quinta-feira, 10 de março de 2011

CARNAVAL 2011 - SOB A PROTEÇÃO DO OLHAR DE BACO


Sábado de Carnaval - Camarote da Metrópole - Recife/PE.



A VIGILÂNCIA E A COBIÇA DOS OLHARES.

 

Nada me chamou mais atenção neste carnaval do que os olhos alheios. Verdes, azuis, caramelados ou negros, todos, olhos. Intensos, opacos, arregalados, sobressaltados, insensatos ou arredios, todos olham. E se olham. E se vêem. O tempo todo e todo o tempo. E se é que existe um tempo exato para o exercício do olhar, este se perde no deleite dos corpos. Percorrendo cada parte, íntimas ou não, os olhos acompanham cada detalhe ou movimento de músculos que não raramente insistem em saltar de pequenas peças. E por mais coberto que se esteja sempre haverá quem nos desnude com olhos que cobiçam e desejam.

O carnaval é assim, como um grande mercado público onde a carne fica a mostra. E exposta ansia por ser devorada. E carne cobiçada se come com os olhos, ao mesmo passo em que se é comido, seja por olhares atrevidos ou ainda escondidos por trás de lentes escuras. E nesse jogo erótico quebram-se as regras quando as iris se dilatam para ampliar o campo de observação. O objeto de desejo é medido dos pés a cabeça e a imagem como que micro-filmada é mantida na memória para fantasias solitárias. Se nisso existe pecado, que culpem meus olhos, pois que se atrevem em adentrar por decotes e barras que moldam, ou se moldam a peitos e bundas. Que os condenem por infringir a norma ao invadir o privado dos corpos alheios para atiçar a imaginação. Se existe traição, que se ponderem os conceitos, pois que os olhos são arredios e desconhecem preceitos.

Nos clubes ou ladeiras as situações se repetem. Os olhos miram, avaliam e medem. Pessoas se transformam em imagens fotográficas que povoam. Os olhos indagam e inquirem informações complementares que se mostram sem grande importância. Essencialmente não é quem que se olha, mas a que ou o que. Pode ser parte, pois que nem sempre o inteiro agrada. Pode ser ângulo, pois que posições inusitadas escondem imperfeições. Pode ser detalhes, pois que nem sempre o conjunto fará justiça à obra. É a carne retalhada que se torna melhor esganiçada pelo selvagem. Aos que cobiçam ao longe a complacência, mas aos que forçam o ataque, os olhos condenam. Ou não. Sabe-se lá? O certo é que quem olha sabe o que pensa, mas em sua maioria desconhece os sentidos do outro. E se os olhos não autorizam, cortam, desdenham ou maltratam.

O olhar enigmático encanta. O perdido atiça a curiosidade. Mas o assertivo, muitas vezes desmonta o mais autoconfiante dos esnobes. Existem os languidos assim como se espalham os vivazes e interesseiros. Os sorrateiros e desinibidos. Numa festa luxuriosa como a nossa, todos olham e se provocam. Aprovam-se ou reprovam-se. Insistem ou buscam novos alvos mais condolentes. Tristes ou contentes tomam conta até mesmo de quem não conhecem. Por que no carnaval daqui é assim. Todos os olhos se sondam e se vigiam. Como que guardando a carne pretendida, ainda que nunca chegue a se consumida. São os olhares de posse e cobiça que se contradiz aos desconsolados, que rejeitados se fantasiam de velhas raposas que partem em busca de uvas menos verdes e inacessíveis. Olhos que se maltratam por ambicionar corpos narcisicamente inatingíveis.

Os olhos pidões clamam por piedade e talvez por isso se contetem com as sobras. São as velhas hienas devorando carcaças que se encharcam de salivas. Há também os românticos que nunca cruzam os olhos de príncipes ou princesas. São olhos tristes que não entram na dança e choram como pierôs apaixonados que esperam o desconhecido num próximo bloco. Na contramão da bucólica passividade, os olhares fulminantes ropem barreiras intransponíveis aos menos audaciosos. Encantam suas vítimas como boas najas e com beijos eloquentes roubam o ar dos desavisados.

