quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O ESPIÃO DA VIDA ALHEIA - UMA NOVELA REAL E URBANA - Capitulo I

AS JANELAS INDISCRETAS DA CIDADE

Quem mora no centro das grandes cidades termina por se tornar testemunha ocular da “privacidade” alheia. Não necessariamente essa invasão de privacidade se dá de forma desproposital ou inocente. Porém, em muitas situações nos tornamos cúmplices acidentais em demonstrações de afetos e também de desafetos entre vizinhos. Do meu campo de visão, que vai da Ponte Maurício de Nassau, que separa a Av. Conde da Boa Vista da Av. Guararapes, no sentido centro; e no sentido subúrbio se estende para além do cruzamento com a Rua da Soledade, posso acompanhar diariamente o cotidiano de mais de mil famílias que se sobrepõem umas sobre as outras em centenas de edifícios instalados no perímetro. E tudo funciona como um verdadeiro Big Brother sem fim. Neste sentido, prefiro pensar em uma novela real que se descortina diante de meus olhos. Recheada de personagens reais em situações cômicas e/ou dramáticas, geralmente desperta uma mistura de emoções que podem variar da simples curiosidade à ansiedade gerada pela impotência imposta pelo anonimato. São dramas cotidianos que se repetem; melodramas que acompanhados por músicas melosas revelam o final de relações amorosas, passageiras ou duradouras; situações de suspense e perigo, que muitas vezes envolvem agressões físicas; e até mesmo tragédias de vidas humanas expostas através de janelas nada discretas.

Nesse jogo comandado pelo voyeurismo observa-se ao passo que se é observado. Exemplo da simples constatação se dá pelo fato de milhares de pessoas se debruçarem sobre suas janelas, muitas vezes, ao mesmo tempo. São momentos onde olhos se cruzam ou se encontram num sentido confirmatório de que se observa o mesmo alvo. Inconscientemente as ruas se tornam extensões de nossas casas, onde as janelas permitem uma amplitude de espaço que vai além dos limites territoriais. Não existem fronteiras e muito menos monotonia. O privado se torna público. E neste exercício de curiosidade nos damos ao direito de mudar de janela, e consequentemente de história, como se muda os canais de uma televisão. Selecionamos as imagens e muitas vezes ajustamos os focos com auxílio de óculos ou binóculos objetivando vasculhar detalhes. E como no cinema mudo, as expressões corporais substituem o áudio. Assim parece não existir um texto pré-determinado como nos filmes ou espetáculos de teatro, pelo menos não no campo da oralidade, o que permite ao observador rechear a cena com intenções que nada mais são do que frutos de sua própria imaginação. É preciso ficar atento aos gestos e performances para concatenar a atuação de cada ator social num escripite que vai se construindo no imaginário de quem observa. Não existe direção de cena ou de arte e assim os enredos parecem se desenrolar por si, divididos em capítulos que não tem tempo exato para acabar. Começo e fim ficam a critério do espião de vidas alheias. E talvez, esse seja o título mais apropriado para a novela da vida real que se vislumbra diariamente em minha janela: “O Espião de Vidas Alheias”. Novela que não define de forma exata os papéis de vilões e mocinhos, cujos desfechos serão sempre imprevisíveis, com ou sem finais felizes.

Milhares de histórias vão aos pouco sendo colecionadas. Algumas tristes, outras maravilhosamente cômicas. Mas em sua maioria dignas de crônicas urbanas, pois que retratam a forma e conteúdo das relações sociais de uma cidade. Penso então no quanto seria interessante e ao mesmo tempo divertido poder escrever sobre tais histórias, tendo como pano de fundo o retrato social de um grande centro urbano. Lógico que se faz necessário destacar que tais escritos trarão muito da minha própria compreensão e concepção de cada fato, de cada situação envolvida. Meu objetivo não expor o privado das relações, mas analisar através do registro a dinâmica destas relações, bem como os contratos de convivência estabelecidos entre os envolvidos, e entre estes e a cidade grande. Para tanto as histórias que passo a relatar imprimem-se em pequenos recortes, recheados de observações, e por vezes, de comentários que objetivam dinamizar a narrativa.

Neste sentido, saliento a não existência de uma prévia seleção de temas ou enredos. Estes iram surgindo de acordo com casualidade e imprecisão da própria vida real. Serão apenas histórias de anônimos abertas ao mundo através de uma janela do terceiro andar de um prédio qualquer na principal avenida do centro da cidade. Logicamente serão observadas as questões éticas envolvidas, no sentido de não possibilitar a identificação das personagens a fim de se poder preservar a integridade das pessoas. Melhor dizendo serão histórias de ficção, baseadas em fatos reais. Desta forma, qualquer semelhança com nomes, dados ou características pessoais poderá ser apenas pura coincidência.

Um desses capítulos teve inicio quando fui acordado durante a madrugada por gemidos, ou melhor, gritos, que vinham do outro lado da rua. Eram pedidos de ajuda no melhor estilo tragicômico. Uma mulher, provavelmente jovem, fazia sexo com alguém no apartamento em frente ao meu. O quarto aceso revelava cortinas finas que balançavam ao vento e pareciam desenhar coreografias que muito bem poderiam traduzir os movimentos de seus corpos. Ela gritava por ajuda. Alguns transeuntes que aguardavam o ônibus na parada abaixo do prédio olhavam aflitos para cima tentando desvendar o mistério. “Ai, Jesus! Ai, meu Deus”. A ansiedade aumentava entre milhares de observadores que acompanhavam o sofrimento da jovem senhora.

