segunda-feira, 30 de agosto de 2010

ISSO É COISA DE MENINO?




















Auto Retrato - Recife-PE/2010


A invisibilidade do masculino nos estudos sobre exploração sexual de crianças e adolescentes.

Dizem que agosto é o mês do azar. Durante toda minha infância sempre escutei dizer que esse era o mês de cachorros doidos. Nunca entendi direito os motivos que geraram tais crendices, porém uma coisa é certa, para mim agosto foi enlouquecedor. De repente me vi envolvido em meio a vários projetos pessoais, repletos de possibilidades profissionais, que consumiram mais tempo que do que realmente dispunha.

Assim, no inicio do mês foi publicada em caderno especial do Jornal do Commércio, uma extensa reportagem sobre os boys de programa de Recife, da qual tive imenso prazer em poder contribuir para dar visibilidade a um fenômeno social que clama a emergência de políticas públicas. No período de 11 a 14 participei do Encontro da Psicologia Pernambucana – Ciência & Profissão, no qual realizei em parceria com meu companheiro de pesquisa Normando Viana, o mini curso: Isso é Coisa de Menino? A (IN)visibilidade dos meninos e adolescentes nas situações de exploração sexual – Possibilidades de Intervenções. Uma semana depois recebi a notícia de que nosso roteiro para documentário de curta metragem digital, intitulado: Eu Feminino – A História Contada e Cantada de Elza Show, mais um projeto de pesquisa em parceria com Viana, será agraciado com “Menção Honrosa” pelo Prêmio Naíde Teodósio – Estudos de Gênero. Por fim, no período de 23 a 26 estive em Florianópolis/SC, participando do Seminário Internacional Fazendo Gênero 9 – Diásporas, diversidades e Deslocamentos, onde apresentei o artigo: Quem Come é Quem Engole: A Subjetividade na Construção das Perfomances de Gênero Entre os Boys de Programa de Recife.

Finalmente consegui retornar a minha rotina, e logicamente às minhas reflexões a cerca das desigualdades sociais de Recife, e dentro dessa perspectiva objetivo propor um pensar sobre a violência urbana. Considerando a violência um dos mais antigos fenômenos da humanidade poderemos entendê-la como produto de relações sociais construídas de forma desigual e geralmente materializada contra pessoas que se encontram em desvantagens (sejam físicas, emocionais e/ou sociais), onde em nossa sociedade tem sido evidenciada no ambiente doméstico/familiar como resultante de uma cultura patriarcal pautada em construções sociais que validam o poder de subjugação dos homens sobre as mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos.

Pesquisas e estudos têm confirmado uma maior incidência entre meninas e mulheres, enfatizando a questão de gênero, que precisa ser entendida enquanto conceito estratégico para a análise de tal fenômeno. Dada a complexidade que envolve o tema da violência sexual, é preciso compreendê-la a partir de seus aspectos sociais, culturais, políticos, econômicos e jurídicos (Leal, 1999). Demais estudos, revelam ainda que a violência sexual ocorre tanto no ambiente intrafamiliar, quando se configura relação de parentesco entre vítima e agressor; quanto no extrafamiliar, sem relação de convivência familiar entre agressor e vítima. Dentro desses parâmetros a exploração sexual, caracteriza-se como modalidade de violência, frequentemente desenvolvida a partir de um adulto contra uma criança ou adolescente, de ambos os sexos, porém com maior incidência de meninas.

Tais relações de força e poder apresentam-se nas formas de abuso sexual e exploração sexual de crianças e adolescentes. Especificamente sobre a segunda categoria de violência sexual, entende-se que pode se apresentar enquanto exploração sexual propriamente dita, com único objetivo de obter prazer sexual através dos corpos de crianças e adolescentes; ou ainda, enquanto exploração sexual comercial, que objetiva a obtenção do lucro através do agenciamento de crianças e adolescentes e, que na maioria das vezes ocorre através da ação das redes de prostituição, pornografia, tráfico de seres humanos para fins de prostituição e turismo sexual.

