domingo, 31 de outubro de 2010

ELEIÇÕES 2010 - PARA O BRASIL CONTINUAR MUDANDO

Recife, 31 Outubro de 2010

















O (RE)INÍCIO DE UM NOVO COMEÇO

Hoje, 31 de outubro. Chegamos ao fim da campanha eleitoral mais polêmica dos últimos anos. Temas tabus e questões de ordem moral invadiram o espaço político e público, tornando essa, a eleição da descriminalização do aborto, parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, privatização, orientação religiosa, ambientalismo, analfabetismo (não só político) e desenvolvimento sustentável. Acima de tudo as eleições de 2010 ficarão marcadas como a campanha dos escândalos, da difamação, do cinismo e da falta de ética que rege a política brasileira. Conchavos, espionagens, dossiês, ficha limpa, estimulação ao ódio, disseminação do medo, valeu de tudo na busca pelos votos. E nessa guerra suja declarada em muito se perdeu na discussão de planos e projetos de governo. Mas tratando-se de Brasil, talvez isso seja o que menos importa. Afinal de contas somos por demais passionais e emotivos. Decidimos as coisas, ou tomamos decisões guiadas unicamente pela emoção. Somos fanáticos e extremistas, e assim, ou gostamos ou abominamos. Não existe meio termo, elimina-se a tolerância, e logicamente negamos a análises dos fatos de forma racional.

Acho que nunca se discutiu tantos temas tabus em uma campanha eleitoral, porém tais discussões permaneceram no espaço da inviabilidade. Os candidatos não foram sabatinados, ou chamados verdadeiramente a se posicionar enquanto cidadãos comuns, coerentes com suas condutas morais e ideológicas. Não se expuseram diante do grande público, mas ao contrário, se refugiaram no discurso politiqueiro em que se busca agradar gregos e troianos. Nada mais estratégico para apaziguar os ânimos de uma população que ainda se encontra sob a subjugação religiosa. Nada mais coerente e oportuno para agradar a um povo “preguiçoso em raciocínio” e preso ao tradicionalismo coronelista. Talvez reflexo de uma cultura domesticada por anos de repressão e ditadura, ou talvez, reflexos de uma apatia política na qual não se crer em grandes ou significativas mudanças. Aprendemos a aceitar o mesmismo, a temer a mudança, a outorgar ao outro o poder de decisão. Talvez tenham nos persuadido a ficar sempre em cima do muro, pois que isso nos possibilita tender para qualquer um dos lados.

Tornamo-nos massa insegura e facilmente influenciável, o que nos revela que não somos tão politizados quanto imaginamos. Por esperar sempre que alguém nos guie, perdemos a oportunidade de buscar nossas próprias respostas para assuntos que nos dizem respeito. Na questão do aborto, por exemplo, o que se discute no momento não é sua legalização, mas sim sua descriminalização, o que significa a possibilidade e garantia de atendimento médico adequado e seguro. E isto é ganho, principalmente para as mulheres, que em muitos casos, após o processo traumático (independente de seus motivos) correm o risco de responder criminalmente com pena de até três anos de reclusão. De outro lado, ao se trazer a tona o “Caso Tiririca” se abre a possibilidade, ainda que de forma simplista, no mínimo, de se reavaliar o processo eleitoral. Abre-se uma discussão sobre direitos e cidadania. Sobre quem pode se tornar elegível e por que. Mas ao contrário, apenas aceitamos o fato de que analfabeto não pode concorrer a cargos políticos, mas pode votar em candidatos analfabetos políticos. A sátira toma conta da conduta moral e nos faz esquecer as contravenções envolvidas no caso. Esquece-se também de (re)pensar no quanto a negação de direitos torna o analfabetismo um instrumento para estratégias politiqueiras como verificado.

Talvez o que se precise pensar é sobre o atual processo democrático e suas contradições, e acima de tudo, sobre as novas estratégias da perpetuação do voto guiado e de cabresto. Não podemos esquecer que o Brasil não é uma nação cem por cento urbana. Somos antes de tudo rurais, aonde a informação e educação de qualidade não chega. Quem se aventura pelos interiores dos estados entende o que falo, porém que não sai de sua redoma de pretensa proteção divisora de classes não consegue olhar além do próprio umbigo. Somos um país de exclusões pautadas na desigualdade de classes, oportunidades e possibilidades de acesso. Fazemos política para um pequeno grupo seleto que não representa nossa totalidade. E a meu ver, isso não é democracia, e muito menos democratização de direitos.

O mais importante é que essa eleição entra para nossa história como divisor de águas. Pela primeira vez se colocará uma mulher a frente das decisões. E não falo simplesmente de uma falsa mudança na conduta de gênero, pois que estamos ainda muito distantes disso. Mas falo da técnica, competência, comprometimento e responsabilidade com um plano político pautado na igualdade de direitos. Nossa política é ainda, acima de tudo, sexista e machista. Temos então, pela primeira vez, a possibilidade de rever conceitos pré-concebidos e maciçamente introjetados, assimilados e reconhecidos como verdade absoluta. A própria história da humanidade é cíclica. Já fomos matriarcais, hoje patriarcais. E não considero que uma ou outra forma de governo e cultura seja mais ou menos adequada. Mas são ajustes sociais contextualizados por fatos e momentos históricos. A grande diferença, é que atualmente se busca por uma relação mais equitativa e justa. E equidade de gênero não significa (re)passar o poder (ou falso poder) as mulheres, mas possibilitar uma relação mais igualitária e menos preconceituosa, fonte e base de argumentos para atrocidades, subjugação, e exclusão social pela negação de direitos.

A vitória de Dilma significa antes de tudo, um novo passo a mudança cultural desse país. Não se muda uma nação sem refletir sobre sua cultura, e no nosso caso especificamente, nossas culturas, pois que somos extenso, denso e multicultural. Somos praticamente países-regiões que formam uma grande república. Estamos num processo não de igualdade massificada ou uniformizada (gosto muito de população pasteurizada), mas de reconhecimento das diferenças e da diversidade étnica/raça, de gênero, territorialidade e autonomia cultural locais. Isso possibilita reflexões mais sensatas e assertivas. Isso evidencia um plano político pautado na amplitude de inclusão que envolve sul, sudeste, cetro-oeste, norte e nordeste. E isso deveria está em jogo e em pauta nos discursos e embates politicos.

Não se pode negar o crescimento, seja econômico ou social, que o governo atual proporcionou. Somos verdadeiramente um país em desenvolvimento, classificação que aprendi a usar para nos denominar (e logicamente nos reconhecer) desde os anos do ensino primário (atualmente fundamental I). Éramos apenas o país do futuro (que se configurava como tempo longínquo) , tanto que nas escolas a gente era obrigado a cantar: “esse é um país que vai prá frente... ôh...ôh...ôh... de uma gente tão feliz e tão contente... ôh... ôh...ôh!”. Hoje conjugamos o verbo no presente e por isso podemos bater forte no peito e dizer: somos um país não do futuro, mas de futuro possível e real. Saímos da utopia para concretude. E isso porque fomos às ruas, perdemos o medo de ser feliz, reivindicamos direitos e reconquistamos nossa autonomia.

São outros tempos, frutos de um passado no qual fomos presos ao exigir abertura política, espancados e torturados por cobrar democracia, mortos em nome da liberdade de expressão. Apanhamos nas ruas por pleitear o voto direto, e para que atualmente possamos exigir políticas públicas inclusivas. Exigir e (re)construir nossa identidade enquanto povo de expressão nacional e internacional. Nossos anos de batalhas serviram de base para nos tornarmos livres e fazemos história. História essa que tenho orgulho, pois que também é minha e de todos os brasileiros que não fogem a luta. Brasileiros que empunham bandeiras e gritam dos quatro cantos suas forças de guerreiros. Brasileiros que voltam mais uma vez a mostrar o quanto somos destemidos, de paz e de esperança num país melhor. Um povo que reconhece, respeita e cultua suas lideranças. Que do mesmo jeito que reclama e reivindica, também sabe aplaudir e reverenciar a competência e comprometimento de quem escolheu como representante máximo de nossa nacionalidade.

