domingo, 28 de novembro de 2010

A VERDADEIRA HISTÓRIA DO BRASIL - Capítulo I - Da Colonização ao Extermínio Indígena

Epitacio Nunes
Mestre em Psicologia
QUILOMBOS: 
UM SONHO DE LIBERDADE DEMOCRÁTICA

Revendo a história de Pernambuco, e consequentemente a do Brasil, no que se referem às contribuições mais que significativas dos negros para o processo de desenvolvimento econômico, social e cultural do país, inevitavelmente é preciso falar dos “quilombos”. E para entender sua importância, da qual deveríamos nos orgulhar, e não ao contrário renegar, é preciso atentar para seu significado também histórico, cultural e principalmente social. Assim, “quilombo”, que deriva do “quimbundo”, língua banta dos bundos ou ambundos da Angola africana, tem como sentido direto: muro, paliçada, de onde “kilumbu” pode ser entendido enquanto recinto murado, campo de guerra, povoação ou associação guerreira. Talvez o mais importante disso tudo se refira ao fato de que os quilombos não eram constituídos apenas por negros fugidos, que em sua maioria se estabeleciam nos interiores dos estados brasileiros. Sua principal representação, o “Quilombo dos Palmares”, segundo alguns historiadores, encontrava-se localizado no interior de Alagoas e formava uma sociedade estruturada e organizada com regras e normas próprias, configurando-se enquanto estado independente. Era muito mais do que simples esconderijo, aldeia, cidade ou conjunto de povoações onde se abrigavam escravos fugitivos, mas ao contrário, de uma forma mais complexa e menos simplista, se caracterizava enquanto Estado de tipo africano formado nos sertões brasileiros.

Em Pernambuco, Palmares tornou-se um grande problema para a Coroa do Império Português uma vez que muito se falava de sua existência, sem contudo, ninguém saber ao certo sua localização. Assim, tal quilombo secreto tornava-se o paraíso desejado pelos fugitivos e crescia enquanto mito e ameaça a ordem colonial. Sabia-se apenas que ficava nas longínquas montanhas, na parte superior do rio São Francisco, entre matas fechadas e por isso inacessível. Era preciso dias de viagem em meio à florestas perigosas e desconhecidas, mas apesar das tantas fantasias e histórias inventadas ninguém duvidava de sua existência. Palmares não foi apenas ficção, mas realidade que surgiu no final do século XVI, com os primeiros negros que se refugiaram no local e que com o tempo tornara-se a meta e o ideal de vida em sociedade para os que buscavam a liberdade, incluindo-se os negros, os índios e os brancos.

Apesar de saber que na minha época de iniciação escolar, lá pela metade da década de 1970, vivíamos em plena ditadura, não acredito que nos dias atuais as aulas de história sejam menos fantasiosas e excludentes. É que naqueles tempos não se contava a história do Brasil tal como os fatos aconteciam ou aconteceram de verdade. Digamos que era uma espécie de releitura permitida ou talvez uma licença poética que favorecia os bons feitores da colonização. As grandes conquistas eram todas comandadas por homens brancos e assim passamos a nos orgulhar de personagens como D. Pedro I, Princesa Isabel, Pedro Alvares de Cabral, Tiradentes, grandes abolicionistas e também os heróicos bandeirantes, que destemidos desbravavam e conquistavam novas terras e estendiam as fronteiras brasileiras. Aprendemos a repetir que éramos um gigante deitado em berço esplendido, sem mesmo entender o que tal fato significava e muito menos a que custos nos tornamos uma grande civilização.

Acho então que a história do Brasil precisa ser (re)contada de outra forma, talvez menos romanesca (sonhador, devaneador, fantasioso, romântico, quimérico, fabuloso, utópico) e mais verossímil. Imagine-se então voltando no tempo. De regresso ao período da colonização onde o Brasil, ou Terra da Santa Cruz, era apenas uma extensiva mata verde onde os nossos antepassados viviam da caça e da pesca. Eis que de repente grandes navios invadem suas margens e homens civilizados e demasiadamente armados estabelecem os primeiros contatos com os chamados “selvagens”. Daí para frente, precisamos nos esforçar para imaginar os resultados dessa empreitada, pois o que se aprende nas escolas não dá conta dos detalhares derradeiros (pelo menos na minha época). Os portugueses com certeza devem ter se espantado com tanta exuberância e inocência livremente expressa nos corpos desnudos de nossos índios. Era um povo primitivo, certamente oficializaram em seus registros de bordo. Talvez os últimos homens primitivos, descobertos pelos grandes, inteligentes e desenvolvidos europeus. Para eles um grande achado, para nossos ancestrais talvez, apenas o início do inferno.

Para lidar com aquela gente era preciso primeiro manter contato oral, ou seja, seria necessário fazê-los falar língua de gente. Mas como ensinar “seres não humanos” e se expressar como homens de verdade? Tentou-se então, primeiro ensinar aos indígenas uma nova língua, pela qual se iniciaria o processo de aculturação. Era preciso também que aprendessem o mais rápido possível o pudor em relação aos órgãos genitais, bem como o temor a Deus. Neste aspecto, acredito que a nudez incomodava os estrangeiros muito mais por lhes despertarem desejos do que propriamente por caracterizar a primitividade de uma raça. Também na cabeça daqueles homens civilizados seria por demais irracional permitir que se acreditasse em deuses que habitavam florestas, ou mesmos em antepassados com poderes mágicos, pois que isso lhes empregaria um caráter humano. E logicamente o Deus de um povo civilizado tinha que ser superior aos homens, e por isso sobre-humano. Esse deus não habitaria junto aos simples mortais, mas definiria as regras e normas para as condutas de comportamentos que caracterizaria a civilização.

Logo, pode-se observar que civilização torna-se algo passível de aprendizagem, ou melhor, construído a partir de uma cultura. Seria de certa forma, o mesmo processo pelo qual ensinamos aos nossos filhos os princípios de civilidade. Afinal de contas estamos acostumados a treiná-los e condicioná-los (sendo bem extremista) de forma a se comportarem, se comunicarem e se relacionarem com seus pares dentro de uma lógica e norma socialmente estabelecida e culturalmente construída como civilizada, logo ordenada (alguém discorda?). Assim, é através desse processo que ensinamos e também cobramos civilidade do outro.

Mas no processo imposto aos indios imperava uma perspectiva etnocêntrica, pautada em uma cultura européia que estabelecia suas crenças, mitos, visão de mundo, organização do trabalho, e principalmente a divisão de classes sociais. Como o Brasil era uma colônia portuguesa nada mais sensato que se empenharem em transformar os nativos brasileiros em cidadãos portugueses, ou pelo menos tentar fazê-los parecer menos animalescos. Isso, contudo, só se tornaria possível fazendo-os civilizados. Penso então, que foi assim que os “bondosos” jesuítas invadiram nossas terras (que ainda hoje lhes pertencem, através das aquisições e doações feitas pelos nobres portugueses às tantas ordens religiosas) e começaram a catequizar os selvagens e ensinar uma nova língua e linguagem. Era preciso purificar seus corpos e almas para salvá-los da bestialidade.