Segundo o Centro de Referencia para Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes – CECRIA (1999) para se analisar o fenômeno da exploração sexual de meninos, crianças e adolescentes no Brasil, se faz necessário considerar as questões histórico estrutural e cultural de cada Região, bem como suas dimensões territoriais, densidades demográficas e diversidade cultural, econômica e social. Ainda, de acordo com os Anais do Seminário sobre a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas, divulgado em 1996, constata-se que na realidade brasileira “a idade das crianças e adolescentes submetidos à exploração sexual, oscila entre 10 a 19 anos e tanto podem ser do sexo feminino quanto do masculino, de todas as classes sociais e etnias. Segundo dados sobre a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, existem um milhão de crianças inseridas no comércio sexual e na pornografia, no mundo inteiro (OMT- Cairo/95).

No Brasil, vários estudos tem apontado que na Região Nordeste, constata-se duas realidades que caracterizam a exploração sexual de crianças e adolescentes: 1) referente ao fato de meninas em situação de rua recorrer ou se submeter à prostituição como forma de sobrevivência; e, 2) referente ao agenciamento de crianças e adolescentes, em estabelecimentos privados, para a comercialização do sexo. Especificamente no âmbito da comercialização, o turismo sexual revela-se como principal forma de agenciamento em todo nordeste (Gomes, Minayo e Fontoura, 1999), através de duas estratégias de aliciamento: 1) promoção de pacotes de turismo que incluem as meninas como atração sexual, mais comum nas cidades do litoral do Estado de Pernambuco, incluindo o arquipélago de Fernando de Noronha; e, 2) rede organizada de exploração sexual formada por donos de estabelecimentos formais e informais de entretenimento e lazer no Estado, sobretudo nas regiões litorâneas.

Assim, o Brasil tem se configurado no cenário mundial como um país com altos índices relativos à violência sexual contra crianças e adolescentes, com destaque para a exploração sexual comercial, que tem se tornado uma constante em todas as capitais (UNICEF, 2007). No mapeamento anual dos pontos de exploração sexual infanto-juvenil nas estradas brasileiras, realizado pela Polícia Rodoviária Federal (2007), por exemplo, registrou-se um aumento em 55% destas ocorrências em relação ao ano de 2006. Os dados mostram que a região nordeste do país se destaca enquanto área com maior concentração de municípios onde são registrados os casos de exploração sexual. No ranking nacional, o estado de Pernambuco aparece em terceiro lugar com o maior índice de prostituição infanto-juvenil, com sua prática registrada em 38,04% dos seus 184 municípios (SDS-PE, 2007).

Como já destacado em vários outros momentos, a cidade do Recife não foge a este quadro, uma vez que no centro da cidade, o envolvimento de meninos e meninas em situações de prostituição pode ser constatado em espaços e territórios específicos. (ver Souza Neto, 2009; Queiroz Viana, 2010). Diante desse quadro percebemos a urgência no estabelecimento de ações e estratégias, bem como da implementação de políticas públicas de proteção social voltadas ao atendimento, principalmente de meninos em situação de exploração sexual. Objetivamos desta forma, dar visibilidade a um fenômeno pouco explorado nos estudos acadêmicos, bem como chamar a atenção para a necessidade de instrumentalizar os operadores da política de assistência social no âmbito da proteção social especial de média complexidade, a fim de se buscar uma maior compreensão quanto aos fatores motivacionais que levam os tais meninos ao engajamento no mercado do sexo.

