músculos, bundas, seios e pênis, passam a circular causando desejos e despertando fantasias que podem se tornar realidades mediante negociação e pagamento. E cada corpo, ou ainda, cada parte destes corpos, bem como, cada sentimento que possa advir dos mesmos, têm um preço. Eis a lei que estabelece os parâmetros para quem compra e vende prazeres sexuais (SOUZA NETO, 2009), inclusive para e por parte de crianças e adolescentes.

Apesar de regido pelas leis do capitalismo, explorando a força de trabalho humano, este mercado tende a apresentar regras mais flexíveis que os demais segmentos econômicos, possibilitando aos executores da prostituição certa autonomia e protagonismo (VIANA, 2010). O contato direto com os boys de programa nos possibilitou além de conhecer suas inserções sociais e trajetórias de vida, informações sobre algumas destas regras que norteiam não só a definição de valores para os programas, como também horários de atividades, locais de concentração e circulação, espaços para realização dos programas e as modalidades e práticas sexuais realizadas.

Em consonância com Ana Mª Ricci Molina (2003), destacamos que no Brasil, a prostituição vem sendo exercida por crianças e adolescentes, onde as condições socioeconômicas desfavoráveis, as relações de gênero, bem como a dinâmica familiar tem se apresentado como fatores constitutivos. Neste sentido, Fábio, boy de programa de 26 anos, evidencia que “para quem é do subúrbio” as noções de idade se configuram de uma forma diferente. Seu primeiro programa aconteceu na rua, quando tinha nove anos, em troca de comida. Diz que para quem é pobre e mora no subúrbio “o pior é que não tem idade”. Direto e seguro, revela a sabedoria popular aprendida e adquirida nas ruas onde: “o que importa pro mundo não é a idade”, pois “tem gente que gosta de curtir com gente muito jovem”. Assim, afirma, dentro de uma lógica que evidencia seu lugar de excluído, que “para nós que somos do mundo não tem essa coisa de idade”. Com certo orgulho, diz que sua história “daria para encher pelo menos três livros”, porque começou “nessa vida muito cedo”. Nas ruas da cidade desde os seis anos, revela ter aprendido as “regras da vida” e as leis da sobrevivência adquiridas na “batalha”: “Saí de casa com seis anos... lembro de quase tudo. Nas ruas aprendi roubar, matar e a me prostituir” (SOUZA NETO, 2009).

Dentro desse contexto, consideramos que a prostituição infanto-juvenil pode ainda ser entendida enquanto dispositivo capaz de oferecer sentidos as histórias de vida dos sujeitos envolvidos, com representações relacionadas à resistência e possibilidades de sobrevivência diante das condições de privação, revelando também uma dimensão de solidão e revolta (MOLINA, 2003). Em diferentes estórias constatamos certo roteiro no processo de inserção, quase sempre envolvendo um homem mais velho que seduz um mais novo através das possibilidades de ganhos. Todavia, nem sempre estes se darão através do pagamento direto, mas muitas vezes, como uma espécie de escambo, onde os corpos serão trocados por comida, roupas ou outros bens quaisquer. Mesmo em tais situações, seria ingênuo desconsiderar outros fatores motivacionais, tais como a descoberta dos prazeres e desejos proporcionados pelo sexo comercial, que permeando tudo isso, muitas vezes se encontrará de forma vinculada aos processos de inserção destes meninos na prostituição.

Percebemos que a discussão relativa ao envolvimento de crianças e adolescentes no universo da prostituição, seja através da exploração sexual ou de certas possibilidades de “escolhas” para se manter no mercado do sexo, como pudemos verificar nas ruas de Recife, causa grande estranhamento e incomodo, ou como diria Rubin (1993), até mesmo, “certa histeria social”. A dificuldade de falar sobre o tema parece de certa forma, motivado pelo lugar de vítima outorgado as crianças pelos movimentos sociais em defesa dos seus direitos. No entanto, o processo de inserção, não generalizando e, obviamente não pretendendo discriminar, aparece entre os meninos e meninas de camadas populares também como alternativas viáveis de acesso e vivência da sexualidade.