Refletindo sobre a visão etnocêntrica desses “gentis” colonizadores, pela qual faziam acreditar que o seu modelo de sociedade era mais evoluído dos que a dos selvagens índios brasileiros, penso até que pontos estes não eram mais bárbaros e selvagens do que os inocentes habitantes das florestas. Afinal de contas, invadir, se apropriar e erradicar toda uma raça não parece tão civilizado quanto como tentaram e tentam nos ensinar durante os primeiros anos escolares. É neste sentido que talvez devêssemos explicar a nossos alunos os sentidos e conceitos de bárbaros, selvagens e primitivos já no ensino fundamental. Considero logicamente, que para isso seria necessário considerar questões históricas e temporais envolvidas. Com certeza assim os faríamos perceber as mudanças conceituais e políticas de cada época e que influenciaram as mudanças de sentidos de tais palavras. Considero mesmo, que dessa forma estaríamos formando indivíduos mais conscientes e capazes de discernir e construir suas próprias convicções, bem como, de elaborar suas idéias e opiniões próprias.

Digo isto por considerar alienante nosso processo de formação, uma vez que depois de anos descobriremos que tudo que nos ensinaram (ou ainda ensinam?) não passou de “contos da carochinha”. Mas voltando a nossa história de bondades para com um povo primitivo, não nos é difícil imaginar os conflitos e guerras travadas entre os nativos e os estrangeiros civilizados. Quantos indios foram assassinados e infectados com doenças vindas de longe para as quais não possuíam anticorpos? Quantos destes foram capturados e violentados sexualmente e mortos? Quantas de nossas tribos foram impiedosamente dizimadas? O que fizeram com nossa língua nativa, o tupi-guarani (família linguística do tronco tupi, constituída por numerosas línguas faladas por povos indígenas do Brasil, da Argentina, do Paraguai e da Bolívia)?

Especificamente sobre a vida indígena em Pernambuco, alguns historiadores e antropólogos destacam que remontar esse período histórico é uma tarefa ainda a ser realizada, principalmente devido ao fato de que os indios pernambucanos não tinham uma linguagem escrita. Desta forma, salientam também que na história oficial contada os personagens indígenas aparecem sempre como seres quase animais a serem domados ou exterminados. Neste sentido, revela-se que se de um lado os pernambucanos, assim como toda a sociedade brasileira, assimilou a contribuição indígena a sua formação étnica, por outro, além de seus usos e costumes, não nos foi ensinado a valorização relativa à participação do elemento indígena em nossa alimentação, influencia no português que falamos ou na arquitetura das casas de taipas que tanto caracteriza(ram) o nordeste brasileiro. Se não falamos de nossa origem primeira, os indios, também renegamos logicamente as contribuições sobre os mesmos aspectos dos negros traficados posteriormente.

Não aprendemos nas escolas, por exemplo, a etiologia de palavras que nomeiam importante e turísticos municípios de nosso estado como “gravatá” (derivação do Tupi – “caraguatá” - que designa vários gêneros da família das bromeliáceas, entre as quais: caruatá, coroá, craguatá, crauatá e gravatá); e, “caruaru” (do Tupi, “jacuraru” - designação comum a uma espécie de repteis do gênero Teius, animal de coloração geralmente verde-oliva com manchas e faixas pretas no dorso e flanco, lado inferior amarelado, e cuja pele tem valor comercial na região). No centro de Recife, por exemplo, temos o bairro de “Parnamirim”, nome que também deriva da junção de palavras Tupi (Paraná = rio e Mirim = pequeno; logo, parnamirim = rio pequeno ou diminuto). Outro bairro, chamado Bomgi, tem em sua origem na delimitação de uma antiga estrada de boiadas. O termo em si é derivado do verbo “mugir” (sonoridade emitida pelos bois) que sofreu variação para Bonji, ou Bom´Ji, que em Tupi significa “rio que faz curva”. E ainda “Tacaruna”, vocábulo indígena que significa “serra de muitas pontas ou cabeças”.

Ainda neste aspecto, se quer aprendemos que os rios que cortam nossa cidade – “Beberibe” (lugar onde cresce a cana) e “Capibaribe” (derivação de Caapiur–y-be ou Capibara-ybe, que significa rio das capivaras ou dos porcos selvagens), são provas vivas de que os antigos canastrões portugueses nada tinham a descobrir por essas terras. Assim, os mesmos não poderiam ser denominados como descobridores, mas sim, como gatunos invasores. Para uma aprendizagem mais abrangente, e como dita anteriormente, menos alienante, seria preciso explicar a nossos jovens alunos que como em outras regiões do Brasil, a ocupação de Pernambuco também se deu pela costa, e que especificamente aqui os indios foram escravizados e obrigados a trabalhar nas lavouras de espertos colonizadores que estabeleceram em nossas terras seus engenhos de açúcar. Apesar de na época ser comum a escravidão de negros em outros países “civilizados”, no Brasil optou-se primeiro pela escravidão indígena, por significar menos custos em relação ao tráfico dos africanos.

A história de lutas que nos caracterizou enquanto “leão do norte” não começa com os colonizadores, mais sim com nossos antepassados indígenas que se revoltaram com tal regime de exploração e partiram para os conflitos que se deram em assaltos, devastações de engenhos e propriedades, promovidos pelas tribos dos Caetés (que habitavam Pernambuco, Paraíba e Alagoas), dos Potyguaras (conhecidos como comedores de camarão) e dos Tabajaras (que habitavam o Maranhão – antigos aliados dos portugueses). Tais ações resultaram na morte do primeiro bispo português em terras brasileiras, motivando a Coroa de Portugal a estabelecer a escravidão perpétua aos indios Caetés. Tal punição ou penalidade seria posteriormente estendida a todas as demais tribos indígenas que habitavam o litoral brasileiro, institucionalizando o regime primário definido por alguns teóricos com “esbulho” (traduzindo, entende-se: roubar; saquear; defraudar, privar da posse, espoliar, desapossar, despir). Também foram instituídas pela Coroa Imperial penalidades como escravidão e morte aos indígenas que se rebelassem. E de proprietários naturais, os indios passaram a condição de fugitivos e foragidos produrados, restando-lhes de imediato o abrigo em matas serradas e de difícil acesso.

Com a prosperidade do empreendimento colonial, novos espaços foram sendo ocupados e seguidos conflitos pela posse da terra foram sendo travados, originando guerras entre colonizadores e colonizados. Temidos e ferozes bandos de desbravadores foram trazidos de São Paulo a fim de favorecer e estender o domínio dos colonizadores, tornando-se estes, inclusive, proprietários de muitas das terras invadidas. Novamente expulsos, grande parte das tribos indígenas foram exterminadas em campos de batalha, e os poucos sobreviventes buscaram abrigo em terras cada vez mais distantes do litoral. Sendo assim, é preciso também explicar em salas de aulas os impactos negativos da tão propagada civilização que nos foi imposta pelos portugueses, bem como a influência no desenvolvimento de nossa sociedade e cultura atual.