A Invisibilidade dos Meninos nos Estudos sobre Exploração Sexual

Realizando uma revisão na literatura brasileira, verifica-se a unanimidade no entendimento conceitual da prostituição como modalidade da exploração sexual de crianças e adolescentes, assim como, relativo à indignação social diante da crueldade e requintes de violência que caracterizam suas práticas. A partir do I Congresso Mundial de Combate a Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes, realizado em Estocolmo, Suécia, em 1996, tal modalidade passou a se constituir como violação dos direitos infanto-juvenis, por tratar meninos e meninas explorados como objetos sexuais ou mercadorias. Todavia, constatamos que apesar de diversos estudos reconhecerem o envolvimento de meninos, estes muitas vezes aparecem como sujeitos coadjuvantes nos cenários da prostituição infanto-juvenil, tráfico de seres humanos e turismo sexual. Sejam através de pesquisas e artigos científicos, estudos do governo ou reportagens de jornais, o discurso recorrente mostra-se centrado, quase que especificamente na exploração sexual de meninas que se dará, quase sempre, através de uma rede composta por pessoas adultas que estabelecem uma relação comercial com seus corpos.

Assim, para melhor acompanhar as mudanças nos discursos, ou ainda, a falta destas, estabelecemos um panorama cronológico referente ao período de 1998 a 2008, por considerá-lo como de maior efervescência para as pesquisas nesta área. Assim, tomaremos como base o artigo de Marcel Hazeu e Simone Fonseca, que em 1998, ao abordarem a problemática no Estado do Pará, destacam que “com a decadência dos garimpos da Região Norte o fluxo de mulheres e meninas diminuiu, mas não acabou”. Para os autores, a cidade de Santarém se apresenta como principal município de origem de meninas e mulheres que estão no garimpo, onde, entre as quais, se evidencia a existência de adolescentes, “que por sua fase de vida e fatores econômicos e sociais estão entre as mais procuradas, e entre as que mais procuram a prostituição”.

Ao analisarem o processo de desenvolvimento do Estado, destacam os impactos causados pelos garimpos como consequência da desigualdade social instalada na Região, bem como a dominação masculina, que se pauta numa cultura social patriarcal. A prostituição surge como consequência direta destes dois fatores: desigualdade social e poder masculino, abrindo espaço para a consolidação do mercado do sexo. Neste ponto, propõem uma maior reflexão sobre a inserção de adolescentes neste mercado. Contudo, como poderemos verificar, o termo adolescente será sempre utilizado exclusivamente para denominar as meninas.

[...] Será que o corpo é o único “instrumento” da mulher pobre que é visto pelo mercado moderno? O adulto em vez de ser referencial, dar apoio, aproveita-se deste momento de fragilidade e de busca do adolescente. Os riscos deste mercado de sexo são muitos como a gravidez precoce, abortos, doenças sexualmente transmissíveis, assim como a dupla exclusão social, quando não atendem mais as exigências do mercado do sexo (Hazeu e Fonseca, 1998:36).

Mesmo considerando o maior fluxo das adolescentes envolvidas, nos é difícil imaginar a não existência ou constatação de meninos explorados sexualmente nas regiões de garimpos. Porém, em nenhum momento da análise essa participação é destacada e, por sua vez, o masculino aparece apenas nas figuras dos clientes e agenciadores de meninas. No entanto, quando partem para a análise dos dados relativos à cidade de Belém, capital do Estado, esses revelam a existência da prostituição juvenil masculina, fato que parece constantemente divulgado através dos jornais locais.

[...] Os jornais locais chamam regularmente a atenção para a problemática. Relatam casos de prostituição juvenil nos shoppings ou casas de luxo, como também da existência da prostituição juvenil masculina (Hazeu e Fonseca, 1998:38).

Apesar do registro, verifica-se que a informação aparece de forma tão insignificante entre os tantos destaques para os casos envolvendo as meninas, que poderia passar despercebida a um leitor menos atento. Neste sentido, tal referência parece figurar como nota de roda pé, ou seja, um complemento informativo que não alteraria ou modificaria em nada a lógica do texto.

Já no artigo sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes e a construção de indicadores, publicado também em 1998, Vicente de Paula Faleiros destaca que no Brasil a temática é sempre evidenciada pelos jornais e revistas. Neste sentido, chama a atenção para o risco do sensacionalismo adotado por alguns programas televisivos, ao mesmo tempo em que destaca a importância de se reconhecer a seriedade de alguns profissionais da mídia ao tratarem o tema em questão.