Todos queriam saber o que se passava naquele quarto. Alguns mais proativos se avexaram em indagar o vigia que se mostrava indiferente a situação. Novos gritos de socorro: “Me ajuda Jesus. Ai, meu Deus do Céu!”. E mais pessoas se juntavam a multidão de cabeças erguidas. De repente risadas invadiram o ar e se espalharam pela avenida. A reação de espanto e incerteza incomodava aos observadores. “Eles estão é na safadeza”, afirmou uma mulher que perambula todas as noites pelas ruas da cidade. “Cala a boca cadela safada. Tá dando pro teu macho e fica aí gritando, sem vergonha”. Tais reclamações causaram risadas que logo se perderam na madrugada. Minutos de silencio se seguiram até que novos e sucessivos gritos insistiram em insinuar uma aparente violência comum em brigas de maridos e mulheres: “Ai, para, por favor... desse jeito vai me matar”. Novos olhares para o alto, novos sobressaltos, novas insinuações.

Uma travesti que ocasionalmente faz ponto na redondeza respondeu: “Vai morrer? Só se for de tanto fuder... puta safada”. Os comentários se tornavam cada vez mais alto e se criava uma verdadeira algazarra abaixo do prédio. Nos carros e ônibus as pessoas olhavam para cima de suas janelas. Poderia mesmo se dizer que aquele era um acontecimento de parar o trânsito. Os gritos agora variavam de intensidade, alguns bastante altos, alguns baixos e outros abafados. No entanto, apenas se ouvia a voz feminina. Nenhuma palavra era proferida pelo suposto agressor. Isso parecia contribuir para aumentar o suspense entre os ávidos espectadores. Algumas pessoas que bebiam na banca de cachorro quente localizado próximo ao prédio se aproximavam para se inteirar do inusitado acontecimento. Ao passo que as conversas se tornavam mais afloradas, e logicamente apimentadas, a mulher continuava, em espaços ritmados, a clamar por piedade.

Em muitos momentos seus gritos podiam ser confundidos com gemidos, o que dividia as opiniões: “Ai, eu não agüento mais”. Para uns ela estava sendo barbaramente espancada, para outros, não passava de “uma cadela no cio”. O público se agitava em suas apostas e formavam grupos de discussões. Era a vida exposta sem o menor pudor. Uma velha senhora sentada a espera do bacurau se benzia enquanto lia a bíblia. Provavelmente considerava tal situação uma grande heresia. Seria o fim dos tempos? Estaria a mulher possuída pelo demônio? Ou apenas dava ela vazão as suas fantasias e prazer? As janelas do edifício iam se acendendo uma após outra. O mesmo ocorria nos prédios vizinhos. A avenida estava completamente iluminada e as conversas já não se limitavam aos transeuntes. Pessoas das janelas trocavam ou pediam informações para as pessoas na rua. Tinha se estabelecido uma verdadeira rede. As informações também ocorriam de prédio para prédio. Alguém do outro lado perguntou: “estão vendo alguma coisa?”. Me senti desconfortável em estar sendo descoberto. Alguém no andar de cima respondeu: “Porra nenhuma. Só consigo ver as cortinas balançando”.

“Sabe que é a piranha?”, perguntaram de outra janela de meu prédio. “Acho que ela é novata aqui”, veio em resposta do outro lado. Gritos saltavam de várias janelas ao mesmo tempo pedindo silêncio. Ninguém conseguia dormir com aquela agitação toda. Havia certa excitação no ar. A essa altura a policia já havia sido acionada e os soldados se juntaram a multidão que exigia providencias. “Parem com essa putaria. Eu tenho crianças pequenas em casa”, reclamou uma senhora do penúltimo andar. Os soldados pareciam se preparar para invadir o prédio quando de repente, um último grito, sonoramente alto selara o êxtase da platéia: “Ai, meu Deus. Eu vou gozar porra! Eu vou gozar...”. Neste exato instante a multidão foi ao delírio. Gritos, assovios e até aplausos se misturaram as ofensas. A algazarra se espalhara por toda a avenida e as pessoas se divertiam em zombarias. Os policiais coordenaram a dispersão do público e a noite começou a voltar ao normal. No silêncio do quarto o indiferente casal caminhou nu até o banheiro. Depois de um tempo reapareceu na janela, juntos observaram o céu sob o aplauso de muitos. Discretamente fecharam as cortinas e por fim apagaram as luzes.