Talvez a grande questão consista na necessidade de se refletir sobre a idade de autorizo para o sexo. Neste sentido, confessamos nossas dificuldades em concatenar as idéias, livre dos conceitos relativos aos ideais construídos sobre o que é ser criança e ser adolescente. Por isso propomos uma discussão que não finda agora e nem tem a pretensão de se esgotar com esse estudo. Mas, falamos de uma análise de base construcionista social, focando a influência dos constructos culturais sobre nossas lógicas de pensamento, visando ampliar a discussão e preencher o vácuo científico no que se refere à construção de conhecimento relativo ao envolvimento e participação de meninos na prostituição e exploração sexual.

terça-feira, 24 de maio de 2011

A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E AS CHUVAS DO RECIFE

População em situação de rua do Recife
Rua do Hospício.



RECIFE - A INUNDAÇÃO DA VENEZA BRASILEIRA

Sempre ouvir dizer que Recife é a Veneza brasileira, cortada por rios que margeiam monumentos históricos. Neste sentido, a cidade é realmente linda e encantadora, não sendo raro se ver velhos pescadores jogando suas redes de cima das pontes. Cenas poéticas dignas das sessões de arte no Cine São Luiz, que de frente a ponte Duarte Coelho compõe o cenário bucólico de um iluminado final de tarde. Como diria o velho poeta, “Recife tem encantos mil”. Ruas entrecortadas pelo comércio ambulante, calçadas coloridas, grandes espigas de concreto armado que se misturam aos sobrados do passado e revelam grande diversidade em estilos arquitetônicos. A metrópole é uma espécie de galeria de arte a céu aberto. Um acervo de esculturas se espalha por suas ruas, avenidas, praças, contrapondo-se a aridez do asfalto e a asfixiante fuligem cinza que a tudo e a todos impregna.

E mesmo nestes dias de chuvas torrenciais, Recife tem revelado situações inusitadas e encantadoras, como o fato de beija-flores invadirem nossas janelas insistindo em colorir velhos prédios sujos e repletos de roupas em varais que flamulam aos ventos. Sim, na minha janela tem beija-flores. É que no apartamento ao lado existe um canteiro com flores tropicais. Foram eles que chamaram minha atenção para o fato de meu vizinho, [que mal conheço] cultivar plantas nas janelas. Não chega a ser um jardim encantado da Babilônia, mas encanta pela singeleza e sensibilidade. E nele pássaros parecem brincar, sugando o néctar dos deuses. Ah, que saudades de minha infância entre plantas e bichos, onde corria com meu cachorro em terreno repleto de “amarelinhas”, subia em árvores frondosas e observava ovos nos ninhos. Se no passado distante os verdes campos nos serviam de alento, hoje me contento em observar o revoar de pombos, rouxinóis e beija-flores que atravessam a avenida em vôos rasantes e lentamente pousam sobre fios de alta voltagem. É, Recife tem dessas coisas. Beleza e repugnância dividem espaços; felicidade e tristeza se alternam em momentos simultâneos; sutileza e ignorância co-habitam suas ruas.

Mais uma vez plagiando o Rei do Brega Reginaldo Rossi, diria que “o Recife, eu sei, tem muitas belezas”. Mas também tem sérios problemas comuns aos grandes centros urbanos, sendo o principal deles a administração pública atual. Ontem, por exemplo, desci desavisadamente as ruas e não consegui seguir caminho. Seria necessário barcos ou balsas para atravessar a Avenida Conde da Boa Vista, principal corredor que corta a cidade. A chuva em si não era tão intensa, mas constante o suficiente para transbordar pelas calçadas e invadir as recepções dos prédios. O que era limpo e cheiroso tornou-se sujo e fétido. O que era tranquilidade, mostrou-se fatídico, sinistro e trágico. Claro que em nada se comparava aos tsunamis, mas havia ondas que formavam marolas que se quebravam nas lojas que insistiam em não fechar suas portas, e que por isso também, serviam de abrigo a quem aguardava os ônibus. E esses sim, faziam a festa. Em alta velocidade, veículos provocavam verdadeiros maremotos que espalhavam lixo e lama que transbordavam das caneletas entupidas [Acho que é melhor avisar a prefeitura para limpar as ruas e desentupir as canaletas?]. Pessoas molhadas e meladas revelavam a indignação comum a quem paga altos impostos e se vêem desrespeitadas em seus direitos. Era o caos de uma cidade relegada e entregue as traças. E lógico que isso é figura de linguagem, até porque traças não tinha, mas em compensação, os ratos corriam desesperados sobre pés montados em altos e finos saltos.