[...] Há, no entanto, trabalhos sérios, como a reportagem de “O Estado de São Paulo” de 23 e 24 de novembro de 1997 [...] Estudos do IML de São Paulo, presentes na reportagem, feitos por Carlos Alberto Diêgoli mostram que das “2.043 queixas de abuso sexual feitas em 1995, 69,77% envolvem garotas menores de 18 anos. [...] O mesmo pesquisador coordena o setor de atendimento do PAVAS (Programa de Atendimento às Vítimas de Abuso Sexual da Faculdade de Saúde Pública da USP). Das 150 meninas atendidas entre agosto de 1996 e setembro de 1997, 57, 4% tinham de 11 a 15 anos. Dos casos, 55,9% eram estupros, 14,9% atentado violento ao pudor, 10,9% tentativa de conjunção, 5,8% sedução, e 6,6% suspeitas. Dessas 150, 5 estavam grávidas e 1,6% tinha o HIV positivo. Segundo o pesquisador, 7,94% dos atendimentos são de meninos (Faleiros, 1998:7).

Note-se que também neste caso, o percentual de meninos vitimizados surge apenas como nota complementar na reportagem. Assim, além de não especificar o quantitativo em números estratificados, a exemplo das meninas, a nota de registro parece surgir como um apêndice entre os demais dados, talvez evidenciando certa irrelevância ao fato, por parte do pesquisador ou ainda, pelo jornalista.

Em 1999, o Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes – CECRIA, ao lançar o Relatório Final – Brasil, sobre a Exploração Sexual Comercial de Meninos, Meninas e Adolescentes na América Latina e Caribe, destacou o fato de que os Anais do Seminário sobre Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas, realizado em 1996, já evidenciavam que no Brasil a idade das crianças e adolescentes submetidas à exploração sexual oscilava entre 10 a 19 anos, e que estas, tanto poderiam ser do sexo feminino quanto masculino, de todas as classes sociais e etnias. Porém, ao analisar os dados, observaram a grande incidência de casos de exploração sexual envolvendo adolescentes mulheres, provenientes das classes populares de baixa renda e que vivem na periferia dos centros urbanos, nos garimpos e outros lugares similares (CECRIA, 1999).

Em 2005, Luciana Rachel Coutinho ao analisar os territórios da prostituição feminina em Boa Viagem, bairro nobre da zona sul de Recife, destaca que entre as mulheres que “batalham” nas ruas, é possível observar a presença de meninas. Segundo ela:

[...] Em Boa Viagem a atividade da prostituição, se inicia informalmente e de forma desarticulada, ou seja, ocorre através de meninas que frequentam as praias em busca de estrangeiros, transitam em frente aos hotéis do bairro, além de circularem em bares e danceterias da área em busca de clientes (Coutinho, 2005:55).

Coutinho revela ainda, que os territórios de prostituição apresentam-se subdivididos por categorias entre as prostitutas, travestis e garotos de programa. Especificamente entre as adolescentes, ela acrescenta:

[...] Com relação à faixa etária das mulheres que trabalham em Boa Viagem foi possível, através das observações em campo, constatar que a maioria tem idade máxima de 25 anos, apesar da existência de meninas de 14 anos e até de mulheres com mais de 40 (Coutinho, 2005:114).

Mesmo considerando o recorte de sua pesquisa, não se verifica a evidencia de meninos envolvidos na dinâmica da prostituição masculina que, como sabemos, batalham junto aos boys de programa na Av. Beira Mar (Souza Neto, 2009) e, em algumas situações, junto às prostitutas nos demais espaços identificados.

Ainda sobre Recife, a dinâmica da prostituição no centro da cidade é destaca pelo jornalista Eduardo Machado, que em reportagem publicada em 27 de janeiro de 2005, no Correio Sindical Mercosul revela que o Estado de Pernambuco lidera os números de casos de prostituição envolvendo adolescentes.