O fim do governo Lula torna-se um marco em nossa história, que a partir de agora se conta entre o antes e o depois. Entre quem éramos e quem somos. Por isso, a este homem, que considero não um, mas o mais importante político e brasileiro de visão, meus mais sinceros aplausos. À Dilma Rousseff, militante, ativista, técnica e mulher política, meu voto de convicção nas grandes e concretas perspectivas de continuidade de um plano e projeto de governo bem sucedido. Aos brasileiros, minha certeza de um país melhor e mais justo para todos. A história, meu registro: Eu votei Dilma, eu votei 13, e juntos seremos muito mais que isso, pois que seremos milhões de brasileiros a eleger a primeira mulher para a presidência da república. Por convicção, por entendimento político e social e acima de tudo, por não precisar mais ter medo de ser feliz!



 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

ELEIÇÕES 2010 - A MALFADADA CAMPANHA DO PÂNICO


















Florianópolis/SC, 2008

SEM MEDO DE CRESCER FELIZ

Muito já tem se falado sobre o nível da campanha eleitoral para presidente da república. E muito também já se disse que o quadro hoje não difere muito, em estratégias eleitoreiras, das campanhas anteriores. Em 2002, o PSDB, através do então candidato José Serra (o mesmo que agora volta a se esconder sob a pele de cordeirinho) iniciou no país um estilo de campanha agressiva que objetivava unicamente despertar o pânico em uma população desinformada. Era a campanha do medo, que teve como principal representante a eterna “namoradinha do Brasil”, a atriz Regina Duarte. E neste sentido, saliento que se a mesma já não convence o grande público enquanto atriz imagina como cabo eleitoral. Mas, opiniões a parte, torna-se importante relembrar que seu discurso (dito ideológico) se baseava no medo pela “volta da hiperinflação e por temer perder as coisas que já se tinha conquistado”. Mas ela mesma esqueceu de falar sobre quais coisas imaginava que o povo brasileiro havia conquistado. Apesar da polêmica causada, seu posicionamento equivocado e burguês serviu apenas como base para que a “esperança vencesse o medo”. Fomos para o segundo turno, o Lula foi eleito e o Brasil começou a mudar.

Em 2006, o mesmo partido voltou a se utilizar da mesma estratégia. Fomos novamente para o segundo turno e o Lula derrotou junto ao povo o Geraldo Alckmin (eleito governador de São Paulo, no ultimo dia 03 de outubro). O país seguiu no processo de mudanças e hoje se consolidou internacionalmente como uma das grandes promessas enquanto potência econômica mundial. Saímos da condição de devedores para credores. Pagamos a divida externa e nos livramos do Fundo Monetário Internacional – FMI. Construímos o maior número de universidades federais de toda a história. Possibilitamos o acesso de mais de 700.000 estudantes em universidade e faculdades pelo país a fora. Implantamos escolas técnicas e investimos na qualificação profissional dos jovens. Retiramos milhares de pessoas da miséria. Investimos em políticas públicas e programas sociais beneficiando a população de baixa renda. Implantamos uma Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004), possibilitando a garantia de direitos e condições de vida mais igualitária. Geramos milhões de empregos. Tornamos mais justa e igualitária a divisão de renda. Crescemos em tecnologia e desenvolvimento econômico sustentável. Eliminamos a inflação, e acima de tudo, colocamos comida na boca do povo. Assim, o governo do “sapo barbudo” (apelido cariosamente criado pelos opositores terroristas) representa antes de tudo, dignidade cidadã e respeito social.

Talvez tenha sido este o medo sentido pela Regina Duarte e seus aliados. Para quem sempre viveu da imagem, produto alienante da ditadura criado para personificar milhares de mocinhas indefesas e submissas as regras e normas falso-moralistas do período militar, provavelmente a concepção de medo tenha outro sentido e configuração. E penso que se a mesma vivesse sob o sol escaldante que elimina lavouras e racha a terra, talvez sentisse medo da fome e da miséria. Ou ainda, se não tivesse emprego garantido e por isso precisasse recorrer às longas filas de espera por atendimento médico, talvez sentisse medo da dor. Se não tivesse como sustentar seus filhos, com certeza temeria a ausência de perspectiva e de futuro. Mas as tantas “reginas” do Brasil burguês temem pela perda das coisas conquistadas por elas próprias, ao longo dos seus bem sucedidos anos de vida. Coisas essas inviáveis a maioria da população. Por isso, gostaria muito, que ela então pudesse voltar ao guia eleitoral para falar de seus medos atuais.

Será que o medo a que se referem os seguidores da campanha do pânico se estende ao receio que sentem por dividirem a comida com os pobres? Ou será medo em dividir espaços e acessos de forma mais igualitária entre as classes sociais? Talvez esse mesmo pânico se justifique pela elevação da conscientização popular em relação a seus direitos enquanto sujeitos e cidadãos. Da mesma forma, teme-se ainda a elevação da auto-estima de um povo, que depois de décadas consegue bater no peito e dizer que tem orgulho de ser brasileiro por entender que o Brasil é um país viável. Teme-se também que as mulheres assumam o poder e que assim se pratique a equidade de gênero, bem como, receia-se o fim de uma política sectarista que divide e subjuga populações.

A namoradinha do Brasil, em nome de seus seguidores patrocinadores, temia que o Brasil com Lula perdesse toda a estabilidade tão duramente conquistada. Errou ela e enganaram-se os que apostaram na incapacidade do “metalúrgico analfabeto”. Se recorressem aos dados e estatísticas oficiais sobre os indicadores de desenvolvimento, verificariam claramente que hoje se estima um crescimento econômico médio em torno de 5,7% ao ano para o período de 2010 a 2014, o que representa o triplo de crescimento registrado no segundo mandato de Fernando Henrique (1,7% ao ano no período de 1998 a 2002). Constatariam também que os dados relativos aos resultados do Governo Lula mostram uma acentuada queda da pobreza, bem como a crescente inclusão dos mais pobres nos segmentos de maior renda. Isso significa que a classe média continuará se expandindo nos próximos anos, ao passo que se estima que a classe C, até o final de 2010, crescerá cerca de 21,5%.

Assim torna-se fácil e possível perceber que esses números evidenciam o retrato da mudança social pelo qual o país vem passando, respaldado por dados concretos que mostram que desde 2002, cerca de 25 milhões de brasileiros foram incluídos no meio da pirâmide social. E isto é resultado dos altos investimentos em políticas públicas de inclusão social, educação e saúde de qualidade e qualificação profissional. Antes de qualquer coisa, esses dados nada mais são do que o reflexo das condições favoráveis da economia voltadas às camadas de menor renda seja através do aumento real do salário mínimo, do controle da inflação, da geração de empregos ou da criação e implementação de benefícios sociais, como o bolsa família.

É dessa forma que se transforma uma nação, proporcionando condições de vida e dignidade ao povo. Este é o país que desejo para o futuro. Não só o meu, mas o seu, o de meus sobrinhos, dos seus filhos e netos, e de todos os filhos e netos de todos os brasileiros e brasileiras. Por isso voto na Dilma, sem medo e por convicção. Não por um pedido do Lula, mas por discernimento e posicionamento político pessoal. E por entender que ela representa a possibilidade concreta de continuidade do crescimento econômico e do desenvolvimento pessoal do povo brasileiro.

Acredito que aos seguidores e praticantes da síndrome do medo resta a certeza de um novo fracasso eleitoral, pois que dúvidas se esclarecem com argumentos quantitativos e qualitativos claros, precisos e passíveis de análise comprobatória. É preciso entender que campanhas baseadas na difamação de uma mulher séria e profissional competente, é no mínimo uma postura imoral e reacionária. É além de tudo antipolítica e antiética. E não digo que no atual governo inexista corrupção e favorecimentos através do trafico de influencias e do nepotismo. Isso é resultante de nossa cultura e ética moral. Mas o que não se pode negar é que apesar dessas nossas mazelas que cultivamos como sinônimo de esperteza e sabedoria, pois que gostamos de lavar vantagem em tudo (alguém lembra da lei do Gerson? Já falei disso anteriormente), hoje o Brasil é outro país. Estamos mais conscientes e exigimos justiça. Fora isso, como diz a sabedoria popular, “um sujo nunca pode falar de um mal lavado”. Assim, talvez antes de acusar, a oposição devesse melhor explicar o escândalo envolvendo o Paulo Preto. Resumindo, é sempre bom lembrar que “quem tem teto de vidro, nunca deve jogar pedra no telhado alheio”.

Independente das trocas de acusações partidárias, mas me pautando em resultados, claramente perceptíveis no cotidiano do povo, é que nesta eleição eu votarei “sem medo de ser feliz”. Assim, por convicção eu voto Dilma, voto 13. E tenho certeza que juntos seremos mais que isso, pois que seremos milhões de brasileiros unidos a favor do crescimento e do desenvolvimento de nossa gente.