População em stiuação de rua no Recife
Rua do Hospício
E tinha também cachorros velhos e rabugentos que disputavam a tapa com gente grande um pequeno espaço seco abaixo das marquises. Era uma verdadeira celeuma entre humanos e animais. Ninguém sabia quem era quem [se é que existe grandes diferenças para os políticos?]. Ninguém sabia quem estava mais desprotegido. E pasmem! Havia uma criança recenascida no meio do tumultuo. E explico para que entendam melhor. É que abaixo de meu prédio, há poucas semanas uma família inteira decidiu se abrigar no local [lógico que o verbo decidir é liberdade poética]. E quando falo inteira, me refiro a mulher, esposo, dois filhos – um adolescente com transtorno mental e um bebê; além de um cachorro vira-latas. E acreditem, faça sol ou faça chuva eles pernoitam entulhados a várias outras famílias, idosos, crianças e adolescentes. Mas também não pensem que tudo é desgraça. Não. Podemos até dizer que eles usufruem de certos luxos e comodidades. Alguns até têm colchões e cobertas. Outros possuem mais de uma peça de roupas e sapatos. E quanto a comida, sempre existirá os assistencialistas religiosos ou caridosos cidadãos que em busca de um espaço garantido nos céus entreguam sopa. Quem vive nas [e das] ruas sabe que a cada dia o alimento sagrado é entregue em ruas direntes. Assim se deslocam e compartilham da caridade daqueles que voltam para casa e dormem tranquilamente protegidos do relento. Quanto a diversão, bem, muitos durante a noite formam rodas de conversas regadas a cola e crack [nem tudo é maravilha]. Mas não precisam se chocar porque o bebê dormia tranquilo e seguro em meio a papelões cuidadosamente arrumados no interior de uma carroça que lhe serve de berço.

Mas até aí qual o problema? Afinal de contas, Cristo não nasceu em uma estrebaria e dormiu em uma manjedoura? O problema é que na bíblia não tem chuva transtornando a vida dos morimbundos. E também não tem famintos, que desprotegidos perambulam pelas ruas dos grandes centros. Mas Recife tem. Tem rua esburacada. Tem saneamento comprometido. Tem violência. Tem gente passando fome. Tem crianças e idosos sem tetos. Tem tráfico de drogas. tem corrupção e descaso. E tem muita estupidez política. Recife não tem só encantos, mas tem problemas mil. Mas o bebê parecia dormir tranquilo [menos mal, porque criança desprotegida quando chora tira o sono da gente, não é mesmo?]. Misteriosamente ela estava calada e tranquila [será que estava dopada, ou melhor, drogada?]. Talvez seja besteira perder tempo com esses pensamentos infundados. Além do mais, o fato de dormir nas ruas não é privilégio dessa única família. De jeito nenhum. A noite do Recife deveria mesmo servir de laboratório aos estudiosos e gestores das políticas públicas. Acho até que serviriam como campo de pesquisas sobre a tão falada resiliência humana.

Imagino que um pesquisador ficaria eufórico com tantas opções de recortes diante de tão farto material de análise. Para quem conhece a Rua da Imperatriz, por exemplo, a cena noturna parece dantesca de início. Mas depois, com relativo esforço a gente acostuma a visão e passa a perceber detalhes valiosos para análise qualitativas. Pode-se pesquisar gênero, raça/etnia, formação de grupos sociais, processos de socialização, transtornos mentais, infância e delinqüência, gravidez na adolescência ou uso de substâncias psicoativas entre jovens das periferias, e mais uma variedade de fatores e fenômenos sociais peculiares e inerentes a população em situação de rua. Ah, tem também a Rua José de Alencar, no trecho entre a Av. Conde da Boa Vista e a Rua do Riachuelo, e a Rua do Hospício que desemboca na Imperatriz. Mas talvez a mais harmoniosa seja a Rua da Aurora, onde dezenas de pessoas dormem sob a relva dos jardins mal cuidados que margeiam o Rio Capibaribe.