Aos poucos os andares foram escurecendo até que os prédios se aparam por completo. As pessoas se recolheram e o silêncio se fez na cidade. Tudo voltava ao normal. Nunca mais o casal foi visto e para o bem dos bons costumes e moral puritana da cidade a sexualidade voltou a se reservar ao silencio dos quartos.

domingo, 23 de janeiro de 2011

A TRANSEXUALIDADE E O SENSACIONALISMO DO BIG BROTHER



A TRANSEXUALIDADE NA MÍDIA

Abaixo do meu prédio alguns camelôs ocupam a calçada. Vende-se de tudo, desde CDs e DVDs piratas, a bombons e bebidas. Na esquina já é famosa a carrocinha de variedades, onde durante as noites vários moradores da redondeza se reúnem para trocar conversas. Hoje a temática era o famoso programa global, o Big Brother 11. Cheguei em meio a conversa, mas logo identifiquei sobre o que falavam. “O que é isso?”, disse uma comerciante a quem compro cigarros. O assunto girava em torno da participação da primeira transexual no reality show e as colocações fervorosas confirmavam o desconforto em falar sobre a temática. “O que vou dizer aos meus filhos, que podem ser homem ou mulher quando quiserem?” Questionava indignada a senhora enquanto reabastecia seu copo de cerveja. “E ainda dizem que ela vai pousar nua. Quero ver se ela é mulher mesmo”, completava um senhor que a acompanhava. “Tá essa revista vou fazer questão de comprar, só pra ver se ela tem ´priquita` de verdade”. O comentário apesar de me parecer meio cafajeste provocou risadas. “E se ela tiver?” perguntou a astuta comerciante tentando apimentar a discussão. “Aí, vou levar ela pro meu banheiro”, completou de forma sarcástica o bem humorado senhor. Apesar da vontade em acompanhar a conversa, resolvi que não seria tão sensato me meter naquela animada celeuma que prometia varar a madrugada.

Por fim, a transexualidade saiu do anonimato das ruas e chegou definitivamente aos lares. Através da mídia o “transtorno de identidade de gênero” invadiu milhões de casas nesta última semana. O tema vem ganhando força nas discussões em sites da internet, revistas e jornais, além dos programas televisivos. Fato positivo quando se considera o papel da mídia enquanto instrumento de formação de opiniões, contribuindo diretamente para as transformações necessárias a uma sociedade mais justa e igualitária. Fato negativo, porém, quando a temática é explorada como simples alavancador de ibope sem grandes compromissos com o público e principalmente com os sujeitos envolvidos e alvos dos refletores ávidos por novidade. É que neste sentido a transexualidade torna-se apenas uma curiosidade, e não uma vertente da sexualidade humana que precisa ser compreendida e respeitada em sua essência.

Por mais que se fale sobre os efeitos negativos do Big Brother sobre a grande maioria da população, não se pode desconsiderar seu caráter “inovador” em transformar temas ainda tabus em melodramáticos folhetins do horário nobre. Foi assim que aconteceu com a homofobia “Douradamente” premiada da edição passada e também com a homossexualidade panfletária de Jean Willis. No primeiro caso premia-se o estereótipo da masculinidade exacerbada com demonstrações gratuitas de violência e discriminação. No segundo premia-se a vitima que clama justiça ao público. Contradições? Com certeza não se considerarmos que o único compromisso do programa restringe-se ao fortalecimento do mechandising dos patrocinadores que financiam a maior atração da televisão brasileira. Assim, a polêmica torna-se o grande mote para garantir os recordes sucessivos de audiência, confirmados em onze edições nacionais. Evidencia-se a velha máxima de que nada desperta mais interesse do que a vida alheia. Estimula-se então o voyeurismo popular e ao prazer gerado alia-se o direito de escolha sobre o que pode ou deve ser observado por todos. Numa grande inversão de valores ilude-se ao telespectador levando-o a acreditar em um utópico poder de decisão pelo voto pago. Desta forma vende-se a idéia de um programa pretensamente interativo e democrático onde caberia ao público decidir o destino dos personagens (reais?).

Porém, apesar de todas as manipulações e induções magistralmente regidas pelo (já desacreditado) apresentador Pedro Bial, não se pode desconsiderar a opinião pública (apresentada) enquanto fator de análise. Os índices de rejeição ou aceitação a determinados temas ou sujeitos não deixam de desenhar um retrato de nossa sociedade. Seria, por exemplo, precipitado observar a “coincidência” dos três primeiros candidatos a eliminação serem negros? E o que dizer sobre o fato de se oferecer ao público o poder de escolha entre um negro gay, uma transexual negra e uma negra bailarina? O que estava em jogo, à eliminação de simples competidores ou de identidades sexuais representadas pela heterossexualidade, homossexualidade e transexualidade? E por fim, o que pode nos dizer os 49% de rejeição da Ariadne?

De repente o público teve que lidar com uma personagem misteriosa que tinha realizado um grande sonho. Além de negra, Ariadne se disse transexual e revelou que a prostituição foi o meio viável a efetivação de sua identidade feminina, conseguida através da cirurgia de transgenitalização, ou mais popularmente, cirurgia para mudança de sexo pela qual pagou. Assim, etnia, gênero, classe social e “transgressão sexual” parecem ter se tornado, direta ou indiretamente, motivos mais que suficientes para sua eliminação. Propagar em horário nobre da Rede Globo que se entende ou se reconhece quanto “tri”, por gostar de homens, mulheres e “bichas” não faz de Paula (outra concorrente) uma ameaça a tradição burguesa de nossa sociedade; assim, como já não incomoda o fato do Lucival e do Daniel assumirem publicamente sua homossexualidade, temáticas já comuns em suas telenovelas; ou ainda da Diana falar abertamente sobre sua lesbiandade e se categorizar como “pan” em referencia a abertura para se relacionar afetiva e sexualmente com qualquer pessoa, independente de orientação ou identidade sexual. Mas falar publicamente, para milhões de brasileiros, que preferiu abrir mão de sua masculinidade para se sentir mais confortável enquanto mulher parece ferir de vez a norma reguladora da sexualidade e moral da família tradicionalista.