Fonte: Ministério da Fazenda (BRASIL, 2010)

domingo, 17 de outubro de 2010

ELEIÇÕES 2010 - AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE INSERÇÃO SOCIAL E A INEFICIÊNCIA DO SETOR PÚBLICO

Copacabna - RJ/2009

PENSO. LOGO EXISTO?
A Burocracia para se comprovar uma existência.

Mais ou menos há uns quinze anos atrás fui vítima de um assalto a mão armada. Uma das situações mais constrangedoras de minha vida. Descia uma das ladeiras históricas de Olinda, quando de repente fui arremessado contra um muro por dois nervosos assaltantes que me deixaram literalmente “nu com as mãos nos bolsos”. É que além do parco dinheiro, os gatunos também me levaram as roupas (e olha que tive que implorar aos céus para que não me levassem também a cueca). Depois do pânico a triste constatação: o que e como fazer para chegar em minha casa? Na época morava no Janga, bairro litorâneo de uma cidade vizinha a Recife. Não tinha dinheiro para pagar um taxi e muito menos iria incomodar minha família altas horas da noite. Assim, mil e uma possibilidades passaram por minha mente, porém um turbilhão de emoções não me deixava organizar as idéias de forma coerente e racional. Era pudico demais para andar nu pela cidade alta, e sabia que por mais irreverente que fosse o povo olindense, aquela não seria uma situação cabível fora do carnaval. Porém não tinha escapatória, teria que me expor e solicitar que alguém me pagasse uma passagem de ônibus até o referido destino.

Iniciei a descida sem mesmo saber para onde ir. Precisava chegar a um ponto de ônibus e dali resolver meu destino. De repente uma patrulha policial atravessa meu caminho e sozinho, em uma noite escura, fui invadido pelo terror. Em verdade sempre tive mais medo e receio de enfrentar certos policiais do que certos bandidos. Imagino que em nível de violência não exista muita diferença. Até porque em muitos casos o que se aplica na prática é regra do “atirar primeiro para depois identificar”. Dessa forma, invés de trazer tranquilidade, mas ao contrário a polícia sempre me faz temer algo pior. E naquela situação, receei, por exemplo, pela possibilidade de ser confundido e apanhar antes que pudesse provar quem era, pois afinal de contas o que uma “pessoa de bem” poderia esta fazendo de cuecas e sem documentos no meio de uma rua? Hoje penso que essa foi a decisão mais assertiva, uma vez que não são raros os casos onde pessoas inocentes, por determinadas situações, são confundidas com bandidos e logicamente sofrerem as temíveis “punições cabíveis” aplicadas precipitadamente por parte de policiais despreparados.

Me encaminhei em direção ao ponto próximo a antiga agencia dos correios de Olinda. A vergonha me consumia. Estava nervoso e nu diante de pessoas desconhecidas, e logicamente temia por suas reações. Algumas se afastaram escandalizadas e resmungando insultos sem mesmo saber meus reais motivos. Lembro que pensei como as pessoas podiam me reprovar sem mesmo saber o que tinha acontecido. Achava que era impossível que mesmo daquela forma não me reconhecessem como pessoa decente e moral. Como podiam imaginar que fosse um despudorado incosequente que saia pelas ruas, completamente despido? Eu era um universitário, trabalhador e cidadão de bem, dessa forma, como podiam me discriminar sem mesmo saber de minha história? Hoje entendo que a sociedade condena primeiro para julgar depois. As pessoas não queriam saber de minha trajetória de vida, e agiam de acordo com seus conceitos morais e sociais, pautados pelo que viam: um jovem sem roupas pedindo auxílio. Apenas um rapaz que também aguardava o ônibus se disponibilizou a me escutar. Assim, consegui que me pagasse à passagem, não antes de lhe repetir sucessivamente a tragédia por qual havia passado. Subi então no ônibus e foi encolhido até minha residência. Sentia o peso dos olhares recriminadores e morria de vergonha cada vez que meu “anjo salvador” repetia a história para as pessoas. Em poucas situações na vida me senti tão acuado e subjugado. Era o peso da moral social e da norma reguladora. Naquele momento era um infrator que causava vergonha e ameaçava a moral cristã, tanto que algumas mulheres chegavam a se benzer ao me verem despido.

A viagem pareceu mais longa que o habitual, porém para resumir a história digo que naquela mesma noite consegui chegar são e salvo em casa, e que depois de um bom banho consegui relaxar e finalmente pegar no sono. No dia seguinte iniciei a maratona comum a quem precisa regularizar a documentação civil. Além dos comuns cancelamentos de talões de cheques e cartões de créditos, era preciso reaver meus documentos. Relembro todos os percalços que tive que enfrentar, porém imaginava que aqueles eram outros tempos. Não existia a tecnologia avançada de que dispomos nos dias atuais. Fato é, que uma década e meia depois me encontro na mesma situação. Não que tenha sido novamente assaltado, mas por descobrir oito meses após dar entrada em meu diploma de mestrado, que sem a carteira de identidade original o meu pedido seria indeferido. E explico melhor. Como na época eu já possuía o registro do conselho de psicologia, registro de identidade válido em todo território nacional como salienta impressão localizada na parte superior do mesmo, automaticamente o substituir pela identidade oficial. Deixei de ser uma simples pessoa para me tornar um psicólogo respeitável. Assim, desde 1995 passei a utilizar o registro do CRP (Conselho Regional de Psicologia) em todas as transações onde se fazia necessária a identificação pessoal. Porém agora, precisaria comprovar quem era realmente, ou seja, apesar do todos os outros documentos (que são muitos) estava em situação de irregularidade e por isso, impossibilitado de dar segmento a um solicitação a qual tenho direito.

Contrariado com tanta incoerência, porém cansado de “dar murros em pontas de faca” resolvi cumprir os tramites legais. Primeiro me encaminhei ao Expresso Cidadão, equipamento do Governo do Estado, criado originalmente para facilitar a vida dos contribuintes. Este é um serviço que concentra vários outros visando desburocratizar a máquina estatal. Assim, pode-se, por exemplo, dar andamento a vários documentos e regularizar várias situações em um mesmo posto. Pelo menos essa é a filosofia. Porém mesmo assim, imaginei (logicamente) todos os contratempos e aborrecimentos pelos quais teria que passar devido a tão conhecida e criticada ineficiência dos órgãos públicos. Mas não me restavam alternativas.

O tal posto público fica próximo a minha casa, no centro da cidade, mas especificamente na Rua do Sossego. Como todo bom e sacrificado trabalhador cheguei ao local às sete horas da manhã para que pudesse realizar os procedimentos e seguir para meu local de trabalho sem grandes atrasos. Mas existia uma fila tão grande que fiquei surpreso, e confesso mesmo que me senti irresponsável por ter dormido demais. Repensei e percebi que enquanto cidadão não precisaria me sacrificar, ou melhor, me submeter a esse tipo de desagravo. Era terrível constatar que muitas daquelas pessoas precisaram se arriscar pela madrugada a fora para poder conseguir um ficha que efetivaria um direito garantido por lei.

Imaginei que por ser período eleitoral as pessoas estavam preocupadas demais para regularizar suas situações antes de enfrentarem as urnas, uma vez que de acordo com as novas regras impostas pelo Supremo Tribunal Eleitoral seria necessário apresentar um documento com foto junto ao título de eleitor. Então “pensei com meus botões” que se esperasse o término das eleições poderia retirar minha documentação de forma mais tranquila e justa como devem ser. Afinal de contas, entendo que o Estado deve prestar serviços de qualidade à população, correto? Então adiei mais uma vez a fila, e por isso, novamente tive que acordar mais cedo. Para minha surpresa, tinha que apresentar junto à cópia xérox a minha certidão original de nascimento. Além de provar minha identidade, não garantida pelos demais documentos (CPF, título eleitoral, reservista militar, habilitação e registro do conselho), precisaria agora também comprovar meu nascimento. Imaginei então de me serviam tantos números de identificação se os mesmos não diziam de minha existência.