Nesse aspecto, penso que um fato que pode chamar a atenção e despertar o interesse acadêmico [até porque político não se interessa por essas coisas] refere-se à violência doméstica. Sim. Até porque se pensarmos que as ruas se tornam espaços de convivência familiar para essas pessoas, a violência que se apresenta e se desenvolve a olhos claros nas ruas do Recife, envolvendo membros de uma mesma família, pode ser entendida enquanto violência doméstica [Ou não? Será isso mesmo? Quem se habilita a discutir o assunto?]. E quanto a pesquisar estruturas familiares? No caso do bebê recenascido mesmo, será que sua família se enquadra no modelo patriarcal-burguês, composto por pai, mãe e filhos? Ou será observada enquanto família desestruturada, como tanto gostam de classificar os gestores e técnicos das políticas públicas? Pessoalmente prefiro concordar com um velho amigo de pesquisas, o Normando Viana, que diz que a classificação “família desestruturada” refere-se diretamente a qualidade das relações sociais e afetivas entre os membros de uma mesma família e não a suas estruturas de composição. Mas como se diz por aqui, essa discussão dará panos para as mangas.
Enchente em Paudalho - RD Mata Norte de Pernambuco

Caso não se sintam a vontade com a violência doméstica, ainda resta uma outra modalidade: a violência sexual. Será que é por isso que quem habita as ruas não dorme durante a noite, ou mesmo, só dorme de bruços? Penso que talvez essas pesquisas possam embasar políticas públicas mais estratégicas e eficazes, ou ainda para evitar que se fale tanta besteira nos meios políticos repletos de demagogos que parecem nada entender sobre direitos humanos [de assistência e educação social, e muito menos de gente]. Será que nos planos governamentais de proteção as populações atingidas pelas chuvas alguém já pensou na população em situação de rua, ou será que este segmento permanecerá invisibilizado diante das urgências e gravidades das tragédias previsíveis? A tomar pelo exemplo do centro do Recife, penso que se fará necessário a divulgação de dramas familiares nas redes de TVs. Até porque nos acostumamos a “só fechar a porta depois de roubados”. Talvez a calamidade exposta em horário nobre desperte mais interesse e ação por parte dos responsáveis [E quem sabe até gere novos pontos no ibope e até novos recursos financeiros]. De qualquer forma, não dizem que depois da tempestade vem sempre à bonança? É esperar para ver. É ver para crer. Quem sabe até a próxima chuva. Quem sabe até a próxima morte. Quem sabe até que o povo se revolte e coloque um basta nisso tudo.

Av. Conde da Boa Vista - Carnaval 2011.
Só sei que de hoje em diante minha boia não servirá apenas como adereço do carnaval, mas como kit-de-proteção para enfrentar as tormentas de uma gestão pública tão ineficiente e despreparada. E se conseguir sobreviver as chuvas previstas para o litoral pernambucano, prometo que nunca mais voto em quem dá as costas para a cidade e para o seu povo.

"Olha a chuva! Chuveu. Olha a chuva! Passou!" [Será? Parece que só quem viver, verá].


sábado, 21 de maio de 2011

EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES - A INVISIBILIDADE DOS MENINOS




Epitacio Nunes em Oficina para
Técnicos do Município de Aliança - Mata Norte.
PROJETO HISTÓRIA DE MENINO
REFLEXÃO SOBRE O DIA NACIONAL DE COMBATE A EXPLORAÇÃO SEXUAL

 

Era 18 de maio de 1973 quando a televisão divulgou terem encontrado o corpo de uma criança que havia desaparecido. Eu tinha sete anos, um ano a menos que a garota da reportagem. Na época crianças não assistiam televisão até tarde da noite. Mas lembro das notícias que chocaram a sociedade brasileira. Na verdade nem sabia do que se tratava direito. Apenas que uma menina tinha desaparecido e déias depois encontrada morta. Havia um clima de mistério na história. Ninguém nos explicava nada. Até porque, talvez, não houvesse explicações. Não havia informações claras sobre o acontecido. Desconfiava-se do envolvimento dos pais e as acusações apontavam para jovens da classe média da cidade de Vitória. Para mim aquele lugar parecia distante, até porque nunca tinha ouvido falar sobre o estado do Espírito Santo. Talvez por isso a situação me fosse alheia.