Domingo de Carnaval - Ladeiras de Olinda/PE.
O olhar se traduz no ato de aplicar o sentido da vista. Procurar ver, algo ou alguém. Deriva do latim “adoculare”, que por extensão se entende como ato de fitar os olhos ou a vista, mirar ou contemplar. No sentido mais popular que nos cabe, olhar de cara é encarar. Estar de frente é estar voltado para alguma coisa ou algum lugar. Mas olhar também é pesquisar, observar, sondar, examinar ou estudar, mesmo que apenas possibilidades. Atentar ou reparar, ainda que com sentido zombeteiro e venal. Pois que os olhos também matam o que não se deseja, o que se repele ou não excita. Não se sai no carnaval sem ser olhado, avaliado e logicamente qualificado. Os mesmos olhos que categorizam também rotulam e estigmatizam os corpos. São os olhos dos debochados que não apenas reputam, mas também julgam e [des]consideram.

Tem olhos soltos e olhos presos. Tem os que se revelam e se expõem em paqueras incansáveis e voláteis. Outros se privam dos olhos gordos, pois que alguns são mesmo de mal argoro e por isso metem medo. Os olhos amedrontados se espantam com tanta algazarra e libertinagem e viçam em seus isolamentos. Fazem coro os olhos apavorados que diante de tanta comilança se benzem e fogem apressados. São olhos dos que se dizem salvos por canalizarem suas libidos aos céus e pedirem punições para as novas Sodoma e Gamora pernambucanas. A esses, os olhos de Baco sorriem, pois que suas carnes já servem ao banquete de outros deuses. A fora isso, que castigo haveria de vir se em Recife e Olinda não existe mais espaço para tanto fogo. Aqui, nosso fogo que queima também é divino, pois que o Rei Sol queima a carne por dentro e nos faz transpirar de alegria. Nossas lagrimas escorrem pelos [e nos] corpos que choram o suor que exala o cio visceral e assegura a fertilidade. Não é bacanal, mas é festa. ladeiras, flertes, pegações e multidões.

Assim, carnaval é vinculo com a natureza que se mostra em ebulição sob o comando de Dionízio. É o retorno aos ritos pagãos do deus Pã que autoriza a liberação dos instintos. Festa observada pelos deuses antigos através dos olhos de foliões. Sejam verdes, azuis, caramelados ou negros, serão sempre olhos zelosos que protegem, cuidam e velam por nossa sanidade. E se é verdade que “o que os olhos não vêem o coração não sente”, também vale a máxima de que “a carne é fraca”, e por isso no nosso carnaval, “quem não come com a boca, lambe com os olhos”.
Av. Conde da Boa Vista - Recife/PE.
Ruas de Olinda/PE.


Ladeira da Misericordia - Olinda/PE.




quarta-feira, 9 de março de 2011

CARNAVAL 2011 - O DESRESPEITO COM A TRADIÇÃO CULTURAL DE UM POVO

Sexta-feira de Carnaval - Bairro da Boa Vista - Recife/PE.









O FIM DO TRADICIONAL CARNAVAL DA BOA VISTA.

Seguramente podemos afirmar que este foi o carnaval mais tranquilo de todos os tempos. Ponto positivo para as gestões municipais das duas grandes cidades – Recife e Olinda, referências nacionais do carnaval multicultural. No entanto, por outro lado, registramos também o carnaval mais frio e desestruturado da nossa história. Ponto negativo para o estado de Pernambuco que sempre se consolidou como o melhor, mais irreverente e tradicional carnaval de ruas do Brasil.


Ponte Duarte Coelho - Sexta-feira de Carnaval - Recife/PE.

A magia foi comprometida em nome da mesmice e da falta de conhecimento de causa. Os transtornos começaram logo cedo com o Galo da Madrugada. Símbolo máximo da festa recifense, em plena sexta-feira ainda não apontava na Ponte Duarte Coelho para anunciar o reinado de Momo. Já no centro da Av. Guararapes os últimos retoques apressados tentavam recuperar em vão, o brilho e a beleza tradicional do gigantesco Pálio, representação do Maracatu que a mais de uma década se destaca por evocar a cromaticidade do nosso carnaval. Destaque-se ainda uma decoração inexpressiva que não conseguiu contagiar os foliões. Repetitiva e pobre com belas figuras femininas se que perderam nas dimensões das pontes que cortam a capital pernambucana.