Mas, fato é que depois de muito procurar, constatei que não tinha a certidão original. Percebi também que o processo seria mais difícil do que tinha imaginado. Com uma xérox da antiga certidão localizei o antigo cartório no qual tinha sido registrado pela primeira vez enquanto cidadão vivo. Sim, eu existia de verdade! E juro que tal constatação me causou certo alivio e até conforto. Poderia por fim, mesmo após ter concluído uma graduação, duas especializações e um mestrado, comprovar quem eu era de verdade. Não menos irritado, me encaminhei ao referido cartório, localizado no bairro de Casa Amarela (um dos maiores subúrbios e colégio eleitoral de Recife). Novamente minha inexperiência me causou novo desconforto. Era preciso aguardar na fila, depois logicamente de conseguir uma ficha de atendimento. Para minha sorte, eram 16:00 e tinha conseguido o número 875. Olhei automaticamente para o sinalizador digital e para um aviso que anunciava o término do expediente as 17:00. E novamente sem alternativas, me conformei por ter que esperar apenas uma hora para dar entrada em uma simples segunda via da certidão de nascimento.

Olhei para a xérox que tinha em mãos e verifiquei que a oficial que respondia pelo cartório era a mesma que tinha feito meu registro de nascimento. Tentei imaginar então sua idade atual, e logicamente seu vigor profissional, afinal de contas fazia quatro décadas que ela estava na mesma função. Olhei o ambiente por inteiro e pude também observar que não apenas aquela senhora se mantinha por tanto tempo ali, fazendo as mesmas coisas e cumprindo com as mesmas rotinas. A maioria dos funcionários parecia bem mais velha que eu. Isso me levou a comprovar que a estabilidade de certa forma parece contribuir decisivamente para a estagnação das pessoas. Aqueles profissionais já não olhavam as pessoas nos olhos e se comportavam como pilotos automáticos carimbando e assinando documentos que talvez nem lessem mais. Assim a sensação de poeira se estendia também as pessoas, que parecendo enferrujadas pelo tempo se arrastavam lentamente em meio aquela imensidade de documentos envelhecidos. Ali estavam histórias de vida das pessoas, que como eu, precisaram em algum momento oficializar suas decisões e/ou existências. Faltavam exatamente cinco minutos quando alguém aleatoriamente apertou um controle remoto e o relógio digital sonorizou o meu número da sorte.

Entreguei a documentação ao mesmo passo em que expliquei meus objetivos. A funcionária conseguiu verbalizar o valor: “segunda via custa R$ 30,25”. Confesso que fiquei estarrecido com tanta prontidão. Aquele era o valor de uma existência. Me senti retornando ao passado e me imaginei tentando comprar minha carta de alforria, afinal, estava trocando minha existência enquanto pessoa por uma cifra monetária. Resolvi que não era hora para grandes reflexões e também automaticamente efetuei o pagamento para receber em troca um comprovante que me garantiria, no dia seguinte, a comprovação oficial de que eu realmente existia e que ainda estava vivo. Não consegui fugir por muito tempo da lógica e calculei quanto tempo deixei de produzir para efetivar um direito. Depois, mas aborrecido, concluir que o serviço prestado não valia o valor pago. E ainda, imaginei qual seria a dificuldade que teríamos de acessar on-line o protocolo de solicitação, a impressão de um boleto, o pagamento em caixa eletrônico e recebimento do produto pelo correio. Será que ainda não temos tecnologia suficientemente desenvolvida para isso? Ou será ainda que não estamos preparados para tal evolução?

De qualquer forma retornei no dia seguinte, e para meu espanto, depois de muito procurarem em pastas amontoadas de documentação alheia, encontraram minha certidão. É uma folha em papel cédula, com dados digitados e um selo oficial atravessado por um grande carimbo do órgão institucional. E lá estava a mesma assinatura da pessoa que tinha o poder de oficializar publica e socialmente minha existência pessoal. Sem grande entusiasmo me retirei do local e voltei para casa. No outro dia voltei ao superlotado Expresso Cidadão. Finalmente iria dar entrada em minha carteira de identidade. Comecei por uma pequena fila, pois era preciso conseguir a velha ficha de atendimento. A recepcionista conferiu a certidão original e a cópia xérox, solicitou duas fotos 3X4, e mesmo sem olhar para meu rosto me indicou a segunda fila que teria que enfrentar. Agora era preciso imprimir o boleto, e depois em nova fila, realizar o pagamento na agencia bancária instalada internamente no equipamento público. Lá se foram mais R$ 26,23. E confesso que fiquei estarrecido com a precisão dos centavos, bem como, indignado, claro, pela falta de moedas equivalentes para o troco. Dessa forma, percebi que de imediato o governo não cumpre com seu papel principal, o de respeitar o cidadão.

Da agência bancária fui encaminhado para uma quarta fila de espera. Era preciso passar por mais um conferente e solicitar uma nova ficha de atendimento. Então me esforcei para manter a calma, porém quando verifiquei que seria o 55º atendimento, fiquei horrorizado com a burocracia alienada e alienante que se instalava naquele serviço. Para maior surpresa ainda fui informado que teria que aguardar a chamada no lado de fora do prédio, pois logicamente o espaço não comportaria tanta gente. Eram 07:30, o que me alertava que perderia uma reunião marcada para as 09:00. Imaginei então, que se não fosse um profissional autônomo, com certo status e regalias, além de uma consolidada imagem enquanto pessoa séria e responsável, estaria eu em grandes apuros. Caso tivesse que “bater o ponto” na empresa, teria automaticamente descontado em meu salário os atrasos daqueles dias. Dessa forma, fica fácil entender que a renovação de tais documentos não custa apenas o valor direto, mas também os custos relativos à logística ineficiente, bem como as horas não produzidas. Consequentemente pagamos bem mais caro, mais uma vez, pela ineficiência e ineficácia do setor público.

O espaço externo, onde calmo e passivamente deveria aguardar, encontrava-se totalmente ocupado por centenas de pessoas de todas as idades e origens. Os aspectos cansados revelavam insatisfação e decepção. Eram vidas paralisadas pela máquina chamada governo. Resolvi que tornaria meu tempo “perdido” mais produtivo. Precisava dar encaminhamento em alguns documentos e dessa forma segui em direção a agência dos Correios, localizada a poucos metros, na Rua Sete de Setembro. Eram 08:15 e para minha decepção, ou desolação, a agência encontrava-se fechada. Decidi que não iria me irritar além do necessário, até porque já sabia que teria que reorganizar minha agenda e adiar vários compromissos. Vinte minutos depois o funcionário dos Correios chegou. Interrompi um lanche que tinha iniciado e dei destino a documentação. Mais R$ 50,20. E dessa vez consegui receber o troco devido. Em seguida voltei ao Expresso Cidadão. A fila não tinha andado e ainda faltavam quarenta e cinco pessoas para serem atendidas antes de mim. Atravessei novamente a cidade e fui até meu estacionamento pagar a fatura mensal. Também fui ao banco, realizei operações, verifiquei saldos e lentamente me reencaminhei ao lotado posto de serviços.

Eram 09:30 e agora faltavam apenas trinta e cinco pessoas. Dei a volta e entrei em um salão de beleza. Aproveitei para melhorar meu visual e assim cortei e lavei os cabelos. O rapaz atentamente, talvez motivado pelo meu semblante me questionou se estava com pressa. Rapidamente respondi que não e lhe disse que ficasse a vontade. Acredito que não consegui ser tão convincente, tanto que em vinte e cinco minutos tudo já estava terminado. Parei em uma banca de revista, folheie alguns jornais, li algumas manchetes inconsequentes e como se cumprisse um calvário, retornei ao meu destino. Finalmente consegui um lugar para sentar. As 10:05, um funcionário devidamente fardado e com um prancheta nas mãos anunciou a chamada. Estava acabando, pensei eu. Mas infelizmente minha alegria durou pouquíssimo. Novamente dentro das instalações, refizemos a fila. A despachante precisava conferir novamente a documentação e nos questionar se gostaríamos de incluir o número do CPF no novo documento. Em seguida nova fila. Agora deveríamos esperar nova chamada para nos dirigir ao guinche de atendimento individualizado.

Diante da atendente, uma das poucas simpáticas, respondi as perguntas necessárias e assinei fichas e documentos. Educadamente me informou ao final que precisaria aguardar, dessa vez sentado, felizmente, para colher as famosas digitais. Observei então que a tecnologia ainda não havia sido incorporada. Os procedimentos eram os mesmo há mais de vinte anos atrás. Dessa forma, depois de esperar por mais meia hora fui solicitado a estender as mãos para que um outro funcionário, também devidamente fardado, pintasse meus dedos para depois imprimir minhas digitais em fichas de registro. As 11:15 exatamente recebi um recibo indicando a data de recebimento de minha nova carteira de identidade. Pronto, estava concluída a primeira parte do processo. Daqui a cinco dias deverei retorna ao referido “postão de serviços” e encerrar minha maratona de cidadania.