Lembro ainda que a notícia serviu para reforçar junto as crianças de minha idade a imagem perigosa do papa-figo, criatura estranha que capturava meninas e meninos para comer-lhe o fígado. Nunca tínhamos visto um papa-figo, e de certo modo, a figura lendária fazia parte de nosso imaginário e até nos divertia. Éramos crianças e logicamente não tínhamos as informações completas. O caso de Araceli Sanshes nos parecia algo realmente estranho e distante, e neste caso, o papa-figo assumia a imagem humana. Então, a papa-figo era homem? Existiam homens que comiam os fígados de crianças? E porque eles faziam isso? Essas e tantas outras perguntas ficavam no ar. Criávamos nossas próprias explicações através de deduções advindas de conversas entrecortadas, que por vezes, conseguíamos ouvir escondidos.

Anos depois, descobri que Araceli Sanshes tinha sido vítima de violência sexual. Ela tinha oito anos quando foi capturada, torturada, espancada, estuprada e morta por um grupo de jovens de classe média. Seu corpo foi encontrado carbonizado e seu rosto havia sido queimado com ácido. Dezoito anos depois os acusados foram levados a julgamento e foram absorvidos. Era 1991 e eu tinha 25 anos, estava na faculdade e era uma pessoa independente. Araceli Sanshes teria uma ano a mais, talvez tivesse se formado, talvez fosse mãe, talvez tivesse tido outras possibilidades de vida. Fato é que crianças têm sempre destinos distintos e algumas contam com uma coisa que se poderia chamar de sorte. Logicamente que nessas questões existem variáveis e fatores que vão além da simples sorte ou destino, mas aquela criança entrou para a história da forma mais brutal e inconcebível. Histórias que se repetem sejam no sul ou no nordeste do país. E aqueles jovens agressores, hoje provavelmente homens de sucesso e pais de família integram um grupo ou segmento da sociedade que si guiam por conceitos sociais e regras normativas diferenciadas. Fazem parte de um segmento que até hoje se prevalece e se beneficia por uma outra modalidade de lei: a da impunidade.

Vinte sete anos depois do assassinato instituiu-se no Brasil o 18 de maio como Dia Nacional de Combate a Exploração de Crianças e Adolescentes, através da Lei nº 9.970/2000. Araceli Sanshes teria 35 anos de idade, e é uma pena que só seja lembrada uma vez por ano. Pior ainda é saber que não se comemora sua dada de nascimento, mas ao contrário, sua data de morte nos serve para repensar nossas responsabilidades e atitudes diante da impunidade. Estima-se que a cada 15 segundos uma criança seja vitima de violência sexual no Brasil, porém parece que os esforços são mínimos diante do poder estratégico das redes de exploração sexual de crianças e adolescentes que integram o terceiro maior negócio do mundo, só perdendo para o tráfico de armas e o tráfico de drogas.

Assim, o 18 de maio não me serve como data comemorativa de avanços, mas como referencial de fracasso, uma vez que milhares de crianças e adolescentes continuam sendo abusadas e exploradas sexualmente cotidianamente no Brasil. Salientamos mais uma vez, a necessidade de se pensar em políticas públicas mais eficazes, voltadas ao atendimento e assistência dos meninos, também vitimas dos abusos e exploração sexual. É neste sentido, que apresentamos abaixo mais alguns dados de nossos estudos atuais, que buscam retirar da invisibilidade a inserção e envolvimento de meninos no comercio do sexo pago.


A INVISIBILIDADE DOS MENINOS NOS ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES.

Este texto é parte integrante do artigo: A Invisibilidade do Masculino nos estudos sobre exploração sexual de crianças e adolescentes, não podendo ser reproduzido, integralmente ou em parte, sem prévia autorização.

Por: Epitacio Nunes de Souza Neto – Mestre em Psicologia pela UFPE.
Normando José Queiroz Viana – Mestre me psicologia pela UFPE.

Normando Viana em oficina para técnicos do município
de Lagoa de Itaenga - Mata Norte
PROJETO HISTÓRIA DE MENINO


Exploração Sexual de Meninos: Um Novo Fenômeno?