Independente de minhas opiniões sobre a qualidade e repercussão de tal programa, tendo a considerar mais que oportuna a possibilidade de se evidenciar a discussão relativa ao direito concedido pelo SUS – Sistema Único de Saúde, relativo à gratuidade da cirurgia de transgenitalização. Também indiferente a divergência de opiniões, considero prova de que o Brasil vem progredindo e avançando no entendimento ao que se refere à garantia de direitos para todos. O grande risco dessa discussão tão alardeada pela mídia nos dias atuais, muitas vezes de forma irresponsável, parece se referir ao fortalecimento e/ou retorno da concepção patologizante da transexualidade. Nunca se falou tanto em transtorno da identidade de gênero, e neste ponto é preciso entender que não se trata apenas de um simples desejo que um indivíduo possa ter em ser do sexo oposto. Mas de um complexo de sensações, emoções e desejos que formam e estruturam o entendimento deste indivíduo enquanto pessoa.

Para além do pensam alguns especialistas e profissionais da medicina e da psiquiatria, vista ainda como anomalia e/ou distúrbio, a transexualidade precisa ser entendida e concebida enquanto formação de identidade e personalidade individual. A grande dificuldade e logicamente motivo dos transtornos emocionais e psíquicos, que não podem ser generalizados, consiste das implicações sociais, legais e culturais de alguém se reconhecer enquanto mulher num corpo de homem, ou vice-versa. Assim, a dificuldade é muito mais de inadequação social do que propriamente emocional. E esta quando corre, com certeza deriva também das normas reguladoras de determinadas sociedades.

Talvez nesse sentido, o Big Brother pudesse ser mais responsável promovendo debates sobre as temáticas exploradas, ao invés de lançar dúvidas reforçando estereótipos e preconceitos. Afinal de contas é papel da mídia esclarecer questões abordadas e exploradas em seus programas. Isso sim contribui de forma efetiva para o desenvolvimento de um povo. Por isso, neste quesito penso na importância de se salientar o irreparável despreparo do apresentador, que a cada dia se consolida, e só confirma, sua vocação quase natural para mero apresentador dos shows de calouros a celebridades instantâneas.

sábado, 8 de janeiro de 2011

TRANSEXUAIS E TRAVESTIS - RETOQUES E REFLEXÕES SOBRE OS CORPOS


São Paulo, 2010



TRANSEXUALIDADE - OPÇÃO OU ORIENTAÇÃO SEXUAL?

Em outubro passado este blog completou um ano de existência. Iniciei minhas reflexões falando sobre mim mesmo, talvez  na busca de autoconhecimento. Confesso no entanto, certa surpresa com as repercussões que tais reflexões e pensamentos podem ter causado e ainda estarem causando. Acredito que esse é um espaço democrático onde as pessoas podem e devem contribuir ao expor suas opiniões, pois desta forma ampliamos as discussões de temas muitas vezes invisibilizados por diversos motivos que não nos cabem agora. Independente das [dis]cordâncias, saliento mais uma vez, que essas são apenas minhas reflexões e por isso partem do entendimento e da percepção de como vejo o mundo, com posicionamentos políticos e ideológicos que são meus e não necessariamente precisam ou pretendem se tornar coletivos. Desta forma, não objetivo levantar bandeiras, mas apenas me dar o direito de opinar sobre assuntos que fazem parte de meu cotidiano.

Talvez por isso, muitos “digam que sou ácido, mas também me achem doce. Prefiro dizer que sou humano e por isso convivo com minhas próprias contradições. Vivo em eterna ebulição e alguns acham que tenho picos de sensibilidade. A esses dedico meu respeito e adimiração, pois que me conhecem e reconhecem enquanto pessoa. Aqueles que me olham, apenas observam, e a partir de suas próprias convicções tendem a me rotular. Contudo, àqueles que se arriscam a me conhecer, correrão sempre o risco de não conseguirem me adequar ou enquadrar em seus modelos "estanques" de comportamentos pré-moldados. Sou crítico e por isso me chamam de "Espetácio". Alfineto e incomodo porque sou direto, sem rodeios, sem máscaras e Sem Luvas” (trechos da primeira postagem). E assim me posiciono no mundo por acreditar que essa é a minha identidade, e por entender que esta se estabelece pela diferença.