Mais uma vez saí dali me questionando quando poderemos realizar tais procedimentos via internet, pagar a taxa via boleto bancário e receber via Correios nossa documentação. Tudo bem que teríamos ainda que nos dirigir ao equipamento para colher as digitais, mas ainda assim, teríamos agilizado o processo (alguém discorda?). Agora, relembrando toda a trajetória, me coloco a refletir sobre as dificuldades de uma pessoa menos esclarecida, que resida distante e que tenha outros compromissos financeiros mais urgentes? Como por exemplo, uma pessoa que recebe salário mínimo consegue dinheiro para retirar segundas vias de documentos que tenham sido perdidos ou roubados? E nos casos de furtos, não seria obrigação do governo arcar com tais custos uma vez que não cumpre com sua obrigação em garantir nossa segurança? Não é terrível pensar que por termos sido assaltados teremos ainda que custear novos documentos? Ou seja, além de sermos vitimas da ineficiência do Estado, somos ainda obrigados a pagar pelos prejuízos causados. A fora isso, não seria pertinente supor, que considerando as altas taxas de impostos que pagamos (até porque o Brasil é um dos países com as maiores taxas de impostos no mundo) deveríamos dispor de mais serviços gratuitos? E que também, enquanto cidadãos cumpridores de nossos deveres merecemos melhor atendimento por parte do funcionalismo público?

Será que alguém consegue explicar para esses desmotivados e frustrados trabalhadores que eles são servidores públicos, o que significa que estão a serviço do povo? Não seria necessário relembrá-los que os salários que recebem saem de nossos bolsos? E até quando iremos permitir que tais profissionais nos atendam empregando o velho “caráter de favor” impresso em suas caras, posturas e condutas intransigentes? Por quanto tempo ainda iremos tolerar que o serviço público se configure num cenário de amadorismo descabível e desrespeitoso? Neste aspecto não será difícil pensar no quanto a população sofre com a desinformação e falta de acesso a serviços de qualidade. E entendo o quanto minha experiência enquanto prestador de serviços ao Estado tem me revelado a necessidade de maiores investimentos na qualificação profissional desses trabalhadores públicos. Mas que isso, é preciso investir no processo de transformação cultural, pois que precisam em primeiro lugar, entender que estão a serviço da população, e que atender bem não é favor, mas obrigação. Contudo, em verdade o que se tem constatado é o despreparo e descompromisso com o usuário dos serviços. E toda essa ineficiência se traduz em desrespeito aos cidadãos. Assim, em sua maioria, os funcionários públicos se mostram frustrados e desmotivados em relação a seus baixos salários, falta de melhores condições de trabalho e, principalmente, ao modelo de gestão velho e ultrapassado que não favorece crescimento profissional e pessoal.

Acredito que independente de todos esses fatores contribuintes para tanto desestímulo e falta de preparo ético e profissional, a estabilidade no emprego em muito contribui para a não busca pela atualização e qualificação. Assim, o modelo de gestão pelo qual se valoriza produtividade e qualidade parece favorecer a competição sadia por melhores resultados. E neste aspecto saliento que não sou a favor da privatização, mas sim a favor do fim da estabilidade empregatícia. Penso que as pessoas precisam investir em sua empregabilidade para se manterem competitivo no mercado de trabalho. Porém quando se tem a certeza e garantia de que independente dos resultados apresentados não se corre o risco de perder o emprego, esses investimentos tornam-se desnecessários. É dessa forma que acredito que os parâmetros legais para o funcionalismo público deveriam se pautar no conceito de empregabilidade ao invés de em estabilidade. Isso a meu ver contribuiria de forma significativa para evitar que setor público continue inchado e obsoleto por um imenso contingente de funcionários inaptos, desqualificados e descompromissados que não cumprem com suas obrigações.

Talvez ainda, a extensão do período probatório, espécie de período de experiência do servidor público, se configure como alternativa a problemática. Porém acredito que mais eficaz que isso seria a implantação de um processo sério e ético de avaliação, pautado em resultados, ao qual deveriam ser submetidos tais funcionários pelo menos a cada três anos. Esse processo tornaria o setor público mais produtivo e proativo, eliminando os custos com as terceirizações que empregam profissionais não concursados para suprir as deficiências e inoperância dos concursados. Acabaria-se também com os milhares de cabides de empregos, que servem unicamente aos objetivos eleitorais e nos quais tem se transformado tais contratações. Assim, investir em novas tecnologias, bem como na valorização e capacitação do funcionalismo público se apresenta como única solução para renovar e oxigenar a velha máquina administrava pública, preparando o país para as mudanças que se apresentam no novo governo. E logicamente para se entender que não basta criar ou implementar políticas públicas de inserção, mas acima de tudo se faz necessário torná-las viáveis, coerentes e eficazes.

São Paulo, 2008.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

ELEIÇÕES 2010 - POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE DA MULHER



















Casa da Rosas - Av. Paulista/São Paulo, 2008.

ABORTO: Direito ao Corpo ou Direito a Vida?

Essa semana o aborto tornou-se o tema central em conversas e debates fervorosos, não só entre os políticos em campanha, mas principalmente entre os vários segmentos da sociedade. Acho que este é um dos princípios que devem nortear os regimes democráticos, e por isso considero salutar a introdução do tema nas agendas políticas e sociais país a fora. Porém entendo que por se tratar de um problema de saúde pública, o mesmo deve ser encarado com mais seriedade e menor concepção eleitoreira. E neste sentido, digo que é uma pena que nossa cultura ainda permita que determinados candidatos se utilizem de certas mazelas nacionais para fazerem politicagem.

Confesso que não gosto de fazer campanhas partidárias, mas fica difícil não se indignar diante de um candidato que cinicamente se esconde na pele de bom cordeirinho. E é lógico que numa disputa pela presidência, muitas vezes se verá determinado candidato lançar mão de estratégias que possibilitem suavizar posicionamentos pessoais e ideológicos, uma vez que é preciso agradar a gregos e troianos. E num debate político, com tempo limitado para repostas, réplicas e trépicas dificilmente alguém conseguiria resumir suas concepções relativas a temas considerados tabus. Entre estes, figuram a legalidade do aborto, direitos GLBTTI, liberação de pesquisas envolvendo células troncos, direitos reprodutivos e mais uma imensidade de assuntos que terminam margeando tais embates televisionados.

Mas a coerência em determinados posicionamentos são fundamentais e por isso não se pode se deixar levar pela leviandade com promessas absurdas e utópicas que beiram a irresponsabilidade e consequentemente tornam-se por demais desrespeitosas. Assim, mesmo entendendo a dificuldade relativa ao tema, me proponho a refletir sobre dados precisos e claros acerca da legalização do aborto enquanto alternativa para resolução de um problema real e que atinge diretamente milhões de brasileiros, principalmente os das camadas populares, que não dispõem de grandes esclarecimentos e meios que garantam atendimento de saúde adequado e de qualidade. É este segmento da população que precisa ser respeitado e pelo qual a problemática precisa ser vista e analisada sob a ótica da racionalidade. Diferente de posicionamentos demagogos forjados em falsas ideologias religiosas, o candidato José Serra deveria se portar de forma mais racional e ética, principalmente considerando sua experiência em saúde pública.

Ainda se considerando a hipocrisia social brasileira, é preciso entender que a discussão não deva se concentrar entre a criminização ou não do aborto, mas sim, entre atender ou deixar morrer as mulheres vitimas de uma prática legalmente clandestina. É como querer tapar o sol com a peneira, ou num popular mais rasgado, é o velho jogo do faz de conta. Assim se impõe a lei do silêncio e se empurra milhares de mulheres diariamente às práticas marginais ou marginalizantes. Nessa brincadeira falso-moralista do “faz de conta que você não me diz, que eu faço de conta que não sei”, quem perde é o próprio Estado e consequentemente a sociedade como um todo. Afinal, com a ilegalidade estimula-se o charlatanismo das clínicas clandestinas de aborto, que terminam levando suas milhares de vitimas ao próprio Serviço Único de Saúde – SUS.