Ao se acessar a internet, constata-se grande quantidade de sites destinados a divulgação da pornografia infantil onde os meninos, na mesma proporção que as meninas, encontram-se expostos a simulações ou práticas sexuais entre si e, também com adultos. Há muito se atribui a tal ferramenta a responsabilidade pela disseminação desta modalidade de exploração sexual e consolidação das redes de “aliciamento” de crianças e adolescentes. Porém, lembramos que quando crianças éramos sempre aconselhados e alertados, por nossos pais e parentes adultos, sobre os riscos eminentes ao “papa-figo” , que capturava criancinhas para comer seus órgãos. Também corríamos riscos eminentes em relação aos “tarados” que pegavam as crianças para fazer “safadezas” . Naquela época não tínhamos internet, mas as informações eram repassadas através de conversas e reprimendas. Já existia um cuidado com a honra e a integridade emocional, e logicamente sexual dos menores, evidenciando que o fato de crianças e adolescentes serem abusadas e exploradas sexualmente não se apresenta como fenômeno da era digital.

Nesse sentido, a internet amplia para a sociedade uma realidade inerente a um fenômeno social que busca se adequar as mudanças e diversidades de cada época, uma vez que na era da informação instantânea, temos que nos adequar e aprender a lidar com fatos e acontecimentos, muitas vezes divulgados em tempo real. Assim, esta se apresenta como canal de maior poder de abrangência e velocidade de atualização e comunicação, que podem ser utilizadas com os mais diversos propósitos. Não queremos, contudo, negar as possibilidades que os agenciadores e promotores da exploração sexual encontram em tal ferramenta. Porém, pretendemos chamar atenção para o fato de que a internet, através dos sites de conteúdo pornográfico envolvendo meninos, evidencia uma realidade que parece contraditória aos dados oficiais, pesquisas e estudos científicos, que parecem omitir o envolvimento desses no âmbito da exploração sexual.

Tal incoerência parece fundamentada no fato de que culturalmente, tanto a prostituição, quanto a exploração sexual de crianças e adolescentes foram institucionalizadas como fenômeno e problema social especifico do feminino, sobre o qual, muitas pesquisadoras focaram suas análises, tanto que, o estudo sobre a prostituição mostra-se marcado pela questão de gênero, onde as pesquisadoras estudam as mulheres (Rago, 2001; Pasini, 2005, Pereira, 2005, Russo, 2008), e os pesquisadores, por sua vez, os homens (Perlongher, 1987; Rios, 2004; Souza Neto, 2009; Queiroz Viana, 2010).

Especificamente em relação à participação ou envolvimento de crianças e adolescentes na prostituição, a análise tem se configurado sempre na perspectiva da exploração sexual. Não pretendemos obviamente negar, e menos ainda ignorar, a questão socioeconômica como um dos principais fatores que contribui para a inserção de crianças e adolescentes das classes populares nesta modalidade da exploração sexual. Mas, pretendemos chamar a atenção para o fato de que este não se apresenta, muitas vezes, como único elemento constitutivo. É preciso considerar que no cenário sociopolítico que se apresenta como modelo econômico adequado ao desenvolvimento do país, pautado na exploração da força de trabalho humano, a prostituição tem se constituído enquanto atividade passível de remuneração rentável e imediata. Neste sentido, não será difícil imaginar que para alguns adolescentes a prática do sexo comercial possa ser resignificada como possibilidade de acesso ao “mundo dos ricos”.

Também é impossível desconsiderar que a prostituição tenha seus encantos e elementos de sedução. Elementos estes que destacaremos através de trechos de entrevistas que realizadas com boys de programa que atuam nas ruas do Recife. O primeiro, a quem denominamos de Ítalo, é alto, moreno claro, bonito e se apresentava sempre bem vestido. Hoje com 20 anos é reconhecido como “dono do ponto” . Diz que sua iniciação sexual foi “comprada” por um amigo mais velho, quando tinha dezesseis anos. Ao ser questionado sobre o que pensa a respeito da prostituição, diz considerá-la como “uma forma de ganhar dinheiro fácil”.