Coaduno então, com a teoria de que nos reconhecemos a partir do outro, a partir do qual também nos constituímos. Neste contexto, diferença e identidade são inseparáveis, só existindo uma em razão da outra, o que a torna “Legal” (inclusive no âmbito jurídico) por possibilitar nossa individualidade enquanto sujeitos do coletivo. E é desta diferença que me proponho mais uma fez a reflexão. Diferença que tanto tem causado as guerras, os conflitos, os mal entendidos, as injustiças e as barbáries, sejam através da subjugação, das ameaças, das agressões e da morte do outro. Em muitos dos treinamentos, palestras e workshops que tenho desenvolvido sobre identidade sexual, voltados a técnicos da educação, psicologia, assistência social e/ou da área jurídica entre outras, bem como a turmas de estudantes de faculdades e universidades, um questionamento comum é sobre como denominar a atração sexual e desejo que alguém sente ou pode sentir por outra pessoa. Desejo e atração que se diferenciam da nossa, e que consequentemente por isso, nos parece fugir e contrariar a norma. Acredito que neste ponto torna-se pertinente nos questionar sobre que norma estamos falando. Da que estabelecemos enquanto premissa para nortear nossas próprias concepções de comportamentos e condutas no âmbito pessoal e social; ou da norma construída culturalmente, e que até hoje tenta se estabelecer enquanto regulação moral da sexualidade humana? No fringir dos ovos o grande embate parece consistir no fato da grande maioria, através de suas concepções pessoais, tender a classificar e/ou justificar as orientações sexuais do outro enquanto “opção”, e não enquanto “orientação” tão natural quanto a sua própria.

No senso comum a denominação “opção sexual” tem ganhado força por se acreditar que tanto o desejo quanto a atração sexual pode ser direcionada ao nosso bel prazer, e assim, optar-se-ia em direcioná-los a homens ou mulheres. Considerando que a norma heterossexista estabelece as relações sexuais entre pessoas do sexo oposto como regra comum e natural, parece que tal denominação se mostra, muitas vezes, carregada de juízos de valores relacionados à “safadeza ou imoralidade” alheia. Desta forma, não se mostra incomum pessoas verbalizarem que os homossexuais, por exemplo, escolheriam gostar e se relacionar afetivo e sexualmente com pessoas do mesmo sexo, o que se configuraria por extensão como opção consciente pelas “práticas desviantes a norma”. Mas muitas vezes, o que está por trás de tal concepção e posicionamento é o julgamento de valor moral sobre o caráter do outro, base dos tantos preconceitos e também da homofobia.

Acredito que tal concepção equivocada encontra-se pautada no processo de formação cultural e na educação que por muito tempo nos limitou a uma discussão acerca do sexo ao invés das sexualidades. Por séculos nos restringimos a falar sobre os órgãos genitais, que enquanto conformação particular distingue o macho da fêmea, atribuindo-lhes um papel determinado na geração. Dentro desse contexto ao pensarmos o sexo, imediatamente relacionamos o tema aos conjuntos das pessoas que possuem o mesmo sexo biológico, ou seja, grupos que dividem homens e mulheres. Em outras palavras, falar em sexo nos leva a pensar automaticamente em pênis e vagina, bem como nos atos e práticas possíveis e permitidas a cópula através de seus corpos, que se traduzem pontualmente no ato sexual em si. De outra forma, falar em sexo nos leva diretamente aos papéis e representações sociais do que vem a ser homem e a ser mulher na sociedade, distinguindo as coisas de um e de outro.

No entanto no esquecemos, ou ainda pior, não conseguimos ampliar a discussão para campo analítico da qualidade desse sexo ou sexual, o que se configuraria na discussão sobre a sexualidade. Presos ao tabu inicial não nos permitimos ir além do aceitável socialmente, o que parece contribuir diretamente para o desconforto sentido pela maioria dos profissionais e estudantes durante tais treinamentos ou conversas. Um ótimo exemplo dessa tensão e incomodo refere-se às dificuldades das pessoas em expor suas opiniões quando questionados em público. A sexualidade então será sempre descrita como “relação sexual”, “ato sexual” e/ou “fazer amor”. Quase nunca se destacará o prazer e o erotismo envolvidos, muito menos, os jogos e variações possíveis que possibilitam explorar os corpos enquanto conjuntos de pontos e fontes sensoriais a serem descobertos e estimulados. Nesse prisma o exercício da sexualidade tende a se mostra “mecanicamente” restrito aos genitais, impedindo a percepção e concepção do corpo num contexto totalitário enquanto fonte de prazer, que a meu ver nada mais é do que o resultado moralista empregado pelo modelo higienista das décadas passadas.

Outro aspecto que chama a atenção é a definição de prazer diretamente limitada ao gozo. Gozo esse que se configura na ejaculação. Logo, para se sentir e demonstrar, ou ainda, demonstrar sentir prazer com ou por alguém é preciso que a ejaculação se faça presente. Chamo novamente atenção para o fato de se fazer necessário refletir sobre o que vem a ser “gozo”. Refere-se esse ao orgasmo, que é puramente orgânico e biológico; ou ao prazer e satisfação sentidas e provocadas pelo toque e contato do e com o outro? O orgasmo é apenas biológico ou psicológico e subjetivo? A gente goza apenas com a genitália ou com o corpo como um todo? Toda essa reflexão que proponho tem muitas vezes viabilizado uma preparação necessária para se pensar nas variedades e possibilidades do prazer e da excitação sexual gerados pelos corpos. Uma tentativa de nos desviar do modelo anatomo-fisiológico, centrados em corpos de machos e fêmeas, para pensarmos em instâncias mais amplas e assim transitarmos por perspectivas menos rígidas de masculinidades e feminilidades. Para adentrarmos num universo de sexualidades e identidades sexuais mais fluidas, onde transitam não só os corpos, mas os prazeres e as excitações sejam essas, hétero, gays, lésbicas, bi ou trans.