Então é preciso que se diga que também a falsa moral católica brasileira em muito tem contribuído para os entraves relativos aos avanços necessários a discussão da saúde da mulher no país. E neste aspecto não é difícil imaginar porque os números mostram as mulheres pobres como às grandes vilãs executoras dos abortos nacionais. Nessa lógica, mulher rica não aborta, mas no máximo faz intervenções clínica ao apresentar complicações na gestação, fato que a obriga a interrompê-la. Assim, essa mulher burguesa mantém-se imaculada socialmente diante de uma cultura tradicionalista e conservadora por que não precisa recorrer aos hospitais ou postos de saúde públicos. Afora isso, quem já viu realmente alguém ser preso por ter feito o aborto? A não ser quando médicos ou profissionais inescrupulosos da saúde escorregam em procedimentos e provocam a morte de pacientes, e por isso, viram manchetes nacionais que comovem a sociedade.

Então penso, sobre a quem realmente de direito cabe discutir o aborto? A religião, ao governo, a medicina, a justiça ou ao povo? Neste aspecto, acredito que a medicina cabe avaliar e considerar as implicações relativas à saúde da mulher, incluindo-se o proporcionar das melhores práticas e intervenções no que se refere ao atendimento especializado. E isto é papel do Estado. À justiça cabem as implicações legais, principalmente e talvez sobre as formas como atuam e têm atuado determinados profissionais descompromissados com a ética e o respeito a vida. Que também é responsabilidade do Estado. Ao mesmo tempo, entendo caber aos governos as responsabilidades de atender aos interesses do povo, não cabendo ao mesmo impor as leis, mas sim, discutir a legalidade e aplicabilidade de algumas práticas, considerando os desejos da sociedade. E por fim, especificamente às mulheres caberá a decisão de escolher entre a continuidade ou interrupção de uma gestação.

Dentro dessa concepção, se o Estado nada mais é do que a representação de um povo caberá a este julgar seus valores morais, religiosos, éticos e ideológicos. É preciso escutar a voz do povo, a voz que vem das ruas para que se entenda os anseios de quem exige mudanças. E política pública séria se faz com a participação popular e não com objetivos eleitoreiros. Dessa forma, é preciso estimular a discussão entre os jovens, estudantes, donas de casa e pais de família que buscam por condições dignas de vida e sobrevivência. Se faz necessário motivar o povo a se tornar participe nos processos de decisão, definindo suas próprias condutas, regras e normas sociais.

Relembro então, que em determinada ocasião de conversa entre amigos, o tema aborto surgiu em meio ao turbilhão de informações e dados discutidos em um desses debates (ou melhor, embate) políticos entre os presidenciáveis. E independente de todas as implicações morais, religiosas, ideológicas e políticas envolvidas na temática do aborto, foi levantada uma nova perspectiva sobre o entrave relativo à sua proibição ou legalização. Resolvemos então refletir sobre o assunto separando o conceito moral implicado e nossas concepções pessoais. Em outras palavras, o que se colocou sobre a mesa foi o fato de que discutir sobre legalização do aborto é diferente de discutir sobre os julgamentos de valores acerca de sua prática. Ou seja, não nos interessava naquele momento discutir se o fazer aborto era certo ou errado, mas sim, se era preciso ou não legalizar sua prática.

Desta forma, têm-se duas discussões distintas. A primeira diz questão à legalização ou não de uma prática real, mas que se mantém na clandestinidade por ser considerada crime. A segunda, por sua vez, refere-se ao entendimento individual que possamos ter, ou construir, sobre a concepção/interrupção da vida. Mesmo sabendo que em ambas, estarão inclusos os julgamentos de valores morais e religiosos que são pessoais, percorremos o viés da necessidade pautada num problema social e de saúde. Estudos mostram que o aborto é uma prática já institucionalizada no Brasil, e isto é fato. O cerne da questão é até quando iremos permitir a clandestinidade que leva a milhares de mortes, ou mulheres sequeladas. Neste sentido, por exemplo, confesso não ser a favor do aborto, mas a favor de sua legalização. E isso, porque entendo que não posso enquanto cidadão querer ou desejar, e muito menos impor, que a sociedade adote minhas convicções enquanto verdade absoluta. Ou seja, acredito que não podemos partir do princípio de que somos os detentores da verdade do outro.

A legalidade em se, a meu ver não implicará em aumento desenfreado de sua prática, mas pelo contrário dará a possibilidade de dignidade da decisão. Entendo que as pessoas precisam ser livres em suas escolhas e decisões pessoais. E que logicamente cabe a mulher o direito ao corpo. Corpo este que não é meu, ou teu, mas do outro autônomo e sujeito de direito. Dentro dessa lógica apresentado os resultados de duas pesquisas relativas ao tema, desenvolvidas na última década. E repito que aos politicos, antes de se colocarem de forma inconsequente e muitas vezes levianas, que é preciso escutar o povo para melhor definir posicionamentos e implementações de políticas públicas eficazes e eficientes.


Gravidez e Aborto em Debate

Em pesquisa sobre gravidez e aborto, realizada pela Fundação Perseu Abramo (2010), no período de 2001 a 2005, envolvendo 2.502 mulheres com idade acima de 15 anos, de 187 municípios com mais de 500 mil habitantes, de 24 estados brasileiros, constatou-se que dois terços (66%) da população entrevistada declarou ter realizado aborto sem orientação médica. Deste total, porém, 70% alegaram ter realizado consulta ginecológica posteriormente, enquanto que 28% das mulheres não contaram com acompanhamento médico durante e depois de sua realização. O estudo revelou ainda que a decisão a favor do aborto não se mostra restrita as mulheres, uma vez que entre os parceiros que tiveram conhecimento da gravidez, 46% mostraram-se favoráveis, enquanto que 21% não se posicionaram de forma clara quanto ao fato de ser contra ou a favor da prática.

No que se refere ao fato de a quem cabe decidir sobre o aborto, 29% das participantes afirmaram que esta é uma decisão única e exclusiva das mulheres, independente da vontade dos parceiros, e 48% afirmaram que a mulher deve ter o direito de decidir sobre a continuidade ou não de uma gravidez. Ainda neste sentido, 61% revelam concordar que o aborto deve ser uma decisão da mulher ou do casal, mas não da lei. Quanto ao conhecimento relativo à legislação brasileira relativa ao tema, 53% das mulheres que fizeram aborto induzido alegaram saber que sua prática não é permitida, ao passo que 36% afirmaram entender que autorização legal dependerá do caso (gravidez por estupro ou gravidez que envolve risco de vida da mãe).

Das mulheres que praticaram o aborto, 61% afirmaram ter tomado a decisão sozinha, e 18% revelaram ter sido uma decisão compartilhada com o companheiro. Nessa perspectiva, 84% afirmaram ter comunicado a gravidez aos companheiros. Das que não compartilharam o fato (16%), 4% consideraram que o fato deles saberem não influiria na decisão e 3% alegaram não ter contado por acreditar que os mesmos não as apoiariam.

Os dados evidenciam também que cerca de três milhões de mulheres no Brasil provocaram o aborto durante a gestação, das quais 28% afirmaram ter realizado o procedimento em clínicas e 21% pela ingestão de remédios industrializados (sendo o Citotec o remédio mais utilizado). Entre os motivos para a prática, as dificuldades financeiras apareceram como principal argumento para 34% das mulheres que provocaram o aborto; o fato de ter que assumir a gravidez sozinha foi apontado por 21%; o medo de rejeição da família, 14%; e o medo da rejeição do companheiro, 13%.

Quando questionadas sobre o que pensam da legalização do aborto, 59% afirmaram que a lei deveria permanecer como estava ao passo que 22% alegaram que o aborto deveria ser proibido em todos os casos e situações. Porém, 16% das mulheres ouvidas consideraram que o aborto deveria deixar de ser considerado crime.

Estudo mais recente, a Pesquisa Nacional de Aborto (APN, 2010) realizada este ano, pela Universidade de Brasília, que envolveu 2.002 mulheres alfabetizadas com idade entre 18 e 30 anos, evidencia que no Brasil o aborto é tão comum que mais de uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já o praticou (22%). Outro dado relevante se refere ao fato do aborto ser realizado nas idades que compõem o centro do período reprodutivo das mulheres – 18 a 29 anos, sendo ainda mais comum entre as com menor nível de escolaridade. O estudo desmistifica a relação aborto e falta de religião, revelando que em sua maioria, estes foram realizados por mulheres católicas, seguidas por protestantes e evangélicas, com bem menor percentual entre as mulheres de outros segmentos religiosos ou sem religião.