Desta forma, inicio aqui um novo capítulo da história brasileira, ou pelo menos uma nova tentativa de recontar nossa própria história. Esclareço contudo, que meu único objetivo resume-se a (re)avaliar detalhes, fatos históricos e processos que contribuíram para a formação de nossa gente, fato ou proposta que não apresenta nenhum ineditismo. Saliento ainda que não anseio, por hipótese alguma, desmontar ou ainda negar a importância da história oficial. Mas apenas propor uma reflexão sobre nosso processo de aprendizagem e de como o processo de colonização contribuiu e tem contribuído diretamente para os atuais processos de exclusões. Faço então um convite todos que se dispuserem a contribuir para construirmos juntos uma nova versão, seja pela simples leitura desses escritos ou pela contribuição direta através do envio de novos estudos e pesquisas sobre fatos históricos relevantes.

Jurerê Internacional - Santa Catarina/2010.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

HISTÓRIAS DA NEGRITUDE BRASILEIRA - Capítulo II: A Ausência dos Negros nos Contos de Fadas


Recife, 2009.






















O PROCESSO DE EXCLUSÃO NAS HISTÓRIAS INFANTIS

Como todo bom nordestino cresci ouvindo histórias e causos populares. Na verdade, muitas dessas eram lendas fantásticas, oriundas das culturas indígenas e africanas. Assim, muitas vezes peguei no sono ouvindo as travessuras do “Saci-Pererê”, as maldades da “Comadre Fulouzinha”, do “Boi-Tatá” e/ou do “Curupira”, ou mesmo as assombrações da “Mula sem Cabeça”. Essas histórias fazem parte do folclore Brasileiro, e principalmente nordestino, que tem se configurado como o conjunto das tradições, conhecimentos e crenças populares, expressas em provérbios, contos ou canções. Acima de tudo, o folclore (palavra derivada do inglês: Folk = povo, e Lore = saber) representa o conhecimento das tradições de um determinado povo.

Cresci também ao som das histórias mais aveludadas de origens européia, recheadas de príncipes e princesas de cabelos louros e olhos azuis. Eram os contos de fadas sempre pautados nas dicotomias sociais. Assim aprendemos a distinguir o bem do mal, o belo do feio, e o bom do ruim, pois que estas histórias tinham como objetivo ensinar regras do bem viver. Especificamente no que se refere à beleza e a feiúra (ou ausência de beleza), nos foi ensinado e imposto um padrão estético. O belo se tornou sempre branco, com traços afilados, dentes alvos, olhos claros, cabelos lisos e louros. E os belos se mostravam sempre esguios e donos de uma bondade sedutora. Estes eram seres encantadores que deviam nos servir como exemplo. Na lógica dessa dicotomia, um conceito é sempre dividido em dois outros conceitos que lhe esgotam a extensão. Ninguém então poderia ser belo e feio ao mesmo tempo. As pessoas ou eram bonitas ou feias, boas os más, magras ou gordas, altas ou baixas. Talvez o maior exemplo seja a eterna luta travada entre o encanto das delicadas fadas e a injustiça das invejosas e malvadas bruxas.

De um lado as fada (que vem do latim = fata), concebidas como entidades fantásticas, geralmente representadas por mulheres em sua maioria belas e dotadas de poderes sobrenaturais. São as representantes e defensoras do bem. No outro extremo as bruxas (de origem pré-romana), que por extensão significam mulheres feias e rabugentas, praticantes da maldade e feitiçarias. Dizem no nordeste que se um casal (no modelo heteronormativo, que por extensão significa união entre um homem e uma mulher) tiver sete filhas consecutivas, e a última não for batizada pela irmã mais velha, a mesma torna-se amaldiçoada e durante as noites de lua cheia se transforma em coruja para assustar as pessoas. Assim, também descobrimos que a noite esconde os mistérios, feitiços e horrores, pois que é o habitat do mal. Então aprendemos também a gostar do claro e temer a escuridão. E para afastar o medo e os perigos traduzidos em influências malignas que podiam nos desviar do bom caminho, nos ensinaram a rezar. Cresci desta forma, ouvindo histórias e rezando para afastar os fantasmas.

Em todas essas histórias que ouvia inexistiam pessoas negras. Nunca houve, por exemplo, princesas de cabelos crespos, e com exceção da Branca de Neve, todas as outras tinham cabelos longos e louros. Mas essa também era por excelência alva demais. Seu cabelo era liso, o que se configurava como bom. Por extensão o cabelo crespo tornara-se ruim. Penso então no quanto seria (e continua sendo) difícil para as meninas negras se identificarem com tais heroínas. O mesmo ocorre com os meninos, pois que os príncipes sempre tiveram cabelos esvoaçantes e fartos. Especificamente no caso da Cinderela, a madrasta má e suas filhas vilãs tinham cabelos pretos, o que colocava a loura em um pedestal de bondade e virtudes angelicais (será por isso que os anjos também são louros?). As bruxas tinham cabelos pretos, quando muito grisalhos ou totalmente brancos-cinzas, o que revela a mistura entre o bem (branco) e o mal (preto).

Fica explicito então, o recorte étnico empregado aos contos de fada. Recorte esse reforçado mesmo entre as crianças de cabelos crespos. Tanto que quando crianças, em brincadeiras onde imitávamos (ou encenávamos) tais contos, logicamente crianças negras ficavam de fora por falta de personagens que lhes coubessem. Éramos então orientados pelos adultos para não excluir as pessoas devido à cor da pele. Pediam-nos para exercitar a criatividade, incluindo novos personagens para possibilitar a participação e interação de todos. Assim nossos contos ficavam repletos de empregados, amas, auxiliares de bruxas e seres estranhos, inventados para aumentar os tormentos ou amenizar o sofrimento das brancas mocinhas injustiçadas.

Naquela época isso tudo nos parecia muito natural. Nossos contos de fada replicavam os papeis sociais impostos pelo mundo dos adultos em que estávamos inseridos. Lembro que durante a adolescência iniciei minha carreira teatral numa escola pública de doutrina católica apostólica romana. E ao decidirmos encenar uma versão de “O Patinho Feio”, o grupo reivindicou o personagem para um garoto negro que integrava o elenco. Na compreensão dos mesmos o teatro que fazíamos nada mais era do que a representação da nossa própria realidade, e para nós adolescentes da época ficava difícil imaginar e viabilizar outras possibilidades. Na vida real e também nas escolas os negros ocupavam apenas os cargos considerados inferiores. Era raríssimo ver um professor que não tivesse a pele clara, quando muito, estes eram pardos (como eu), mas não eram considerados e muito menos se reconheciam como negros. Estes por sua vez eram sempre as merendeiras, as faxineiras, os jardineiros, comerciantes, porteiros e vigilantes.