Em algumas ruas as fitas vermelhas e amarelas se mostraram enquanto recurso ultrapassado que só evidenciou a falta de criatividade ou indisponibilidade de recursos. Assim, Recife pareceu mucha de alegria e cores. Revelou-se apagada diante de tanta propaganda e marketing. A falta de criatividade e descomprometimento sociopolítico também puderam ser sentidas, ou melhor, ouvidas em músicas chulas e apelativas que se espalharam pelos quatro cantos da cidade. Enquanto uma exaltava a “posição da rã” em referência direta as posições sexuais, outra repetia sucessivamente um trocadilho acelerado onde o verbo “fugir”  se confundia com o ato de “fuder”. Nesta despropositada fanfarrice super heróis se multiplicavam pelas ruas, avenidas e ladeiras cantando “Foge, foge Mulher Maravilha. Foge, foge com o Superman”. Não se ouvia os velhos frevos, mas em troca tivemos o chato suing do “toma negona... toma na bochecha”. Não se ouviu novos sambas ou afoxés, muito menos maracatus, mas talvez por falta de alternativas um eco humano pode repetir incansavelmente o refrão que dizia: “vou não, posso não, minha mulher não deixa não!”


Av. Guararapes - Sexta-feira de Carnaval - Recife/PE.

Ainda nesse cenário de incoerências o famoso e tão aguardado show de abertura oficial do carnaval recifense mostrou-se mais uma vez recheado de estrelas da música popular brasileira que nada entendem de frevo e por isso não representam nossa alegria. Neste sentido não pudemos culpar os artistas, pois que são excelentes profissionais em sua maioria. O que se pode e deve questionar é o valor agregado a nossa cultura. Somos multiculturais em sentido de expressões artísticas próprias que se mantém por conta, e a custa, da nossa tradição. É neste sentido que não se evidencia ligação nenhuma entre Marina Lima, Wanessa da Mata, Maria Gadú, entre outras/os com o nosso carnaval. Sem querer parecer bairrista ou mesmo invocar um movimento ou sentimento de exclusão das demais expressões artísticas e culturais, insistiria afirmando que somos ricos em diversidade e originalidade musical que melhor representam nosso carnaval. Sugiro então, que ao invés de se investir em grandes cachês para trazer toda essa variedade de artistas consagrados no cenário nacional, que tal repensarmos na valorização e resgate de nossos tradicionais blocos de rua, afoxés, caboclinhos, maracatus e escolas de samba, que sofrem para se manterem vivos? Isso sem falar nos ganhos com novas possibilidades de investimentos em composições, seja através de festivais de frevo ou patrocínios que possibilitassem a sobrevivência de nossa própria cultura e valorização de nossos artistas e nossa gente.

Mas como diz o ditado popular: “em casa de ferreiro, espeto de pau”. E numa lógica mercadológica que se pauta nas facilidades do “encontrar pronto”, pois que fazer o novo parece dar sempre mais trabalho, nossos atuais e geniais gestores preferem continuar investindo nossos impostos em uma espécie de processo de aculturação ao replicar uma cultura de massa que só tem contribuído para apagar nossa memória. Ponto negativo para a falta de entendimento e de comprometimento com nossas genuínas manifestações culturais. Ponto negativo para nosso povo que inconscientemente, ou inconsequentemente, de forma passiva aceita e incorpora músicas e melodias vazias que nada nos diz ou dirá de nossa gente, histórias e costumes. Neste aspecto é preciso que se entenda que esse processo de aculturação silenciosa compromete em muito o desenvolvimento sociocultural das futuras gerações pelo simples fato de alienar nossa originalidade e criatividade.

Desfile de Agremiação na Av. Conde da Boa Vista
Também vale o registro de que já algum tempo o carnaval do Recife, vem se transformando no Carnaval do Recife Antigo. Diga-se de passagem, num carnaval falso burguês que pode ainda ser classificado como festa para estrangeiro ver. Avitrinou-se o carnaval tendo como justificativa a reestruturação da Avenida Conde da Boa Vista que mais desorganizou e atrapalhou a vida do recifenses do que contribuiu com melhorias significativas. Não só se congestionou o trânsito, mas também o desfile dos blocos que foi comprometido em nome da preservação e manutenção da tão famosa via urbana. Baniram  os trios elétricos e freviocas por comprometerem o asfalto e assim, anularam a alegria de um povo que formava um tapete de cabeças coloridas e frevavam Recife adentro. Hoje poucos blocos refazem o percurso original e parecem ser estimulados a mudar de roteiro. Alguns seguem puxados por pequenos carros de som e escassas orquestras de frevo. Este ano a avenida se transformou em simples corredor de acesso, meio do caminho que levava ao nada. É que a escutura do galo da madrugada, apesar de mais bela e imponente que nos anos anteriores, permaneceu os cinco dias de carnaval num completo breu. Talvez não tenham tido tempo para pensar numa iluminação digna de sua esplendorosa plasticidade. Ou talvez, simplesmente tenha faltado, mais uma vez, os tão sonhados e necessários entendimento e respeito ao povo. De uma forma ou de outra, fato é que o carnaval a cada ano parece se afastar mais do bairro da Boa Vista, sendo concentrado no bairro do Recife Antigo.