Os dados chamam ainda atenção para o fato de que contrariamente ao que se pensava o aborto não é induzido apenas por adolescentes ou mulheres mais velhas, porém a grande incidência concentra-se na juventude, responsável por 60% dos abortos provocados no Brasil. Quanto aos riscos relativos à ilegalidade do aborto, os pesquisadores chamam a atenção para os níveis de internamento pós-aborto que tem se mostrado elevados. Desta forma, constata-se que a metade das mulheres que fez aborto este ano recorreu ao sistema de saúde e foram internadas por complicações relacionadas.

É neste sentido, considerando dados científicos concretos que exprimem a opinião da sociedade, que se considera indiscutíveis a urgência e necessidade de se colocar o aborto como problema de saúde pública no Brasil. Só assim imagino que os debates consigam deixar de ser politiqueiros para se tornarem políticos em essência e fundamento.

Fontes:

http://www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/pesquisas-de-opiniao-publica/pesquisas-realizadas/gravidez-e-aborto


Garanhus/PE, 2003.


sábado, 9 de outubro de 2010

AS ELEIÇÕES 2010 E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES






















A EQUIDADE CELESTIAL

No nordeste é muito comum que as mulheres se chamem Maria. Assim existem as Marias filhas de Marias, como também, Marias tataravós de Marias. E elas são do Perpétuo Socorro, das Graças, da Paz, e também da Piedade. Quantas ainda são da Luz, do Divino Espírito Santo, de Nazaré ou mesmo de Jesus? Enquanto umas carregam o peso do nome da santa, seja essa da Conceição, de Fátima, de Aparecida; outras tantas recebem de batismos o nome das que foram destituídas de santidade como as Madalenas. Outras ainda são de João ou de José. E no fim, serão todas Marias de alguém, pois que raramente conseguem se tornar, ou serem reconhecidas enquanto simplesmente Marias. Nascem filhas condenadas a obediência e trocam de “donos” quando casam. São educadas para procriar e ensinarem às futuras Marias a procriação da subserviência. E assim, as próprias Marias também, anos após anos, perpetuam a subjugação de suas penitencias e permanecem vitimas dos homens que fazem a cultura.

Na solidão de suas sinas muitas se tornam esposas de seus pais. São as Marias-meninas que abusadas e exploradas sexualmente, são iniciadas sexualmente pelos homens da casa. Em Pernambuco, como no Brasil como um todo, não é raro a constatação de meninas grávidas de seus pais, avôs, tios ou irmãos. São segredos de família denunciados pelas barrigas. São destinos que se repetem da mais velha a mais nova. É a cultura do incesto que passa a formar e configurar verdadeiros haréns sob o sol escaldante. A elas não é permitido falar, reclamar ou mesmo reivindicar um futuro diferente, pois que nasceram sob fado das odaliscas do nordeste.

Outras tantas dessas mesmas Marias-meninas serão dadas a “famílias de criação” e não terão destinos menos dolorosos. Serão levadas aos grandes centros para trabalhar em casas de famílias alheias, sem salários, sem educação ou direito a saúde. Tornam-se mulheres no batente, e repetem o destino das escravas da época da colonização. A exploração do trabalho infanto-juvenil seja nos engenhos dos coronéis do interior ou nas “casas das tias afortunadas” que habitam as cidades grandes, são retratos de uma cultura pautada nas desigualdades e exclusões sociais.

Tem ainda as Marias-prostituídas, muitas das quais vendidas por suas famílias ou entregues as cafetinas e aliciadores que lhes ensinarão as dores da “vida fácil”. Violentadas na carne e na alma, descobrem cedo que a vida é por demais perigosa para quem cresce em condições adversas. Muitas se perdem em seus paradeiros, e talvez por não terem aprendido com a história infantil de Joãozinho e Maria não conseguem marcar o caminho de volta para casa. Mas talvez, neste ponto até questionem qual a real vantagem de voltar, pois que sempre formam Marias-sem-lar. Assim, as Marias-traficadas, sejam adultas, jovens ou crianças se perdem na imensidão de lugares onde o Estado não chega. Tornam-se Marias-anônimas em vida e em morte, muitas vezes longe das divisas territoriais da soberania brasileira.

Digo que existe uma diferença muito grande entre o ouvir falar sobre violência contra mulher e o vivenciar na prática profissional o exercício da assistência social.  No primeiro, a comoção torna-se momentânea, pois que com um simples movimento poderemos mudar o canal da TV, ou mesmo passar as páginas dos jornais e revistas, em busca de noticias mais confortáveis. Porém no segundo caso não se tem a escolha de mudar de lugar. A ética e o compromisso profissional nos impõem o respeito e a atenção necessária que caso solicita. É preciso acolher, exercitar a escuta, praticar a empatia e acima de tudo se livrar dos julgamentos pessoais e morais. Faz-se necessário equilíbrio pessoal e emocional, e acima de tudo aprender a lidar com as frustrações para entender as implicações envolvidas em tal fenômeno. Afinal de contas, lidar com a violência contra mulher é lidar com segredos de família, com temas tabus, com uma espécie de sujeira que se empurra para baixo do tapete sucessivamente, até não ter mais como esconder a enfermidade das relações.

Dizem que em algum momento de sua vida profissional, alguma situação ou pessoa assistida marcará para sempre sua vida e memória. Penso então que nesses longos anos em lutas pela igualdade de direitos teria material suficiente para encher mais que um livro. Mas neste aspecto, nada me marcou tanto quanto o “caso das três-marias”. Eram Marias-casadas, eram Marias-mães. A primeira chegou ensanguentada, com o rosto coberto por uma toalha, pela qual tentava esconder a dor e a vergonha de sua desonra. Era uma mulher espancada pelo marido, como tantas outras que superlotam as delegacias e os equipamentos da Assistência Social de qualquer município. Jogada ao chão, foi espancada violentamente a golpes de tijolo. A segunda apresentava hematomas por todo o corpo e encontrava-se acompanhada de uma das filhas. Sua dor não era menor e nem seu estado de saúde, físico e mental, menos grave. Por fim, a terceira, profissional autônoma teve que fugir de casa depois de sucessivas brigas que envolveram golpes de faca. Em comum, além de suas histórias de violência, as três se encontravam sob ameaças de morte. E logicamente temiam por denunciar o agressor. É a cultura do silencio imposto pela lei do mais forte, que encontra respaldo numa cultura machista que norteia as relações de gênero no Estado de Pernambuco, e logicamente no Brasil como todo.

Mas o que mais me impressiona é o fato da violência contra mulher não constar na pauta de candidatos, seja a presidente, governador, senador, deputados, prefeitos ou vereadores. Não pelo menos, com a seriedade necessária. Durante toda a campanha das eleições de 2010 (que ainda não terminou) pouco ou quase nada se falou sobre o número de mulheres assassinadas no Brasil. O tema até chegou a ameaçar os discursos acalorados dos políticos, mais dizia respeito ao caso de uma mulçumana condenada à morte por apedrejamento (alguém se lembra do Caso Sakineh?), e talvez por isso não apresentasse semelhança com nossa realidade cultural. Será? Pois ontem mesmo foi noticiado pela Rede Globo Nordeste a morte de mais duas mulheres na Região Metropolitana do Recife.

Uma foi barbaramente assassinada a tiros disparados por três ou quatro homens, durante a noite, em um matagal de Olinda; a outra foi morta a golpes de martelo deferidos pelo marido, dentro de uma residência localizada em Jaboatão dos Guararapes. Talvez a diferença consista no fato de que o apedrejamento no Irã aconteça em praça pública, enquanto que nos casos em questão, tanto o matagal noturno quanto o interior de uma casa se configuram como espaços do privado. Então o que parece nos chocar não são os requintes de crueldades, mas sim, o fato de sermos obrigados a presenciar tais assassinatos, o que nos torna cúmplices e exige decisões pessoais. Ao presenciarmos o ato ficamos acuados pela proximidade testemunhal, o que pode implicar em envolvimento inclusive judicial.