Rapaz foi bem dizer com um amigo meu. Ele bem dizer me comprou. Agente estava conversando. A gente estava ali e ele perguntou e tal e disse: eu te dou um negócio. Eu disse: só se for agora. [...] Uns quinze anos mais velho que eu. Uns 35 anos ou mais velho. [...] Aquela coisa, estava trocando umas idéias. E ele marcou. Tá bom! Vamos marcar mais tarde. Quando a gente viu estava num motel e aconteceu (Ítalo, 19 anos, boy de programa; In. Souza Neto, 2009).

Importante destacar, que também contrário ao senso comum da sociedade, Ìtalo residia com sua família e na época se declarou envolvido com sua companheira, configurando uma relação afetivo-amorosa estável. Apesar de morar em uma comunidade popular, situada à margem do centro de Recife, alega que a questão econômica da família não foi o motivo para sua inserção na prostituição. Neste sentido, diz que “a coisa foi acontecendo”. Outros parceiros sexuais foram se apresentando e, com eles as possibilidades de ganhos “fáceis” que encontrava na “putaria”, tais como, presentes, noitadas e “orgias sexuais”, que obviamente, proporcionavam prazer.

Em outro depoimento, Marcos, 18 anos, alto, branco, cabelos castanhos, bonito e classe média, diz ter sido levado a prostituição por um amigo. Quando questionado sobre o que pensa do fato de fazer programa, ele reflete:

[...] Como assim, fazendo programa? Eu sei que isso não é certo. Porque se meus pais souberem vão perguntar se está faltando alguma coisa em casa e certamente eu sei que não está. [...] E também assim, eu jamais iria dizer, porra pai, porra mãe, eu sou um garoto de programa. Eu nunca iria dizer isso (Marcos, boy de programa)

Marcos traz a tona os sentidos do prazer proporcionados pelo sexo comercial. O programa torna-se ressignificado em curtição, o que possibilita a vivência de sua sexualidade longe do controle familiar e social. Residindo em um município distante de Recife, encontrou nas ruas do centro da Boa Vista, o local ideal para a descoberta dos limites pessoais. No programa, o fator monetário assume o papel de mediador dos desejos e possibilidades. Uma espécie de passaporte de autorizo para as condutas e posturas sexuais que compõe o processo de iniciação e desenvolvimento sexual de alguns homens.

[...] Porque é dinheiro fácil e tal. E às vezes assim, eu estava sem dinheiro. Minha mãe não me dava, meu pai não me dava, dizia que eu devia trabalhar. Por isso. E aí eu disse: naquele dia eu ganhei dinheiro tão fácil, ai eu acho que vou de novo prá lá... E eu terminei me acostumando, me adaptando, e acabei assim. Mas eu sei que isso não é futuro pra ninguém, entende? Eu tenho que correr atrás dos meus estudos, como eu tô correndo [...] Mas isso é tipo, só uma curtição que eu saio só pra curtir mesmo. Eu saio só prá me distrair, mesmo, pra sair, pra curtir a noite. Mas assim, do tipo, se sou um garoto de programa? Sou mais só que eu não dependo disso pra sobreviver, prá levar dinheiro prá casa porque meus pais estão precisando, não. E só pra mim mesmo (Marcos, boy de programa).

Marcos, da mesma forma que Ítalo, irá se diferenciar enquanto categoria especifica de boys de programa, pela situação socioeconômica de suas famílias. Apesar de suas semelhanças em pensamentos e percepções relativas à prostituição, ressignificada como lugar de possibilidades de ganhos monetários, curtições, desejos e prazeres sexuais, revelam diferentes concepções conceituais relacionadas à suas permanências e manutenção no mercado sexual. Enquanto Marcos evidencia que seus atos não são “dignos de um homem”, talvez por reprovar e negar um desejo homossexual latente, várias vezes evidenciado na continuação de seu discurso, Ítalo por sua vez, ver na prostituição as possibilidades de futuro empreendedor através do agenciamento e da exploração de outros boys de programa. Nos dois casos relatados, observa-se que a própria concepção de prostituição como forma de ganhar dinheiro fácil, torna-se também ressignificada, ganhando contornos subjetivos, bem como, sentidos e significados diferenciados para cada sujeito (Queiroz Viana, 2010).