Com a mudança do roteiro tradicional do desfile do Galo da Madrugada, que esse ano foi transferido para a Av. Dantas Barreto, o que facilitou sua fluidez, sumiu também o antigo pólo da Av. Guararapes que concentrava e animava os foliões moradores do bairro. Não havia palco montado e muito menos shows. No lugar, apenas a infraestrutura montada para o Galo da Madrugada, que readaptada e muito menos organizada e sem acomodações adequadas ao público serviu de espaço para o desfile das agremiações de caboclinhos, maracatus e escolas de samba. Era a representação máxima de um carnaval feito para pobres, onde tudo é muito feio e se dá numa avenida nua e desprovida de emoção e respeito. Que diga-se do descaso com o antigo prédio do Trianon, tradicional espaço de antigos e coloridos camarotes, que este ano se revelou desintegrado da folia. A central espiga branca de janelas quebradas continuou comportando seu público seleto, porém presos numa redoma sem encantos e desnudo do colorido tais foliões pouco viram do Galo e, consequentemente quase nada viram do verdadeiro carnaval pernambucano. Questiona-se então, se será este o fim do carnaval do também tradicional bairro da Boa Vista, ou terá sido apenas falta de cuidados? Para nossa sorte, ainda permanecem no bairro os espaços para as tradições de resistência negra que acontecem no Pátio do Terço e Pátio de São Pedro. Espaços estes, que continuam contando com menor infraestrutura enquanto se investe pesado nos espaços brancos e sem memória nos entornos do Marco Zero.

Av. Conde da Boa Vista - Sext-feira de Carnanval
Por fim, talvez esse seja mesmo o maior propósito das atuais gestões. Ilhar o carnaval e aburguesar a tradição que não é branca e nem tão pouco higienista, mas ao contrário é multicolorida em sua diversidade étnica e misturada em costumes que lutam para se manter íntegros e vivos em sua originalidade. Deste modo evidencia-se, também no carnaval, a eterna luta de vida e de morte entre a manutenção da tradição e a invensão da contemporaneidade de um carnaval vazio e sem grande expressividade.

Faltou originalidade no carnaval 2011. Acima de tudo faltou emprenho e investimento digno. Assim, se podemos afirmar que esse foi o carnaval mais tranquilo de todos os tempos, principalmente no bairro da Boa Vista, é simplemente pelo fato de não ter havido realmente carnaval em Recife.

E viva o Carnaval da inclusão!



Sexta-feira de Carnaval - Av. Conde da Boa Vista
 
Av. Conde da Boa Vista - Sexta-feira de Carnaval

Decoração do Carnaval - Ponte Duarte Coelho - visão do Antigo Trianon

Av. Conde da Boa Vista, Recife/PE

Desfile das Agremiações na Av. Conde da Boa Vista



Desfile de Agremiações e a desestrutura da Av. Conde da Boa Vista
 

sexta-feira, 4 de março de 2011

CARNAVAL DO RECIFE: O DIA QUE JOÃO DA COSTA SILENCIOU O GALO

Galo da Madrugada na Av. Guararapes. Foto do
Jornal do Commercio, 10.02.1991.


A CIDADE ATRASADA – O DESRESPEITO DE UMA GESTÃO INEFICIENTE

Enquanto morador do bairro da Boa Vista, me acostumei a acorda nas quartas-feiras das semanas pré-carnavalescas ao som do co-co-ri-có. Era o anuncio fantástico de que o Galo já estava de pé sobre a Ponte Duarte Coelho, que atravessa o rio Capibaribe para interligar as duas ilhas que forma o centro do Recife. Também me era comum, como aos muitos foliões que habitam os amontoados de prédios da Av. Conde da Boa Vista, correr a janela para reverenciar o símbolo máximo de nosso carnaval. Porém, para minha surpresa ou decepção, fui frustrado em minha atitude que já se configura como tradição. Não havia Galo. Não havia nada. Apenas a estrutura metálica que aporta o grande Pálio, localizada na Av. Guararapes figurava descoberta e sem grandes atrativos.