Especificamente relativo às pessoas transexuais, femininas ou masculinas, penso que uma visão limitada do gozo enquanto resultante unicamente do biológico inviabiliza o entendimento necessário a concepção mais ampla de prazer. Se ficarmos presos a tais concepções, sempre nos equivocaremos em acreditar e/ou creditar que as pessoas trangenitalizadas (em outras palavras, pessoas que se submeteram a cirurgia de mudança de sexo) não gozam. Porém, se pensarmos na perspectiva de que o gozo mostra-se subjetivo, no sentido de algo que é individual, pessoal e particular, entenderemos que este integra o domínio das atividades psíquicas, sentimentais, emocionais e volitivas (ato pelo qual a vontade se determina a alguma coisa) de cada sujeito individualmente. Assim, esse gozo foge do conceito limitante do biológico para se estender/expandir numa concepção de prazer que gera bem-estar emocional, orgânico e psíquico. Ainda nessa perspectiva, o orgasmo transcende o fisiológico para se alargar no campo das sensações ou sentimentos agradáveis, harmoniosos, que geram satisfação e deleite não só ao corpo biológico, mas a alma, sede de afetos, dos sentimentos e das paixões.

Talvez essa concepção, se mostre inclusive como meio viável a reflexão às tantas mulheres e aos tantos homens, “não-trans”, que por vários motivos não atingem o orgasmo durante o ato sexual compartilhado com o outro. E neste sentido, talvez o alívio gerado pela compreensão de que não necessariamente se precise gozar especificamente pela genitália, lhes possibilitem a descoberta de muitas outras possibilidades de prazer e excitação que os levem ao clímax sexual. Acredito que as “mulheres-trans” e os “homens-trans” têm aberto em nossas sociedades e culturas o espaço necessário para a resignificação individual e coletiva dos velhos conceitos que mantém a sexualidade no campo dos tabus (entendendo-se por extensão a proibição convencional imposta por tradição ou costume a certos atos, modos de vestir, temas, palavras, etc., tidos como impuros, e que não pode ser violada, sob pena de reprovação e perseguição social).

E por fim, ainda no universo das reflexões sobre temas viabilizados pelas sexualidades tidas como transgressoras, se faz necessário entender que “opção” relaciona-se diretamente ao ato ou faculdade de optar, ou seja, se configura como livre escolha do indivíduo. De outro modo, “orientação”, como a palavra mesmo já exprime, relaciona-se ao sentido de direção dada, impulso, tendência e/ou inclinação. É neste sentido, que no campo das sexualidades humanas (que deve ser entendida no plural, pois que têm se mostrado variável e flexível) não se pode pensar em “opção” enquanto determinante fundamental a construção de uma identidade sexual. Mas ao contrário, torna-se necessário o entendimento dessa construção enquanto resultado de uma “orientação”, ou seja, do sentido e foco para qual o nosso desejo se encontra e/ou se mostra direcionado. De forma mais simplista podemos dizer que não escolhemos de quem gostar, mas apenas nos descobrimos gostando de alguém ou de algo. E este ou isto se torna nosso objeto do desejo, independente de ser masculino ou feminino. O direcionamento do nosso desejo não é fruto de processos conscientes. Assim, no campo dos desejos, prazeres e excitação a única “opção” que realmente, e conscientemente, nos cabe é decidir por nossa felicidade ou frustração emocional.

Resta-nos então entender que enquanto sujeitos do desejo e de direitos não precisamos mais, e muito menos devemos, nos restringir aos corpos biológicos, que nos é dado. Mas ao contrário, nos expandir em possibilidades e viabilidades dos corpos que não se constituem apenas enquanto carne, mas sim constituído e construído num conjunto de prazeres, sentimentos, sensações e gozos, ainda que para isso se torne necessário resignificá-los e adequá-los a nossa identidade. É neste sentido que acredito e aprovo as iniciativas e motivações tecnológicas da medicina moderna que tem possibilitado a construção de novos corpos. Pois para mim não são os corpos biológicos que devem determinar nossa identidade, mas inversamente, são as identidades que devem adequar e moldar esses corpos ao nosso bel prazer para nos fazer íntegros conosco e perante o coletivo.

E fechando momentaneamente as reflexões registro meu desconforto relativo aos termos “reparativo” e “corretivo” tão comumente empregados as cirurgias de transgenitalização. Em minha concepção não existem corpos errados, logo não existindo o que reparar ou corrigir. Existem sim, corpos que precisam de retoques e aprimoramentos possíveis através da sapiência e arte do homem, o que o torna divino em essência, como também os são todos os corpos, transgenitalizados ou não.

São Paulo, 2010.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A VITÓRIA DAS TRAVESTIS E TRANSEXUAIS PERNAMBUCANAS

Parada da Diversidade - Av. Paulista/SP - 2009.