Também entre os alunos a desproporção era gritante. Em toda minha vida estudantil, e até na acadêmica, consigo contar nos dedos os amigos e colegas negros com quem estudei. Negritude era assunto que não entrava na vida e/ou pauta escolar, com exceção das aulas de História onde se aprendia que a Princesa Isabel libertou os escravos. Não se fazia, por exemplo, referências aos líderes negros, mas ao contrário, sempre se exaltava os homens brancos que lutaram pela abolição. Os mesmos brancos que no passado escravizaram os negros, durante nossas aulas figuravam como heróis. O recorte étnico era então reforçado dentro do próprio espaço escolar, tanto que também eram excluídos os indios que tinham fama de preguiçosos. Neste caso específico, relembro também de um espetáculo que montamos em homenagem ao “dia do índio”, e hoje percebo o quanto foi absurda nossa bem sucedida montagem. É que os personagens indígenas eram todos brancos. Na verdade nem sabíamos a cor dos indios, e então, como justificativa dramatúrgica criamos a desculpa de que os mesmos pertenciam a uma tribo que adoravam a deusa lua. Aos componentes negros do elenco (que eram no máximo dois) restaram os papéis dos vilões que atacavam tal tribo.

Mas absurdo ainda, considero a falta de preparo e descompromisso dos professores no sentido de nos levar a reflexão ou maior aprofundamento em pesquisas que embasassem nossas montagens. E neste sentido, destaco mesmo que nunca fomos, por exemplo, estimulados a realizar releituras de nossas lendas. Essas sim, povoadas de personagens cromáticos e étnicos. As lendas ficavam apenas para as noites enluaradas, quando em baixo do céu estrelado minha mãe se colocava a ninar seus filhos. Na verdade não sabíamos distinguir estórias de lendas. Para nós era tudo a mesma coisa e o que na verdade nos importava era o encanto ou terror causado pela interpretação dada ao conteúdo. E nisso ela era uma verdadeira mestra, pois as histórias mesmo repetidas sucessivamente sempre tinham algo de inovador. Hoje entendo as lendas como as mais puras representações da tradição popular. Tanto que o sentido da palavra já traduz sua natureza (lenda que vem do latim – “legenda” = coisas que devem ser lidas). Assim, as mesmas nada mais são do que a narração escrita ou oral, de caráter maravilhoso, na qual os fatos históricos são deformados pela imaginação popular ou pela imaginação poética. De forma geral, entende-se que de certa forma as lendas são mentiras ou invenções baseadas em fatos que podem ou não, ser ou terem sido reais.

Um exemplo clássico é o caso de “O Negrinho do Pastoreio”, lenda considerada meio africana e meio cristã. Segundo alguns historiadores o negrinho do pastoreio era frequentemente contada pelos brasileiros que defendiam o fim da escravidão, ainda no século XIX. Alguns chegam mesmo a afirmar sua origem gaúcha, que nos anos seguintes se espalhou pelo Brasil a fora, absorvendo e incorporando elementos regionais. A história em si, fala de um estancieiro malvado que açoitava seus negros e peões. Durante um dia de muito inverno (o que configura talvez a origem da narração), teria ele mandado um menino negro, de quatorze anos, pastorear cavalos e potros que acabara de comprar. Ao voltar ao engenho, no final da tarde, o garoto lhe comunica o sumiço de um de seus melhores cavalos. Ele então pega o chicote e espanca o menino a ponto de lhe deixar o corpo todo ensanguentado e em carne viva. Após o ato de tamanha barbaridade ordena que o mesmo volte e encontre seu animal favorito. Com o insucesso o garoto é novamente chicoteado e amarrado nu sobre um formigueiro. Dizem que durante toda a noite se pode ouvir seu choro e gritos de dor. Porém na manhã seguinte quando o fazendeiro chegou ao local tomou um grande susto. É que o menino estava inteiro e sem nenhuma marca das chibatas. Ao seu lado se encontrava a Virgem Maria, e mais adiante o baio fugitivo e os demais cavalos. O estancieiro então se jogou ao chão, e aos seus joelhos lhe pediu perdão. O menino nada respondeu, apenas beijou as mãos da Santa e partiu montado no cavalo negro, conduzindo a tropilha. Dizem os mais antigos, que durante a noite ainda é comum vê-lo montado, correndo pelos campos.

Apesar de bela a história revela toda a arbitrariedade que norteou e representou a escravidão no Brasil. Nunca se soube ao certo se tal fato aconteceu em verdade, porém não é preciso ir muito longe para se constatar que a escravidão representou um grande e famigerado genocídio. Faço tal observação considerando que em sentido amplo, genocídio se configura enquanto “crime contra a humanidade, que consiste no intuito de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, cometendo contra ele quaisquer atos que objetivem matar seus membros; causar-lhes graves lesões à integridade física ou mental; submeter o grupo a condições de vida capazes de destruí-lo fisicamente, no todo ou em parte; adotar medidas que visem a evitar nascimentos no seio do grupo; realizar a transferência forçada de crianças de um grupo para outro”. Neste aspecto, penso não se poder ver muita diferença entre o antigo modelo escravocrata nacional e o regime nazista alemão, mesmo ainda considerando os contextos históricos e ideológicos.

Nossos poucos registros históricos revelam, mesmo que de forma imprecisa, o grande número de negros que foram mortos por seus senhores e também senhoras; as condições de subjugação e inferiorização as quais foram submetidos; as violências corporais sofridas, incluindo o açoite, amputações, queimaduras a ferro quente e castigos que incluíam dias acorrentados em troncos. Também não nos é difícil constatar o fato de crianças terem sido naturalmente separadas de seus pais e vendidas ou trocadas entre os senhores de engenhos como mercadorias ou animais. Alguns escravos eram herdados, enquanto que outros eram dados como presentes. Não eram reconhecidos ou tratados como humanos, mas como animais de tração pelos quais se negociava valores. Trancafiados nas senzalas, alimentavam-se de pastos e restos de comidas, como a exemplo de nossa famosa feijoada, que na época era preparada com orelhas, restos e vísceras de animais. Eram as sobras da casa grande que alimentava e mantinha a senzala.

Através do processo de aculturação lhes proibimos o culto religioso e negamos sua cultura, fragilizando a manutenção e fortalecimento de suas identidades. Roubamos-lhes os heróis, a liberdade e a honra, assim como suas descendências e hereditariedades. Por séculos lhes negamos a condição de seres humanos e lhes outorgamos uma inferioridade genética e evolutiva. Exploramos sua força de trabalho, lhes ensinamos a subordinação e negamos possibilidades igualitárias de desenvolvimento. Por fim, os descartamos com a abolição e os mantivemos as margens sem estrutura e condições de subsistência digna. Renegamos suas histórias de luta e resistência, negando o processo identificatório. E fizemos isso, por décadas seguintes, os excluindo de nossas histórias infantis e dos livros escolares. Assim como escondemos até hoje debaixo do tapete toda a sujeira e barbárie cometida no passado. Neste sentido, acho que de certa forma nos negamos a ressuscitar os velhos fantasmas para que não sejamos obrigados a pedir desculpas.