Esse, logicamente, não é o primeiro (e com certeza não será o ultimo) registro de descaso da atual gestão municipal, encabeçada pelo atual prefeito trapalhão João da Costa. É surpreendente e vergonhosa a ineficiência de sua gestão, como é ultrajante sua falta de comprometimento com a manutenção do patrimônio público. Tanto que ao longo dos dois últimos anos de mandato evidencia-se a insatisfação dos recifenses, que erroneamente decidiram apostar em um político e gestor totalmente desconhecido e inexpressivo, feito pelo prefeito antecessor. Pena para o povo que perde com o desrespeito a suas tradições e culturas. Pena também para a cidade que tem se tornado fedorenta e mal conservada. Pena das pessoas em situação de rua que se encontram desamparadas e sem cobertura da assistência. Penas que faltam nas asas do galo, que até hoje pela manhã estava ao lado de seu corpo esquelético e inerte, jogado sobre a ponte. Pena para a visível decepção no rosto dos transeuntes acostumados a desordem provocada pelas mudanças necessárias a passagem do bloco.

Nossa sorte é que o carnaval se faz por si só. Independente do reconhecimento e respeito dos gestores públicos, nossa alegria contagiante repara os equívocos e enganos inconsequentes dos descomprometidos enganadores do povo. É que o pernambucano não nega suas origens e muito menos suas tradições que se valorizam e se consolidam através de seus costumes. Somos com água que bate na pedra e furando-a exige passagem. Assim é o Galo da Madrugada, assim é o nosso carnaval que se faz em (e de) história. História essa que talvez o atual prefeito desconheça, ou ainda pior, desconsidere. História essa que vale a pena ser lembrada e recontada as futuras gerações. Em falta de conhecimento, talvez essas seguintes linhas consigam desperta gestores desavisados sobre o valor e importância das tradições que forma a cultura de um povo. Povo que é eleitor. Povo que não esquece os descasos descabidos.

Façamos então um retrocesso na história para tentar resumir uma história prá lá de secular e que se renova a cada dia, a cada novo ano. Neste sentido, dizem os estudiosos que o Carnaval é a uma festa dionisíaca. Dionísio, conhecido deus grego, que segundo a tradição realizava festas homéricas regadas a muita bebida, era também conhecido como o Rei do Vinho, ou Rei Baco entre os romanos. Assim, quando se fala em festa dionisíaca remete-se em sentido direto ao entusiasmo e inspiração criadora de seus seguidores. Pode-se então supor que o carnaval é uma festa divina que exalta os instintos mais naturais e espontâneos do homem. Dionísio, também conhecido como deus dos ciclos vitais e da alegria, representa a natureza agitada, arrebatada e desinibida, o que muitas vezes favorece o tumultuo, a confusão e a desordem, revelando traços da personalidade pernambucana. Traduzindo tudo, podemos dizer que o carnaval é a festa da liberação geral e da liberdade sem limites, onde tudo pode, sem grandes censuras ou regras normativas.

Entre o povo cristão, no período medieval, tais manifestações populares eram reconhecidas como período das festas profanas, que se iniciavam geralmente no dia de Reis e se estendiam até a quarta-feira de cinzas, marcando os jejuns quaresmais. O profano em si, consistia em festejos que incluíam manifestações sincréticas originárias dos ritos e costumes pagãos. Então o carnaval perde o sentido divino para ser reconhecido como profano, uma vez que tanto as festas dionisíacas (ou Baco), saturnais (em homenagem ao deus Saturno – Cronos, na mitologia grega) e lupercais (celebradas anualmente na Roma antiga, em 15 de fevereiro, em honra ao deus Luperco ou Pã, para assegurar a fertilidade) eram marcadas pela alegria sem limites, pela liberação da repressão e da censura, bem como pela liberdade exacerbada em atitudes críticas e eróticas. Desta forma, qualquer semelhança com nosso carnaval, com certeza, não terá sido mera coincidência.

Decoração do Carnaval ou Propaganda Política?
Ponte Duarte Coelho - Recife/PE.
Profano ou divino, o carnaval chegou ao Brasil ainda nos meados do século XVII, trazido pelos portugueses. Apesar dessa origem lusitana, sabe-se, porém, que a nossa festa tem influência européia, principalmente francesa, onde o carnaval acontecia nas ruas e salões de bailes. As mascaras e fantasias já eram recursos comuns e disponíveis aos foliões e a influencia estrangeira torno-se visível através das figuras do Rei Momo e das tantas Colombinas, Pierrôs e Arlequins, entre outras, que invadem nossas ruas. Neste sentido, a festa momesca assume o caráter de farsa e irreverência. Com o início do século XX, o carnaval se popularizou no Brasil, marcando o surgimento das machinhas carnavalescas. Dizem também que a primeira escola de samba, foi criada em 1928, no Rio de Janeiro, que na época chamada de Deixa Falar, passou a ser conhecida nos dias atuais como Estácio de Sá. Quanto à origem do samba existe uma verdadeira celeuma uma vez que alguns estudiosos destacam a origem carioca, ao passo que outros reivindicam o batismo baiano, e outros, o pernambucano. Discussões a parte, o que importa é que aqui nossa festa é marcada pela multiculturalidade, com sua principal representação no frevo.