UMA LUTA PELA LEGALIZAÇÃO DO NOME SOCIAL

O ano de 2010 termina com uma excelente vitória para todos nós que lutamos pela efetivação da garantia de direitos e igualdades sociais. Finalmente foi publicado o Decreto Lei nº 35.051, que garante as travestis e transexuais pernambucanas a inclusão do nome social nos registros estaduais relativos a serviços públicos prestados no âmbito da administração pública estadual direta, autarquias e fundacional, sendo tal conquista resultado da I Conferência Estadual LGBTT, realizada ainda em 2008, e dos esforços de muitos que direta ou indiretamente participam e contribuem para a consolidação e fortalecimento do reconhecimento do segmento LGBTTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos).

Dizer que tal medida contribui diretamente para a afirmação dos direitos humanos, bem como para a construção de uma sociedade mais justa e livre de toda forma de preconceito e discriminação seria desmerecer a importância da vitória de uma batalha que já se arrasta por muito tempo - reconhecer definitivamente as travestis e transexuais enquanto sujeitos de direitos. Mais que isso, significa o reconhecimento dos integrantes desse segmento da população não mais como passageiros de segunda classe, garantindo-lhes a efetivação de uma identidade social e pessoal, direito irrestrito e fundamental a toda pessoa humana. Tal medida exige dos órgãos públicos tratamento igualitário e reitera o entendimento de que identidade se configura naquilo no que me reconheço e aceito. Não é um nome legalmente oficializado que diz de minha orientação, mas ao contrário, minha orientação diz de minha identidade e me possibilita definir o que me nomeia. O decreto estabelece os parâmetros necessários e legais para que milhares de travestis e transexuais não sofram mais constrangimentos e assédios morais no acesso aos serviços de educação, saúde, assistência social e justiça, entre outros. Antes de tudo, retira da clandestinidade quem sempre esteve na invisibilidade e na exclusão.

Relembro então uma importante e significativa passagem de minha inserção pela Assistência Social. Estávamos exatamente no ano de 2008, quando abordamos a temática junto a um grupo composto por mais de cinquenta profissionais, técnicos das áreas de psicologia, pedagogia e serviço social, integrantes do quadro técnico do Programa Vida Nova – Pernambuco Acolhendo a População em Situação de Rua, política pública do Governo do Estado, voltada a população em situação de rua, do qual muito me orgulho em ter participado e contribuído para a construção da proposta pedagógica piloto para os Centros da Juventude, bem como da implantação de uma metodologia pautada no Respeito, Dignidade e Direitos – RDD, desenvolvida e implementada enquanto estratégia de inserção social.

Percebemos o quanto difícil ainda se tornava discutir Sexualidade e Gênero, mesmo entre profissionais com formação acadêmica e o dito conhecimento relativo às premissas básicas que regem os direitos humanos. E neste sentido, destaca-se a fundamental diferença entre conhecimento e entendimento, fato evidenciado ao percebermos o quanto os discursos se tornam e se apresentam contraditórios quando levados e guiados por uma cultura machista e heterossexista como a nossa. Reconheço logicamente, a dificuldade sentida por muitos em abandonar as velhas concepções construídas sócio-culturalmente ao longo de suas vidas, resultantes do modelo higienista que configurou o sexo unicamente aos fins reprodutivos. E é neste sentido, que a meu ver, revela-se ainda entre tantos profissionais a necessidade da quebra dos velhos paradigmas para se possibilitar a uma concepção e compreensão mais ampla do individuo enquanto sujeito do desejo.

Na referida capacitação técnica o que se pode observar foi à intolerância, a mesma muitas vezes fundamentada na ignorância e desconhecimento dos fatos. Naquele momento formou-se uma barreira de resistências que muito bem poderia ser traduzida como pânico infundado em contrariar a norma reguladora que estabelece a heterossexualidade como primazia da sexualidade humana. É fato que somos e fomos educados e formados por rígidas regras sociais que nos estabelecem como homens ou mulheres, não existindo a possibilidade de meio termo. E que inevitavelmente dentro desse contexto, as sexualidades que contrariam a regra reprodutiva tornam-se desvios de conduta e caráter, logo se configurando ou sendo configuradas como patologias. Em outras palavras, o que se apresentava ali nada mais era do que um reflexo ou reação “natural” que objetivava a proteção e manutenção de suas zonas de conforto. Afinal de contas o que se colocava diante de seus olhos era a inevitável reflexão, individual e coletiva, sobre os conceitos pré-estabelecidos que regiam a décadas seus comportamentos e compreensões acerca do outro, e por que não dizer, de suas próprias identidades.

O grande entrave parecia consistir exatamente na dificuldade da grande maioria em entender que não é um órgão genital, apenas, que nos diz de nossa construção identitária, mas uma gama de fatores, sentimentos, emoções, identificações e desejos aliados, que formam complexos processos subjetivos para nos constituir em plenitude enquanto pessoa. Por outro lado, para nós capacitadores, ou melhor, pretensos facilitadores, o imenso desafio consistia em como conscientizar a grande parte dos presentes de que o fato de ser possuidor de um pênis ou de uma vagina pode não ser suficiente para uma pessoa se configurar e se constituir enquanto sujeito do masculino ou do feminino, sucessivamente. Sabíamos que falar de gênero nunca fora fácil para a maioria das pessoas, mas não se tornaria impossível se conseguíssemos que de boa vontade, os que ali estavam exercitassem a tendência e capacidade humana em admitir modos de pensar, de agir e de sentir diferentes dos de um indivíduo ou de determinados grupos, sejam esses políticos ou religiosos.