[...] Elas começam a chegar por volta das 14h, na Avenida Artur Lima Cavalcante, em Santo Amaro. São pelo menos oito meninas, duas delas com apenas 17 anos. Cobram R$ 20,00 por um programa, que na maioria das vezes, é consumado ali mesmo, na beira do Rio Beberibe. Esse exemplo de prostituição infantil, em plena luz do dia, no caminho entre a Prefeitura do Recife e a Vice-Governadoria, demonstra o descaso com a situação que alçou Pernambuco ao posto de Estado do Nordeste com maior número de municípios onde crianças e adolescentes são exploradas sexualmente, segundo pesquisa divulgada ontem pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos – SEDH (Eduardo Machado, 2005).

Mais uma vez, percebe-se a invisibilidade dada também pela imprensa, ao envolvimento de meninos na prostituição, através da denominação crianças e adolescentes “exploradas sexualmente”.

Maria Lucia Pinto Leal (2007) ao analisar a participação e importância das ONGs sobre as ações de enfrentamento à exploração sexual revela que em Manaus a pobreza transforma milhares de crianças e adolescentes em grupos vulneráveis a exploração sexual e a outros tipos de violência.

[...] Em Manaus, muitas das meninas envolvidas nesta situação de exploração sexual, são motivadas, devido às condições de extrema miséria em que vivem. Esse tipo de prostituição é muito parecida àquela que se desenvolve nas estradas brasileiras. Os consumidores geralmente são os caminhoneiros e outros rodoviários (Leal, 2007).

No mesmo texto é destacada a atuação de algumas organizações não governamentais voltadas ao atendimento de meninas vitimizadas. No entanto, nenhuma referencia é feito em relação ao atendimento de meninos. Assim, parece que também a sociedade civil organizada não se encontra preparada, estruturada, e/ou talvez sensibilizada a ponto de oferecer e propiciar o suporte, atendimento e a garantia de direitos deste segmento da população juvenil.

No mesmo sentido, destacamos ainda, que em reportagem do jornal Imprensa Tribuna, datada de 27 de novembro de 2008, foi registrado o crescimento da violência sexual contra meninos.

[...] O 3o Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes começou ontem, no Rio de Janeiro, com duas constatações: é crescente o número de meninos violentados no Brasil e é cada vez menor a idade de crianças vítimas desses abusos. A informação foi dada pela psicóloga e gerente de projetos sociais da ONG Terra dos Homens, Valéria Brahim (Imprensa Tribuna, 2008).

Observa-se que Valéria em entrevista, apesar de evidenciar o crescente número de meninos vitimizados “entrando nessa relação comercial com o sexo”, foca seu discurso única e exclusivamente sobre as meninas. Assim, ela destaca que:

[...] A idade tem diminuído, crianças de 9 a 12 anos já são vítimas da prática ilícita. A partir dos 12, 15 anos, a incidência é maior. O número de meninos violentados também é crescente. Existe um contingente cada vez maior de meninos entrando nessa relação comercial com o sexo. [...] Temos a idéia que a menina explorada sexualmente deseja esse ato. Uma idéia errada, porque ela não tem condições, pela sua idade, de saber o que é certo ou errado (Imprensa Tribuna, 2008).

Por fim, Nils Kastberg, Diretor Regional do UNICEF para a América Latina e o Caribe, analisa que apesar de ter se passado mais de uma década de esforços mundiais, o número de casos de exploração sexual continua crescendo e, que, cada nova tecnologia criada é seguida por novas formas de explorar crianças.

[...] Vários países contam com um plano de ação para erradicar a exploração sexual de meninas e meninos e quase todos prevêem penalidades em relação à pornografia infantil [...] A cada hora, 228 meninos – e principalmente meninas – são explorados sexualmente em países da América Latina e do Caribe. Só no Brasil foram registrados, em média, cinco casos por dia entre 2003 e 2008 (UNICEF, 2008).