O frevo que deriva de “frever”, que por extensão se entende “ferver” como água em chaleira quente, metáfora perfeita para nossa cabeça quente e explosividade aflorada onde se fala o que quer e o que pensa sem papas na língua. O frevo se afirmou como dança de rua e de salão, ritmada em compasso binário e andamento mais rápido que o da machinha carioca. Quem dança frevo é conhecido como passista, porque marca a dança num passo que se transforma em alegorias coreográficas individuais ou coletivas, improvisadas e frenéticas. Num entendimento extensivo, pode-se dizer que frevo assume o significado de desordem, arrelia e barulho, pois que se origina da capoeira que era modalidade de luta/dança dos antigos dos escravos.

Galo da Madrugada sobre a Ponte Duarte Coelho:
A decepção coletiva de uma gestão ineficiente.
Hoje em Pernambuco destaca-se o Clube de Alegorias Galo da Madrugada, criado em 1977, no bairro de São José, com o objetivo de reviver as origens e tradições dos antigos carnavais de rua. O Galo da Madrugada, como é mais conhecido, desfila a mais de três décadas no sábado de Zé Pereira para anunciar a alvorada do carnaval. A grande concentração acontecia na estreita Rua da Concórdia, onde os foliões se espremiam e se acotovelavam num empurra-empurra amistoso e divertido; com apoteose na Av. Guararapes que se torna pequena para acomodar a alegria de mais de um milhão e meio de fanfarrões. Considerado o Maior Bloco Carnavalesco do Planeta (Guiness Book, 1995), o Galo muda de itinerário este ano para melhor acomodar seus seguidores. Assim, abandona a tradicional Rua da Concórdia para se aventurar pela Av. Dantas Barreto, mais ampla e retilínea, mas a meu ver, menos glamorosa. De qualquer forma o bloco não perde sua irreverência ou filosofia carnavalesca de origem, e muito menos sua integralidade com o povo pernambucano.

Resta-nos apenas refletir e nos responsabilizar por nossas escolhas, bem exigir providências que priorizem o respeito a nossa dignidade. Não só relativa ao carnaval, mas principalmente em relação aos milhares de excluídos, que independente da modalidade da festa, continua o ano inteiro a margem de uma sociedade pautada na desigualdade social e amparada por políticas públicas ineficientes. Neste aspecto, considero válido repensar no carnaval das pessoas em situação de rua, afinal de contas eles compõem com certeza um bloco de excluídos que teria tudo para entrar também no livro dos recordes.

Av. Conde da Boa Vista - Recife/PE.
Que venha Momo, Dionísio ou Baco para nos trazer sensatez e consciência política e cidadã.

Bom carnaval a todos!

quinta-feira, 3 de março de 2011

O CUIDAR E O PODER NA PRÁTICA DA GARANTIA DE DIREITOS

Praia do Picãozinho - Paraíba

















O QUE SOMOS OU QUEREMOS SER - Ideal ou Fantasia?



Esta semana tive o prazer de participar de uma Oficina de Alinhamento Teórico-Metodológico, promovida por uma instituição internacional, que integra o SGD – Sistema de Garantia de Direitos e atua na perspectiva do Enfrentamento a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil. Além da discussão a cerca da temática, um dos pontos tratados que mais me chamou a atenção dizia respeito aos Cuidados com o Profissional. Dentro dessa perspectiva fomos estimulados ao refletir sobre os sentidos do Cuidar. Palavra derivada do latim, “Cogitare”, que entre outros sentidos pode-se entender pelo ato de prevenir-se, acautelar-se, no sentido de ter cuidado consigo mesmo, com sua saúde e aparência. Num sentido mais amplo, pode-se dizer que cuidar corresponde a provocar inquietação. Assim, poderíamos dizer que o ato de cuidar correlaciona-se a prática da reflexão e provocação de mudanças de pensamentos e comportamentos.