Mas os números de Pernambuco apontam 189 mulheres assassinadas no Estado em menos de dez meses, ou seja, no curto período de janeiro a outubro deste ano (NETV, 08.10.2010). Isso significa quase 19 mortes por mês, o que equivale dizer que em média a cada 36 horas uma mulher pernambucana é barbaramente assassinada. Se considerarmos os casos, nos quais tal modalidade da violência não chega as “vias de fatos” (como diriam nossos matutos machistas), mas deixa sequelas que nem sempre serão apenas físicas, mas também morais e psicológicas podemos entender que esse quantitativo é pelo menos o triplo. Então, numa equivalência hipotética teríamos uma média de duas mulheres agredidas e violentamente espancadas por dia.

Neste sentido, não seria lógico pensar que os custos financeiros e sociais relativos aos cuidados e socorros dessas mulheres são bem maiores que os recursos necessários as ações preventivas? E antes mesmo que pensem que estes assassinatos são casos isolados, relembro que a mais ou menos quinze dias os jornais divulgaram o caso de uma ex-atleta do Sport Clube que foi assassinada a tiros em frente de sua casa, estando esta ao lado de seu filho. Na mesma semana, duas mulheres foram alvejadas por balas, disparadas dentro de uma clínica odontológica localizada no centro do Recife, por um ex-namorado inconformado com o fim de uma relação amorosa. E essas são ocorrências que tem se dado apenas na área metropolitana, o que a meu ver tem evidenciado alguns equívocos por parte do Governo no entendimento relativo ao enfrentamento da violência.

Afinal de contas, como já dito anteriormente e comprovado por estudos e pesquisas científicas, não se diminui violência sem se investir na educação de qualidade e na diminuição das desigualdades sociais. Assim, não basta investir na aquisição de novas viaturas, no contingente de agentes policiais e/ou na proliferação desenfreada de câmeras de monitoramento. Mas, ao contrário, é preciso investir esforços, e recursos logicamente, na formação cidadã e na reestruturação e transformação cultural da sociedade pernambucana. Essas situações cotidianas de violência contra a mulher têm evidenciado a fragilidade dos governos (seja no âmbito federal, estadual ou municipal) no enfrentamento ao fenômeno. E destaco a dimensão cultural porque facilmente se constata na prática o quanto é difícil o entendimento por parte de muitos dos gestores públicos, promotores, delegados e agentes de polícia em relação a seus papeis na efetividade do cumprimento e importância, por exemplo, da aplicabilidade da Lei Maria da Penha.

Então, o que fazer se as próprias leis ainda são regidas quase que majoritariamente por homens, e estes, em sua maioria, partem de uma introjeção cultural do “poder masculino” sobre a mulher? O que se tem verificado na ponta, são posicionamentos e práticas profissionais respaldadas nas relações de desigualdades de gênero. É comum o entendimento de que mesmo depois de registrar a agressão em delegacia a vitima retorne e retire a queixa contra o agressor. É o que se chama do ciclo da violência. Isto é fato. Mas é fato também que nem sempre se considera os motivos que a levam as vitimas a procederem dessa forma, muitas vezes, motivadas por ameaças em relação à vida dos filhos, falta de condições financeiras para o sustento e manutenção dos mesmos, falta de qualificação profissional para se inserir no mercado de trabalho, vergonha diante dos filhos e sociedade, sentimento de fracasso diante dos planos de uma família feliz, bem como pela morosidade e ineficiência da garantia de proteção a vida.

Para que é vitima, talvez o grande conflito consista no fato de questionar no que adiantaria denunciar se o agressor, na maioria dos casos, não é preso imediatamente? Quais as garantias se apresentam para uma mãe que tem seus filhos reféns? E neste aspecto, talvez seja interessante repensar também em como garantir que todos terão um final feliz se as delegacias ainda teimam em não cumprir com suas responsabilidades? E como efetivar a garantia de direitos se não conseguimos cumprir com nossas obrigações no sentido de garantir a vida? Assim, até que ponto as mulheres não se tornam mais uma vez vitimas do próprio sistema, uma vez que não conseguem se sentir suficientemente seguras em seus intentos? E claro que neste aspecto, devem-se considerar os esforços e iniciativas governamentais no sentido do fortalecimento da rede de enfrentamento, seja através da ampliação dos Centros de Referência Especializada da Assistência Social – CREAS Regionais em cada Região de Desenvolvimento do Estado, bem como das Secretariais Especiais da Mulher nos municípios com os maiores índices de violência registrados.

Mas acima de tudo, na busca pela garantia de direitos das tantas Marias violentadas diariamente é preciso um maior investimento coletivo no processo de mudança cultural. É preciso uma reestruturação educacional e talvez criar mecanismos punitivos pela isenção de responsabilidades. Precisa modificar o processo pelo qual se faz necessário convencer delegados e juízes a colocar a lei em prática. Se a lei é para ser cumprida, não cabem questionamentos pautados em posicionamentos pessoais, que recheados de julgamentos morais e religiosos colocam em risco de vida milhares de mulheres. E neste sentido, mostra-se assertivo a implantação das Delegacias da Mulher. Porém, o que se questiona é até quando as ações se manterão dentro de uma cultura sectarista. E neste ponto, acredito que investir ainda mais no fortalecimento das mulheres enquanto sujeitos de direitos tem se mostrado como forma viável de se combater as desigualdades.

Na minha própria família são seis as Marias, mais talvez por terem herdado apenas o santificado simbólico como sobrenome, tem se mostrado mulheres da contra cultura machista. Não são feministas, mas lutam cada uma a seu modo por igualdades de direitos. Tornaram-se aos longos dos anos, mães, profissionais e cidadãs. Acredito que este é fruto de um processo de educação de base, por isso lembro que quando criança minha mãe nos mostrava nos céus três estrelas que se localizam próximas ao cruzeiro do sul. Estas são denominadas Marias. E mesmo sem grandes conhecimentos em astrologia, referia-se ao asterismo (grupo de pequenas estrelas) na constelação de Órion (ou constelação equatorial), formada por três estrelas brilhantes, que em linha reta, mostram-se igualmente espaçadas, sendo popularmente conhecidas como as três-irmãs e/ou as três-marias.

E dela sempre ouvia que estas eram em igual proporção aos três-Josés, tanto em quantidade quanto em intensidade de luz. Com isso, minha mãe que também é Maria, mostrava ao mesmo tempo em que nos ensinava a doutrina da harmonia entre os sexos através de uma espécie de equidade celestial. E era como se desejasse nos revelar que o que se via no céu deveria ser extensivo a terra, pois que tal ensinamento era do campo do divino, era sobrenatural e por isso perfeito e primoroso. Aprendemos então que aquela deveria ser uma regra que estava acima da natureza humana, pois que sobrenatural diz respeito a tudo que é ligado à ação da graça divina, que por sua vez, está acima da essência e do agir da criatura. Hoje penso se este não seria um caminho interessante para se reeducar nosso povo. Se o fortalecer do elo humano com o divino e/ou místico, independente de credos e segmentos religiosos, não contribuiria para a formação de uma sociedade mais justa e igualitária.

Justifico minhas reflexões saudosistas não por acreditar que na época de minha infância as relações de gênero fossem mais igualitárias e justas. Não, mas por confirmar que o processo de transformação cultural é possível e que neste processo as mulheres têm importância e papel fundamental, o que justifica a luta secular do movimento feminista no Brasil e no mundo. Talvez o fortalecimento junto a nossas crianças e jovens quanto ao entendimento de que a delicadeza e a sensibilidade também são do masculino, se apresente como estratégia eficaz para minimizar o medo dos homens em dividir poder. Se a supremacia masculina é fruto de uma construção social, logicamente torna-se passível de mudanças, o que já se revela na modernidade. Daí a acreditar na educação como forma de acelerar transformações.  Garantir os direitos das mulheres hoje se apresenta como necessidade de sobrevivência social e econômica de qualquer sociedade. É fato que no Brasil, não somos mais maioria e preciso ajustar as regras e normas sociais a fim de se garantir maior harmonia.

E talvez neste sentido seja interessante pensar no quanto somos atrasados, pois que pela primeira vez, em mais de quinhentos anos, teremos agora a possibilidade de sermos governados por uma mulher. Não que esse fato por se só justifique meu voto, mas por representar o inicio de uma mudança comportamental e cultural que se faz urgente, até porque a violência contra mulher a muito já se transformou em um problema de saúde pública. Os custos com a violência representam inaplicabilidade de recursos em desenvolvimento, seja social, econômico ou humano. E se a pátria é mãe, nada melhor do que uma representante das Marias para geri-la. E administrar uma nação independe de sexo, mas sim de competências, habilidades e capacidade profissional.