Os vários estudos e documentos aqui analisados apontam crianças e adolescentes do sexo feminino como principais vítimas, muitas vezes, prostituídas em diferentes regiões do país através das redes de exploração sexual e subjugadas aos interesses e prazeres dos adultos. Mesmo considerando os fatores gênero, etnia/raça e classe social, que se configuram como marcadores de diferenças fundamentais para a análise do fenômeno da prostituição e, consequentemente, maior incidência de mulheres, negras e pobres em situação de vulnerabilidade à exploração sexual, pouco se fala da violação e/ou vitimização de meninos, e menos ainda sobre as características e modalidades dos abusos sofridos por estes.

Mesmo entendendo que as categorias analíticas “crianças” e “adolescentes” são abrangentes, tornando-se sinônimos para meninas e meninos, é preciso considerar que ambas, muitas vezes aparecem prioritariamente adotadas como designação do feminino. Tanto que, a partir do final do século passado, parece existir uma maior tendência a adoção de especificações e especificidades através do uso das categorias “meninos”, “meninas” e “adolescentes” nos estudos sobre a exploração sexual

Salientamos que, certamente a revisão aqui apresentada não esgota, e muito menos abrange o quantitativo de pesquisas e estudos relacionados ao tema. Esclarecemos também que não é nosso objetivo reivindicar ou reclamar um espaço de destaque para os meninos em situação de prostituição e/ou de exploração sexual. Muito menos, pretendemos alegar que tal modalidade seja mais grave e/ou cruel que outra. Pretendemos apenas, destacar, como já mencionado, a recorrente invisibilidade dada ao fato de meninos serem tão vítimas nesses processos quanto às meninas. E ainda, chamar atenção sobre a necessidade de se refletir, se esta ausência ou omissão, não está pautada em dificuldades pessoais e/ou profissionais, ou ainda, em preconceitos fundamentados por uma cultura machista que tenta negar um lugar de subjugação, que também se estende ao masculino quando relacionada a uma prática e problemática social reconhecidamente como do feminino.

Texto:
Epitacio Nunes e Normando Viana


















Praia do Picãozinho - João Pessoa/PB - 06.2007

REFERÊNCIAS

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ENNEW, Judith. Exploitation of children in prostitution - Thematic paper: World Congress III - Against the Sexual Exploitation of Children and Adolescents. Rio de Janeiro, Brasil, 2008 (Minha Tradução).

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LANDINI, Tatiana Savoia. O “fazer programa” e a exploração sexual de crianças e adolescentes. I Jornada Internacional sobre Desaparecimento e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e III Seminário Projeto Caminho de Volta. São Paulo, 2009.

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KASTBERG, Nils. Exploração sexual de meninos e meninas: rompamos o silêncio! UNICEF, 2008.

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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capitulo XV - Exploração Sexual de Meninos



















Auto Retrato - Recife/PE - 2010

EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE MENINOS E MENINAS NAS RUAS DO RECIFE: Que Invisibilidade é Essa?

Decidir retornar aos jovens que se aglomeram nos finais de semana, durante o final da tarde e inicio da noite, no cruzamento entre a Rua José de Alencar e a Rua do Giriquiti, devido à diversidade de sujeitos que compõem os grupos sociais que se misturam e interagem entre si, demarcando através das performances de gênero seus grupos de pertencimento. São verdadeiramente tribos noturnas que se aglomeram todas as noites a partir das dezessete horas, com maior intensidade nas quintas e sextas-feiras, e menor fluxo aos sábados e domingos, no espaço que circunda o Shopping Boa Vista. Assim, entre os bares “Mustang”, “Penthehouse” e “Sete Cores”, tornam-se intensas as circulações grupais de “Darks”, “Emos”, “Jovens Travestis”, “Gays”, “Boys de Programa”, “Mariconas”, “Lésbicas” e “Jovens Héteros”, que travam conversas e encontros, onde a livre expressão sexual parece garantida.