Acredito que já é hora de revisitar a história oficial e possibilitar aos negros o reconhecimento de sua participação na constituição histórica, política e social brasileira. Acredito mesmo na necessidade de pedidos de desculpas oficial. Não que tal ato passe a representar uma reparação justa e suficiente, mas ao menos, se tornará marco para o processo de transformação social e cultural do país. Como diz o antigo dito, que se tornou popular, é “preciso dar a Cezar, o que é de Cezar” e permitir que se reconstrua um novo processo de identidade, que não será nem negra e nem branca, mas especificamente brasileira e genuinamente resultante da real mistura das raças que forma nosso povo. É tempo também de misturar as cores e transformar nossas lendas e causos populares expressão literária de nossa gente.

Penso por fim, que não mais precisamos dos príncipes e princesas dos contos de fadas importados, pois que temos (e sempre tivemos), reis e rainhas, guerreiros e heróis nacionais, sejam estes de origem africana, indígena ou européia. Basta-nos apenas reavaliar nossa cultura popular e assim valorizar os personagens fantásticos e reais que povoam nossas lendas, contos e causos, contados e recontados através de gerações.

domingo, 7 de novembro de 2010

HISTÓRIAS DA NEGRITUDE BRASILEIRA - CAPITULO I


Recife, 05 de novembro 2010
















NOVEMBRO: PORQUE PRECISAMOS DE MÊS DA CONSCIENCIA NEGRA?

Na quinta-feira passada, 04 de novembro, Recife deu inicio as comemorações relativas ao Mês da Consciência Negra. As ruas da cidade foram invadidas por milhares de pessoas que se reuniram na 4ª Caminhada pela Liberdade Religiosa, que partiu do Marco Zero, passando pelo Palácio das Princesas, e seguiu até a Praça do Carmo. Novembro consta no calendário oficial como mês da consciência negra, e no próximo dia 20 comemora-se a morte de Zumbi dos Palmares, líder negro que lutou pelo fim da escravatura no Brasil. Comecei então a repensar na história dos negros, desde o processo de colonização aos dias atuais. Especificamente em relação a mim, sempre me senti inconformado e insatisfeito em relação a denominação de “pardo” em meu registro de nascimento. Por curiosidade, sempre gostei de saber qual o significado real de cada palavra e logicamente sua origem. Recorrendo ao dicionário, descobri, por exemplo, que pardo deriva do latim “pardu”. Ou seja, deriva zoologicamente de (Leo)pardus, por se considerar que tal terminação servia como adjetivo para referir as manchas de cor escura que distinguiam o leopardo do leão. No Brasil, sua referencia também se dá para o pardal, pássaro de cor parda. Assim, meu registro de nascimento revela que sou classificado como uma pessoa de cor entre o branco e o preto; quase escuro. O dicionário trás ainda outros adjetivos correlatos, tais como: de um branco sujo, duvidoso; de cor pouco brilhante, entre o amarelo e o castanho; ou mulato. Talvez tenha sido uma forma encontrada para estratificar a pele do brasileiro, fruto de uma miscigenação que envolveu o branco europeu, o negro africano e os indios nativos.

O mais interessante é que cresci me entendendo como pardo, mesmo sem entender o significado real de ser ou me reconhecer como tal. Eu era pardo e pronto. Não era branco, como logicamente gostaria devido aos preconceitos da época, mas também não era negro. Eu seria, uma espécie de “metá-metá”. Nessa falta de identidade própria, digamos assim, fui educado como branco e frequentei escolas de branco. E logicamente aprendi a me comportar como tal e identificar nos negros o meu diferente. Aprendi durante a adolescência e juventude várias piadas depreciativas sobre negros, como também assimilei certos ditados populares pautados no mais arraigado racismo. Na minha época era comum se proferir frases como “a coisa tá preta”, “aquele é um negro de alma branca”, “domingo é dia de branco”, “nego quando não caga na entrada, caga na saída”. Meus pais contavam que antigamente ao se descrever a passagem de três homens, destacava-se: “Lá vai um tenente, um homem e um negro”. E eu tinha um avô, por consideração apenas, uma vez que ele era irmão da mulher que criou minha mãe (a velha história de meninas pobres do interior que eram levadas para as casas das tias afortunadas) que dizia que as mulheres negras andavam feito patas ou ainda que elas eram boas para montar. Tudo isso dito e repetido sucessivamente diante de crianças em formação, que encontravam nas escolas os reforços para a segregação racial, contribuíram para aminha formação também preconceituosa. E neste sentido, digo mesmo que é difícil negar uma formação cultural, senão através do entendimento e reconhecimento de novos conceitos.

O que quero salientar é o fundamental papel da educação na formação de crianças e jovens brasileiros, que repetem constantemente os aprendizados ainda construídos sobre as bases machistas e pautados em preconceitos sociais e religiosos, na homofobia e xenofobia. Destaco também a importância de ações coletivas, como a referida caminhada, tais como as paradas da diversidade e o os gritos dos excluídos, no sentido de trazer à tona a reflexão necessária a sociedade sobre os velhos conceitos pré-estabelecidos e pré-concebidos. Acredito e continuo repetindo que só se muda uma cultura tradicionalista pela educação. Tanto que durante o evento, via-se claramente nas ruas o constrangimento e estranhamento de muitas pessoas. Havia um certo receio que pairava no ar e um incomodo fundado no medo pelo desconhecido. Era a “macumba” que duramente combatida na minha infância, agora invadia as ruas do centro da cidade. Eram os terreiros de candomblé que por muitos anos se refugiaram nos subúrbios, que desfilava pelas principais avenidas da Recife conservadora. Era a quebra dos estigmas do preto, pobre, homossexual e macumbeiro que rompia as cortinas e saia das margens escuras para as ruas iluminadas.

O evento culminou com a confraternização entre os vários representantes dos terreiros de candomblé em frente a igreja de Nossa Senhora do Carmo (que se manteve logicamente de portas fechadas). E neste aspecto saliento minha falta de conhecimento, que credito a formação católica da “santa igreja” que recebi na infância. Participei então da caminhada enquanto militante e pesquisador curioso, porém bastante leigo, podendo inclusive me mostrar equivocado em alguns aspectos relacionais. Falo então, a partir deste momento do lugar de espectador comum, envolvido em uma manifestação para mim se mostrava inédita. Confesso que me impressionei com a grandiosidade e organização da caminhada. Era a meu ver, acima de tudo, um culto religioso aos nossos ancestrais. E digo nossos por dois motivos lógicos: primeiro por comungar com a teoria de que os seres humanos plenamente modernos se desenvolveram na África há cerca de 150.000 anos atrás (Kuper, 2008); e segundo, por entender que depois de mais de 500 anos de miscigenação ficaria difícil (e por que não impossível) imaginar qualquer brasileiro puro (etnicamente falando, claro).