Por isso seria preciso mais que apresentar novas concepções conceituais, fazê-los entender que no amplo e vasto território das sexualidades humanas as categorias identitárias e classificatórias já não se mostravam suficientes e/ou adequadas para abranger às diversas e diversificadas orientações sexuais dos adolescentes e jovens inseridos no Programa. Era preciso acima de tudo oferecer-lhes o ambiente e o clima adequados às reflexões menos estanques e rígidas sobre as sexualidades, favorecendo análises mais abertas para poderem considerar as possibilidades de fluidez no fato e/ou ato de “ser” e “estar” hétero, homo ou bissexual em determinados momentos e/ou ciclos da vida. E nesse sentido investimos nossos esforços objetivando preparar o terreno para o objetivo principal e foco da capacitação.

As propostas levantadas pela equipe de Coordenação Técnica da qual fazia parte na época, visavam o atendimento as reivindicações das jovens travestis e transexuais quanto à necessidade e direito da adoção de seus nomes sociais, bem como, relativas ao uso dos banheiros femininos, nos Centros da Juventude. Levantou-se então o principal questionamento: afinal de contas, “os mesmos” deveriam ser considerados enquanto sujeitos do feminino ou do masculino? Iniciamos discutindo sobre o emprego do artigo definido, bem como sobre as possibilidades plurais de configurações de masculinidades e feminilidades. Não para nossa surpresa, o corpo anatomo-fisiológico lhes servia como principal fundamento, e por tanto, considerava-se homem todo indivíduo com pênis e mulher quem tinha vagina. O discurso estava pautado no recorte do sexo biológico e não no de gênero como desejávamos. Para a maioria era impossível desvincular a concepção biológica da construção da identidade de cada sujeito, e logicamente desconsideravam a subjetividade envolvida, na contramão da concretude de um falo ou ausência deste.

Outra discussão se referia à contrariedade da concepção aprendida sob o prisma legal. O nome designava o sexo de cada adolescente e jovem daqueles centros, logo se deveria respeitar tal normatização. Tudo isso de certa forma já nos era esperado. Mas, o mais preocupante era o fato de que para alguns daqueles profissionais o programa deveria atuar numa perspectiva de ajuda aos jovens que enfrentavam uma fase transitória e conflituosa. Em outras palavras, em suas concepções pessoais e profissionais era preciso adequar e contribuir com os jovens que apresentavam as tais “famosas crises de identidade”, e nunca estimulá-los as possibilidades e variáveis de suas próprias sexualidades. Constatamos então que para muitos daqueles, aquela ainda era a concepção concreta de juventude, momento transitório ou conflituoso onde se precisa e se busca orientação direcionada, o que muitas vezes justifica uma fundamentação didática e conceitual pautadas nos dogmas cristãos.

Não conseguia esconder minha frustração diante da sensação de fracasso, avaliada por mim, sucessivamente, como falta de capacidade de persuasão e fundamentação teórico-metodológica. Porém o tempo e a experiência me mostraram a importância de persistimos em nossos intentos, e acima de tudo, de fortalecermos nossas convicções ideológicas para encontrar caminhos e estratégias de sucesso. Era preciso insistir em falar sobre o que acreditávamos e antes de partir sozinhos para a luta, angariar adeptos e parceiros a nossa causa. Também foi preciso compreender que muitas vezes não se ganha uma guerra em uma única batalha. Quase sempre se faz necessário aliar paciência a persistência para aproveitar as possibilidades que se apresentam e assim contribuir para o verdadeiro processo de transformação cultural de um povo e/ou sociedade.

Aquela batalha estava vencida, mas não perdida. Outros momentos mostraram-se mais proveitosos. Foram capacitações, encontros, congressos, oficinas, mesas redondas, mini cursos e palestras. Era preciso multiplicar a informação para abrir espaços para discussões mais profundas e abrangentes. E se dois anos podem parecer muito tempo para a efetivação de mudanças que se mostram urgentes para a garantia de direitos de igualdade, os mesmos tornam-se insignificantes quando comparados a séculos de estruturação e formação de uma cultura tão tradicionalista como a pernambucana. Fato é que hoje me sinto participe desse processo de mudança, e fortalecido no meu entendimento relativo ao real sentido e significado do que vem a ser direitos humanos. E acima de tudo, sinto-me orgulhoso por contribuir para o fortalecimento de que enquanto sujeitos, somos livres para as mudanças que se fazem e se fizerem necessárias, não só no coletivo ou individual, mas principalmente no âmbito pessoal, seja no que se refere aos ajustes e alterações dos corpos, nomes ou identidades.

Assim, parabéns a todos os profissionais conscienciosos e cumpridores de seus papéis. Parabéns a todas as travestis e transexuais conscientes de suas capacidades de luta pela conquistas de Respeito, Dignidade e Direitos. A primeira etapa já foi consolidada na representação de Lei. Agora é exigir a aplicação do que agora se transforma em norma e regra de conduta moral e social.

Parada da Diversidade/SP - 2010.