É neste espaço, especificamente, que a socialização gay recifense acontece de fato e onde os papéis e performances de gênero parecem não seguir modelos rígidos. Este cenário multifacetado parece se organizar de forma a permitir um redesenhar situacional, onde não raramente se consolidam parcerias eróticas e afetivas entre as mais diversificadas categorias sexuais. São comuns os contatos íntimos e erotizados que incluem beijos, abraços e carícias, e que se dão tanto entre casais héteros quanto homossexuais. Mas essas interações se dão além das identidades preconizadas e revelam-se em parcerias inimagináveis aos mais ortodoxos. Desta forma, viabilizam-se fortes interações entre garotas heterossexuais e garotos homossexuais, ou vice-versa; lésbicas e gays, lésbicas e draggs, jovens travestis e gays, dragg queens e garotas heterossexuais, Emos e Emos, Dark e Dark, e mais uma infinidade de possibilidades, onde muitas vezes as mãos e as bocas, bem como os sarros eloquentes não se limitam às relações paritárias entre duplas, mas permitem trios, quartetos ou maiores grupos de pessoas. Os roteiros sexuais se mostram redefinidos dentro de um contexto de fluidez e transitoriedade erótica onde as categorias sociais mostram-se e/ou tornam-se insuficientes e inadequadas enquanto instrumentos de classificação para as identidades de gênero.

E ainda que o público seja predominantemente jovem, entre a faixa etária dos 16 aos 20 anos de idade, observa-se também uma grande frequência dos “gays de outras gerações”, entre as quais se observa uma constância cada vez maior de meninos e meninas com menos de doze anos agrupados aos “adolescentes mais novos” (denominação usual para quem ainda não completou os dezesseis anos de idade). Também os homossexuais mais velhos, normalmente denominados pelos jovens como “as tias”, “as tias velhas” ou “as mariconas”, envolvem-se em encontros afetivos com seus parceiros estáveis, ou ainda, em relações de paqueras e encontros fortuitos com alguns boys de programa que buscam um “pagante” ou mesmo um “cliente”.

A primeira vista misturadas, estas categorias parecem se dividir e se agrupar de acordo com as afinidades, ideologias e estilos, sem, contudo estabelecer demarcações claras quanto a territórios específicos. Mesas de bares, muros de empreendimentos comerciais, escadarias de edifícios e esquinas com pontos escuros das duas ruas servem como cenário para simples conversas ou mesmo encontros amorosos. Entre estes jovens as relações se configuram no já tão tradicional estilo “ficar”, onde o fato de estar com alguém num determinado dia ou momento não significa necessariamente compromisso ou ligação amorosa e/ou afetiva estável. Assim, essa modalidade de relação e interação afetiva/sexual possibilita que em muitas situações as trocas de casais se dêem em momentos simultâneos, muito próximos aos encontros estabelecidos também em boates e casas noturnas.

Porém um aspecto que chama a atenção é o envolvimento e interação entre adolescentes e homens adultos, que muitas vezes se efetivam as claras e diante, inclusive, de agentes de segurança pública. Em meio a tanta diversidade de estilos e identidades, uma das categorias que mais vem se destacando no local é formada por crianças e adolescentes inseridos no universo da prostituição masculina. Não é preciso muito sacrifício para se contatar os encontros entre garotos jovens com homens adultos que se dão em toda a extensão do perímetro, principalmente no estacionamento próximo a bifurcação com a Rua do Progresso ou ainda nas mesas dos bares. Tal fato evidencia em si a consolidação, e consequentemente a naturalização (e porque não dizer banalização) da exploração sexual de meninos nas ruas do centro do Recife. O tema já destacado em minha pesquisa sobre a prostituição masculina (ver também Viana, 2010), agora ganha mais força com a reportagem do Jornal do Commércio, intitulada “Garotos de Aluguel”, publicada no dia 01.08.2010.