Neste evento, um dos aspectos que mais me chamou a atenção consistiu exatamente no intento governamental de administrar uma manifestação religiosa, expressão maior de um povo, numa formatação burocrática. Assim, como em todo grande “evento de massa” em Recife, o policiamento foi reforçado para garantir a segurança e o direito de livre expressão de todos (contraditório, não?). No palco montado na Praça do Carmo para as apresentações ritualísticas, a agitação por parte de alguns coordenadores e organizadores revelavam certa “desobediência negra” ao cumprimento de programação tão rígida. Penso então se tal desobediência não se traduz em característica de uma raça, pautada no movimento de resistência dos antigos negros escravos, que no passado serviu de base para o processo de alforria. Então me coloquei a refletir sobre o real significado e importância do referido palco.

E digo que em minha tola e pretensiosa convicção acreditei que tal manifestação ganharia mais força e beleza se permanecesse nas ruas, verdadeiro palco de tantas batalhas travadas em nome da liberdade, democracia e igualdade para todos. Porém perdido em devaneios, repensei se o mesmo não se configurava naquele momento como uma forma de reparação a dignidade negra, afinal de contas, palco é lugar de destaque, sempre relegado aos mesmos. De uma forma ou de outra, acho que toda forma de reparação, que num contexto mais religioso significa o “ato que pretende desagravar a Deus de ofensas cometidas pelo próprio agente ou por outrem”, apresenta-se retardatária por natureza. Explico meu posicionamento, considerando que facilmente se constatava naquela caminhada a contingente soberania negra, lutando contra estigmas não apenas relativos à cor da pele, mas a religiosidade e classe social.

Se analisarmos a história, não precisaremos de muito esforços para perceber que durante séculos foram negados aos negros os direitos a cidadania, liberdade religiosa e oportunidades e possibilidades de desenvolvimento igualitário, através do imposto processo de aculturação (entendendo-se este como processo decorrente do contato direito e contínuo entre dois ou mais grupos sociais, pelo qual cada um desses assimila, adota ou rejeita elementos da cultura do outro, seja de modo recíproco ou unilateral, e podendo implicar, eventualmente em subordinação política). Durante o processo de colonização brasileira, os negros africanos tornaram-se bárbaros, e por serem reconhecidos como inferiores e não civilizados foram escravizados. A estes, no intuito de fortalecer e garantir seus vínculos culturais com a pátria mãe restou o sincretismo religioso (processo caracterizado pela fusão de elementos culturais diferentes, ou até antagônicos, em um só elemento, continuando perceptíveis alguns sinais originários). Este talvez, o maior movimento de resistência no sentido de salvaguardar a integridade cultural de um povo, evidenciando a importância quanto ao entendimento sobre a autoridade e valor da cultura para formação e consolidação de uma identidade.

É neste sentido que as políticas afirmativas têm papel fundamental para a restauração da dignidade e representatividade de um povo que foi duramente castigado e estigmatizado pelos processos civilizatórios. Por esse viés, podemos então entrar numa discussão a cerca do que vem a ser civilização. Esta por sua vez pode ser entendida como ato, processo ou efeito de civilizar-se (ou civilizar alguém); ou ainda, como estado ou condição do que se civilizou. Parte-se então para a conceituação do que vem a ser primitivismo, que em relação a um povo, pode-se classificar como sujeitos “em começo de evolução, ou muito pouco diferenciado de seus antepassados mais remotos”. Traduzindo, neste contexto, pode-se dizer que primitivo configura uma sociedade mais simples formada por integrantes ásperos e rudes. Numa extensão antropológica, são povos não letrados que vivem em sociedades caracterizadas como de escala menor, organização social menos complexa e nível tecnológico menos desenvolvido do que as sociedades ditas civilizadas, e vistos pelo evolucionismo social como representantes de um estado social e mental supostamente mais próximos da condição original, natural da humanidade, ou dela sobreviventes (Ferreira, 2010).

Neste aspecto, as classificações para sociedades primitivas partem de uma visão etnocêntrica, uma vez que parte-se da referencia de nossa própria sociedade como marco de civilização. Ou seja, se nos considerarmos civilizados por pretensamente acreditar que atingimos um estado de aprimoramento ou desenvolvimento social e cultural mais elevado, logo, tenderemos a ver nosso diferente como menos evoluído, e logicamente menos civilizado – primitivo. Assim, por extensão, civilizada é a sociedade que resulta do processo civilizatório, ou seja, do conjunto de suas realizações, e em especial por aquele marcado por certo grau de desenvolvimento tecnológico, econômico e intelectual, considerado geralmente segundo o modelo das sociedades ocidentais modernas que se caracterizaram pela diferenciação social, divisão de trabalho, urbanização e concentração de poder político e econômico (Ferreira, 2010).

Fundamental torna-se o entendimento de que entre os gregos e os romanos a classificação “bárbaro” definia o estrangeiro, o diferente e inferior por apresentar dificuldade ou falta de domínio no uso da linguagem. Nesta visão etnocêntrica, os bárbaros não falavam, mas pelo contrário gruniam ou apenas balbuciavam, pelo simples fato de não dominarem a linguagem grega ou romana. Neste período histórico da “evolução da humanidade” o domínio da linguagem configurava e outorgava o status de civilização aos indivíduos e sociedades. Estabeleceram-se as relações de poder e a divisão dos grupos sociais, fundamentando inclusive o entendimento de uma “ordem natural” para a dicotomia dominação/subjugação entre os povos. Os civilizados subjugavam os bárbaros e primitivos. Dentro dessa ordem não fica difícil imaginar sua extensão aos selvagens brasileiros – denominação criada para classificar os indios, considerados meio homens, meio animais. Estes representavam o desconhecido e eram percebidos como monstros estranhos do novo mundo. Com a impossibilidade de civilizá-los, favorecendo o processo de desenvolvimento econômico e social segundo os ditames europeus, os mesmos foram exterminados (por extensão: pôr fora dalguma terra, ou região; expulsar, banir, desterrar, destruir com mortandade; fazer desaparecer; eliminar, matando; aniquilar) e substituídos pelos seus negros já escravizados.

O Brasil tornou-se rota obrigatória para os navios negreiros. Somente em 13 de maio de 1888, a então Princesa Cristina Leolpodina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon (mais conhecida como Princesa Isabel), filha herdeira de D. Pedro II, assinou a Lei Áurea abolindo a escravidão em nosso país. No sentido histórico e político é importante considerar que fomos a ultima nação a ceder às pressões internas e externas. E também, que com a abolição os negros foram também substituídos pelos imigrantes europeus que chegavam à busca das grandes e novas oportunidades prometidas pelo novo continente. Sem formação, qualificação e educação, os ex-escravos forma expulsos das fazendas e engenhos e passaram a habitar as margens da sociedade burguesa. Tornaram-se grupos de pessoas sem “eira e nem beira”. Restaram os aglomerados populacionais, quilombos, as ruas e a clandestinidade. Desta forma, estes livres bárbaros desamparados e sem reparação de direitos na verdade não foram libertos, mas sim descartados do processo de desenvolvimento. Já não serviam aos interesses públicos e privados. Das margens sociais a marginalidade era um passo. O negro então passou a ser combatido, pois que se tornara peso e risco social eminente.