Fomos levados imediatamente a pensar sobre nossa prática profissional enquanto atores técnicos, na assistência social e no sistema de garantia de direitos. Mais especificamente, comecei a refletir sobre minha própria atuação por questões obvias. O fato é que ao estarmos diretamente em contato com todo tipo de modalidade da violência, corremos o grande risco de nos tornarmos também, mesmo que de vez em quando, violadores de direitos. Talvez por introjetarmos determinadas práticas, falta de alternativas de ações mais concretas, outra variedade de fatores, além de nossas concepções pessoais, muitas vezes pautadas em nossa própria construção de sentidos que se deu (e se dá) no processo de inserção em uma determinada cultura, trazemos em nosso bojo conceitos preconcebidos que constantemente precisam ser revisitados e reavaliados. E vale salientar como esse exercício do cuidar de si mesmo nos traz gratas surpresas e constatações surpreendentes quanto aos preconceitos equivocadamente introjetados durante nossa jornada de amadurecimento pessoal e profissional. Na verdade poderíamos estabelecer uma relação imensa de fatores motivadores para a formação de nossas concepções pessoais, que logicamente interferem em nossa condução profissional, mas que acima de tudo revela traços de nossa própria personalidade, o que não seria meu objetivo neste momento.

Basta-nos então, por hora, avaliar o processo de adoecimento destes profissionais, que expostos as violências cotidianas, correm o risco de cometerem equívocos, mesmo que movidos pela crença das melhores práticas. E isso não é raro, o que nos leva a perceber, que em muitas situações o próprio sistema de proteção se torna também violador dos direitos humanos. E neste ponto, penso que se o sistema é feito por pessoas, que os constroem e/ou estruturam a partir de suas perspectivas de mundo (talvez filosofias de vida) e crenças, o problema não esteja no sistema em si, mas nas pessoas de fato. Dentro dessas premissas, acredito que o grande educador e filósofo brasileiro, Paulo Freire, já postulava que “todo oprimido se torna um opressor quando detém o poder”.

Mas qual relação entre o autor, que se destacou por seu trabalho na área de educação popular, voltada tanto para a escolarização como para a formação de consciência, com o ato do cuidar dos profissionais em questão? É que de acordo com sua teoria sobre a “pedagogia do oprimido”, o mesmo destaca a importância e eficácia do diálogo com as pessoas mais simples, não só como método de alfabetização, mas como um modo de ser realmente democrático. E aí poderemos pensar: afinal estamos falando do cuidar ou de democracia? Ao passo que destacaria que não existe cuidado, no sentido real da palavra, em regimes ou gestões antidemocráticas. É que a centralização de poder cerceia a liberdade de expressão e a criatividade humana, fundamentais para a resolução de problemas. Sem liberdade não existe, inclusive construção de novos conhecimentos, e logicamente gera o movimento de resistência, noção básica para todo e qualquer gestor que deseje ser bem sucedido em seus intentos.

Assim, em minha percepção, que logicamente não se traduz como verdade absoluta, vivemos ainda nos ambientes de trabalho sofrendo os reflexos da velha e cruel ditadura que nos martirizou e vitimou por mais de duas décadas. A ditadura é o exemplo máximo da negação de direitos por contrariar as premissas da liberdade e vida social saudável. Talvez seja a base do tão falado nos dias atuais “Assédio Moral”, que se respalda nas relações de poder. Mas se o poder é relativo, caber-nos-ia uma maior reflexão sobre o que de fato significa poder. Assim, podemos entender que tal palavra, derivada também do latim, “potere”, significa ter a faculdade de; possibilidade de; autorização para; meio de, conseguir; força para; ter calma, paciência para; ou ainda, ter força de ânimo, energia de vontade, para; ter o direito, a razão, o motivo de; o que coaduna com a capacidade de gerenciar de forma democrática.

Mas dentro dessa relatividade e complexidade de sentidos relativos a uma mesma palavra, o poder também pode se configurar como dispor de força de autoridade; ter força física ou moral; ter influência, valimento; robustez, capacidade de ter grande influência ou poder sobre algo ou alguém. Neste aspecto, o que desejo destacar é que o poder e o cuidar precisam andar juntos e alinhados em entendimento de sentidos. O poder coletivo é fruto da união dos poderes individuais, logo, se engana quem pensa que detém o poder soberano e absoluto, por que correrá sempre o risco de se tornar tirano. E tirania, que vem do grego “tyrannia”, configura-se enquanto prática de governos e gestões opressores e cruéis, pautados na violência e opressão do povo, representação máxima da coletividade.