Continuando nossa análise critica, verificaremos que o retrato social nos dias atuais não tem se mostrado muito diferente, tanto que, se as senzalas se localizavam distanciadas das casas grandes, o mesmo ocorre com as favelas em relação aos grandes centros urbanos. A cultura brasileira determinou e introjetou a divisão de raças, forjando em nossas peles o racismo nacional (que por extensão entende-se qualquer doutrina que sustenta a superioridade biológica, cultural e/ou moral de determinada raça, ou de determinada população, povo ou grupo social considerado como raça). E neste sentido, nunca fomos “apenas um povo” como tanto se pregou por anos a fio, mas ao contrário sempre fomos étnicos e diversificados, e consequentemente diferenciados em garantia de direitos e possibilidades de acesso. Com a divisão da população entre negros e brancos, consolidou-se as desigualdades e se estratificou as classes sociais entre pobres e ricos. Praticamente só após a queda da ditadura os discursos politicos e ideológicos, alicerçados pelos movimentos sociais puderam ganhar força, dando inicio ao processo de mudança atual.

Mais uma vez as políticas afirmativas tiveram papel fundamental exigindo reparação e equiparação de direitos. Conseguimos alguns avanços tais como a criação de cotas de inserção e “oportunidades”, mas nunca em verdade o Brasil se desculpou pelas atrocidades cometidas. Se fizermos uma retrospectiva apenas considerando a mídia televisiva, facilmente constataremos, por exemplo, que os negros continuaram escravos nas telenovelas, principalmente nas globais. Em 1979, uma das primeiras novelas a tratar à temática, A Escrava Isaura, tinha no papel principal uma personagem de pele branca. Foram então preciso quase trinta anos para que uma mulher negra ocupasse, pela primeira vez, o papel de protagonista de uma novela no horário nobre. Aliás, neste âmbito Thais Araújo vem se consolidando como única atriz negra que mais protagonizou novelas (A Cor de Pecado, da Rede Globo, e Chica da Silva, da TV Manchete). São resultados positivos, logicamente que sim, porém ainda insipientes para se comemorar uma mudança justa. É preciso investir esforços na educação e formar futuros cidadãos conscientes e livres de preconceitos. Como dizia o grito de ordem da caminhada, não se busca apenas tolerância, mais direitos e respeito. Até por que tolerar significa ser indulgente (pronto para perdoar, tolerante, condescendente, complacente) para com algo ou alguém. Tolerar significa acima de tudo, suportar e/ou aguentar. E em uma democracia não se pode aceitar grupos sociais apenas se tolerem uns aos outros, mas que ambos se respeitem e desenvolvam relações harmoniosas de convivência pacífica.

Independente de tudo isso, talvez o que se mostre mais positivo seja o fato de se poder constatar que nos dias atuais os negros vêm ganhando mais espaços e ocupando lugares de destaque sejam na mídia, no mercado de trabalho formal ou no cenário político. Então é a vez da busca pelo direito da livre expressão religiosa entrar para as pautas públicas. É preciso se falar e se ensinar nas escolas não apenas sobre a ancestralidade negra, não apenas de direitos pautados em cotas, mas estimular a reflexão sobre negritude. E neste sentido, negritude deve ser entendida como ideologia característica da fase de conscientização pelos povos negros (o que nos inclui enquanto afro-brasileiros), da opressão colonialista, a qual busca reencontrar a subjetividade negra observada objetivamente na fase pré-colonial e perdida pela dominação da cultura branca ocidental. E se faz ainda urgente e necessário o entendimento de negritude também no plural – negritudes, possibilitando a implementação e consolidação de políticas públicas voltadas à garantia de direitos de crianças, adolescentes, jovens, mulheres, homens e idosos negros, independentes de orientação sexual, classe social e credo religioso.

Pátio do Carmo, Recife - Novembro/2010

terça-feira, 2 de novembro de 2010

ELEIÇÕES 2010 - O GRANDE FINAL

Recife, 31 de outubro de 2010

















UMA NOVA ESTRELA, UMA NOVA HISTÓRIA

Hoje acordei com um sentimento de vitória. As eleições 2010 me serviram como certa espécie de renovação da esperança. Esperança na continuidade da mudança, esperança na crença de um povo, esperança em dias melhores. Na sexta-feira passada, 29 de outubro, me vi novamente nas ruas. Era a caminhada pela “Vitória de Dilma”. Era a caminhada, ou mesmo a marcha que celebraria a confirmação do triunfo popular. A chuva densa parecia lavar nossas almas e encharcar nossos corpos de orgulho. Estávamos vivos novamente, unidos pelo mesmo objetivo. Massa compacta de gente diferente em cor, raça, idade, identidade. Éramos uma só corrente unida pela força e coragem de um povo que não nega a luta. A Praça Joaquim Nabuco estava vermelha. Eram camisas, blusas, chapéus e principalmente bandeiras em diferentes formatos e dimensões que pareciam subir aos céus, tremulando emoção e felicidade. Era um vermelho vivo, tingido pelo vigor e convicção de guerreiros que em batalha não temem a própria morte. Era o vermelho de uma paixão nacional que mais uma vez saia às ruas para mostrar apoio a um plano de governo pautado na valorização das pessoas. E era acima de tudo assim que nos sentíamos, valorizados, respeitados e participantes.

As pessoas dançaram na chuva e se abraçaram molhadas. A muito não via sorrisos tão largos, daqueles que a gente mostra os dentes, e como dizem os antigos, mas parecem morder as orelhas. Centenas de olhos brilharam embaçados por lágrimas que salgavam bocas sonoras. A multidão se comprimiu ao tentar se aproximar, ou simplesmente ver melhor, aquele que para milhões de brasileiros se transformou no maior símbolo de nacionalidade. De estatura mediana (tipicamente nordestina), barba grisalha, camisa branca e mãos levantadas, Luiz Inácio da Silva, o presidente Lula, saudou seu povo. Não era apenas o político, mas o cidadão que saiu de interior de Pernambuco para fazer história. Era um guerreiro altivo e vivaz que chamava seus soldados a luta. Não precisa falar, discursar e muito menos reafirmar sua convicção. Nestes momentos acredito mesmo que as palavras maculam sentimentos e objetivos. Sabíamos de seus ideais e comungamos dos mesmos desejos, afinal de contas um grande líder não se revela apenas em palavras, mas em gestos, posturas e condutas. E ali, estava, diante de todos nós, o maior líder da atualidade.