O objetivo maior então é refletir sobre o lugar que muitas vezes ocupamos e nos empoderamos, seja pelo poder delegado e atribuído, ou violentamente autoproclamado. Nesta segunda, o cuidar fica comprometido, até por o discurso torna-se incoerente com a prática. O cuidar do outro, partirá de uma concepção egocêntrica de quem detém (ou acredita deter) o poder, pois que na verdade se busca e se pleiteia o cuidar de si próprio, que se traduzirá consequentemente, em autodefesa. A fragilidade de quem tem como prática o poder autoritário se revela na busca incansável de autopreservação, talvez da própria sanidade. É resultado, como diria Freud, da fragilidade egoica, que possivelmente pode ser solucionada a base de psicoterapia. E isso se explica pelo fato do processo de adoecimento se dar de forma inconsciente e no universo da subjetividade. Neste sentido, o sentimento de perseguição causa estranhamento e alucinações persecutórias, onde o outro se tornará sempre um inimigo potencial. Quanto maior a aproximação do outro, maiores os riscos e ameaças sentidas pelo tirano. Isso é como equação matemática, não existe possibilidade de erro.

Desta forma, quando escolhemos ou definimos trabalhar ou atuar, ou ainda, nos entender e reconhecer, enquanto cuidadores é preciso em primeiro lugar cuidar de nós mesmos. Não se cuida de alguém sem antes nos cuidarmos. Essa é a premissa básica do processo do cuidar do outro. É preciso provocar inquietações em nós mesmos, até para que possamos perceber se estamos no lugar certo, ou se apenas buscamos resoluções para nossos próprios conflitos e traumas pessoais. Ainda evocando Freud, diríamos que a construção da personalidade de um indivíduo se dá em um processo contínuo, mas que tem a base na infância. Com certeza uma criança desprovida de acolhimento, proteção e sentimento de pertencimento, no futuro se desenvolverá enquanto sujeito inseguro, desconfiado e ameaçado, dificultando suas relações pessoais e sociais. A desconfiança no outro embasa o sentimento de insegurança tornando-o pronto para o ataque sempre que se sentir frustrado. E isso também é matemático, pois que é científico e comprovado pelos estudos sobre mentes paranóicas.

Talvez o importante seja entendermos que o perigo nem sempre é, ou estar no outro, mas em nós mesmos. Para quem tem (ou acredita ter) e usa o poder autoritariamente cabe a reflexão sobre as fragilidades pessoais, seja no âmbito teórico necessário ao cargo que ocupa, ou ainda no campo emocional. E isso é cuidar de si mesmo, preparando-se para cuidar do outro, seja através de ações próprias e individuais ou de políticas públicas construídas para beneficiar o coletivo e não para favorecer interesses individuais. Assim, quem assume um lugar, independente de qual seja, deve se responsabilizar por suas escolhas. É preciso entender que a vida é dinâmica, e que tanto no campo profissional como na vida cotidiana, os lugares de oprimidos e opressores se revezam sucessivamente. Por isso é importante e fundamental definirmos que lugar se quer ocupar: o de eternos injustiçados e indefesos, que correm o risco de oprimir ao ocupar o poder; ou de indivíduos atuantes, que independentemente das situações adversas se empoderam conscientemente de sua faculdade de conhecimento e poder para modificar estruturas e sistemas opressores.

E como estamos em tempo de carnaval, nada melhor do que exercitar nossas fantasias mais arcaicas (infantis, psicanaliticamente falando) de poderes através das personagens que se traduzem em figuras de autoridade. Autoritárias ou democráticas, essas nos permitem também a reflexão sobre o lugar que gostamos ou gostaríamos de ocupar, e principalmente, dos lugares pelos quais gostaríamos de ser reconhecidos perante o coletivo. Por isso, antes de investirem na fantasia, que para muitas pessoas ultrapassa o período de Momo, melhor investirem no autoconhecimento e fazer da festa também um espaço de reflexão sobre a correlação necessária entre poder e cuidar na nossa prática profissional. Como um observatório da sanidade humana, onde inclusive se pode recorrer aos recursos do uso das máscaras para proteger ou esconder nossa própria identidade. Considerem contudo, que apenas no carnaval é permitido misturar fantasia e realidade, pois que se configura como espaço do autorizo as nossas loucuras e desejos mais inconfessáveis. O resto do ano é espaço da consciência plena e necessária ao exercício e prática do cuidar, primeiro de si, e depois do outro. Pensem nisso, vale a reflexão.

Bom carnaval a todos e todas.