Em cima de um caminhão, seguiu pela Av. Conde da Boa Vista e arrastou a onde vermelha que parecia invadir espaços, becos, vielas e ruas transversais. Com a chuva, as roupas colaram aos corpos e pareceu transformar a todos em integrantes de uma grande tribo “pele vermelha”. Vozes ecoaram a mulher e o feminino, representados no nome de Dilma Rouzzeff. Uma nova estrela, que como diz a canção, nascia reluzindo grande prestigio e popularidade. As janelas ficaram coloridas e pareciam bravos dragões soltando fumaça de gelo seco. O céu brilhava em milhões de confetes e pequenos pedaços de papéis multicoloridos e luminosos. Era a festa da vitória e da certeza da aceitação popular. O voto tornar-se-ia apenas formalidade, registro burocrático que emprega valor legal à vontade e desejo popular. Atravessamos a Av. Guararapes abarrotada e por fim chegamos a Praça do Carmo. Foi uma caminhada curta para tanta euforia, que com certeza atravessaria a madrugada. Mas não havia tristeza ou melancolia, apenas o orgulho em reverenciar “o cara” que é antes de qualquer coisa, a própria “cara do povo”.

No dia seguinte continuamos a batalha. As pessoas voltaram às ruas com bandeiras, distribuindo adesivos. No grande dia, domingo, 31 de outubro de 2010, nós pernambucanos acordamos cedo e depositamos nas urnas mais de dez milhões de votos de esperanças e certezas. Acompanhamos as notícias pela imprensa, mandamos torpedos, mensagens e pedidos de votos. Era preciso ir até o fim, e até fazer boca de urna. Até que o final da tarde conclamasse a todos para a grande festa. Nunca me senti tão feliz ao ver o William Bonner, em sua pressa desconcertada anunciar que o Brasil tinha acabo de eleger com mais de cinquenta e seis milhões de votos a nova presidenta do Brasil (e neste sentido, saliento fazer sim diferença em dizer que elegemos uma presidenta ao invés de uma presidente, pois que a conjugação é outra, e se fará a partir de agora no feminino). E assim, nosso domingo anoiteceu vermelho. O Marco Zero pulsava o sangue brasileiro que avermelhou a paixão. E para nós também, a ideologia do folclore havia se avermelhado, pois que mostramos nossa irreverência na figura da “Dilma Roucife” e na distribuição de lembrancinhas eleitorais em “saquinhos de pó-de-SERRA”. Mostramos acima de tudo que pernambucano faz história, pois que a partir daquele momento, Dilma Rousseff entrou definitivamente para o cenário mundial como a primeira presidenta do Brasil, e junto com o nordeste deu o primeiro passo para a grande mudança cultural desse país.

Finalmente hoje acordei com desejo de limpeza. Por isso, comecei esvaziando minha caixa de E-mails, MSN, Orkut e Facebook que mantive em constante efervescência durante o período eleitoral. E confesso ter considerado incrível o fato de constatar o quantitativo de mensagens postadas e recebidas nesta ultima semana, que numa velocidade quase alucinante, parecia impossível de acompanhar. É que se estabeleceu durante as eleições, e principalmente durante o segundo turno, uma verdadeira guerra marrom onde inverdades e difamações caluniaram não só a candidata, mas a principalmente a pessoa Dilma Rousseff. Neste sentido é lastimável constatar a força negativa e aterrorizante que as novas tecnologias propiciam. Mas como diz sabiamente minha mãe, tudo na vida tem seu lado positivo e negativo. Por isso, neste momento confesso, meio cansado, que basta! As mensagens continuam chegando como sinal de protesto ou ainda de profecias infundadas, pautadas num desejo negativo de fracasso. Talvez seja resultado da ressaca moral dos inconformados perdedores. Para mim, figuram apenas como reflexo instintivo e irracional dos maus jogadores. Daqueles que não sabem ou não querem entender um resultado eleitoral como desejo nacional, que se pauta na decisão consciente de um povo que é coletivo. E por isso, tais mensagens seguirão simplesmente deletadas direto para a lixeira.

Independente dessas rebarbas quero apenas guardar as boas lembranças dessa que foi, talvez, a mais difícil e democrática campanha eleitoral. E digo democrática considerando o espaço cedido e disponível a todos que quiseram se posicionar, opinar e expor suas convicções e ideologias. Democrática no sentido de liberdade de expressão, que levada às ultimas consequencias, tentaram, hora macular a imagem de pessoas sérias, hora dimensionar habilidades e carismas de figuras oportunistas e não convincentes. Acho que neste sentido, ganhamos todos, pois que mostramos o quanto somos bons de estratégias políticas (e muitas vezes politiqueiras), que independente dos fundamentos ideológicos e objetivos partidários e/ou pessoais, quando peneirados deixam um saldo positivo através das denuncias de corrupção, tráfico de influencias e desvios de verbas tão comuns em nosso cenário político.

E neste aspecto o maior ganho concentra-se na constatação de que aprendemos a lutar por nossos ideais. Voltamos às ruas, levantamos bandeiras, travamos batalhas verbais e acima de tudo, dialogamos, e muito, na e pela busca de votos. Fortalecemo-nos nas artimanhas e estratégias de convencimento, seja através da habilidade discursiva, seja pela busca de argumentos técnicos pautados em dados e indicadores de desenvolvimento. Nunca o brasileiro falou tanto de economia, meio ambiente, privatização, valorização monetária, projeção internacional, índice de desenvolvimento humano, exclusão social e políticas públicas. Assumimos para nós a fatia de responsabilidades, e assim, escolhemos e defendemos nossos representantes. E isso significa o inicio de uma mudança cultural, uma vez que estamos aprendendo que política não se faz apenas em época de campanha eleitoral.

Por isso, hoje quero apenas o descanso digno de quem cumpre sua missão. Quero poder deitar e relaxar sabendo que o Brasil seguirá mudando rumo ao desenvolvimento mais igualitário e justo para todos. Na certeza que continuaremos investindo em tecnologia de ponta e na educação de qualidade, contribuindo para a formação e transformação de um povo que não se contenta mais com migalhas. Nós enquanto povo deixaremos de nos sentir como passageiros de segunda categoria, pois que agora pleiteamos o direito a dividir a primeira classe com o seleto grupo da burguesia. Abdicaremos definitivamente o título de pobrezinhos que precisam de “oportunidades” concedidas com dinheiro de nossos impostos. Queremos à hora e a vez de participar das decisões nacionais e contribuir com a construção de nossos destinos. Iniciamos um processo de transformação pelo qual nos faremos ouvir, pelo qual nos tornaremos ativos participes na construção de uma nova identidade nacional.

E amanhã quero acordar na certeza que fizemos o certo ao pudermos eleger, pela primeira vez, a primeira mulher à presidência da república. E isso é histórico. É o inicio de uma mudança que quebra a hegemonia masculina e machista, culturalmente construída ao longo dos séculos, mantida e financiada por instituições conservadoras, arbitrárias e autoritárias. E dessa história eu tenho o maior orgulho de ter contribuído ativamente, e acima de tudo de me sentir participante. Orgulho por ter votado 13, votado Dilma, e junto com milhões de brasileiras e brasileiros ter iniciado o maior processo de mudança nacional para o Brasil continuar crescendo. Parabéns as mulheres, ao povo brasileiro e principalmente a você que é parte dessa história.

 
Rio de Janeiro, 28 de outubro de 2010