O que se destaca, de certa forma nesta reportagem-denuncia é o caráter de permissividade social e público que se mostra contraditório ao tão propagado status de “invisibilidade” atribuído ao fenômeno da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes no Brasil, mas que em Recife parece se mostrar institucionalizada. Assim, tal situação a meu ver revela-se enquanto negligência dos órgãos públicos seja nas instanciais federal, estadual ou municipal, que têm se mostrado ineficientes quanto ao enfrentamento da exploração sexual infanto-juvenil. É essa ineficiência que termina por configurar o autorizo legal e social a ação dos agressores, que se personificam tanto nas figuras dos agenciadores quanto dos consumidores das práticas sexuais comerciais envolvendo meninas e meninos. Estes compõem diretamente a rede de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, que nos dias atuais mostra-se como o terceiro comercio contraventor mais lucrativo do mundo, perdendo apenas para o tráfico de armas e o tráfico de drogas.

Afirmam alguns especialistas que as Redes de Exploração Sexual se consolidam a partir da fragilidade do Estado, e neste sentido, observa-se nas ruas do Recife que tal prerogativa torna-se uma realidade eminente. Sempre que tenho possibilidades, sejam em encontros de classes, congressos, seminários ou palestras relativos ao tema, questiono sobre que invisibilidade se está realmente falando. Se daquela que não conseguimos visualizar devido as estratégias utilizadas pelos agenciadores, e também pelos executores, que objetivam camuflar suas ações; ou sobre a situação de não querermos, e consequentemente nos negarmos a ver de fato uma realidade tão explícita. Nesta perspectiva tento uma reflexão sobre quantas vezes se fará necessário, e por que meios se poderá informar e divulgar a ação dos agenciadores de meninos e meninas, que aliciados, são usados para comercialização sexual em pontos estratégicos da cidade? O que será preciso para que os órgãos e equipamentos que integram a Rede de Proteção e Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes, incluindo-se a Rede ESCCA (denominação para Rede de Enfrentamento a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes), tanto estadual, quanto municipal, consigam oferecer respostas a sociedade, e principalmente as centenas de crianças e adolescentes exploradas em nossas ruas?

Na tentativa de retirar o tal fenômeno dessa invisibilidade, talvez valha a pena, mais uma vez, destacar que o envolvimento e inserção de meninas nas práticas sexuais comerciais podem ser facilmente verificados, seja durante o dia ou à noite, na Rua Artur de Lima Cavalcante. O trecho que margeia o Rio Capibaribe após a Ponte do Limoeiro, torna-se quase que percurso obrigatório para quem vem pela Rua da Aurora e pretende chegar a Cruz Cabugá. Esta mesma rua nos leva a Vice-Governadoria que se localiza a poucos metros do local. E se atravessarmos a referida ponte, chega-se ao prédio da Prefeitura do Recife, que por sua localização e altura permite que se visualize através dos milhares de janelas, a movimentação frenética de meninas e homens entre o manguezal. Considerando tais aspectos, nos resta apenas indagar: a exploração sexual de meninas nas ruas do Recife é realmente invisível? E se assim o é, para quem?

Se passarmos pela Rua Oliveira Lima e seguirmos pela do Riachuelo, não será possível observar a presença de meninos e meninas (estas, em menor proporção) num movimento também frenético de entra e sai de veículos conduzidos por adultos? Qualquer órgão ou instituição, seja público ou privado, que atue no enfrentamento a exploração sexual e que se dispuser a contribuir para visibilizar tal realidade, terá obrigatoriamente que circular por tais ruas. E digo mesmo de cátedra que não se fará necessário dispensar tanto tempo assim, pois que a frequência e constância de garotos na faixa de doze a dezessete anos no local é enorme. E neste sentido, outro questionamento que faço se refere a quais resultados concretos sobre a atuação dos agenciadores da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes conseguimos até agora com a instalação de uma câmera de monitoramento bem no coração da pracinha do Riachuelo? Será que já se tem dados suficientes para passarmos a considerar tal fenômeno social como visível? Será que através deste equipamento tão sofisticado não conseguimos identificar os responsáveis pelo agenciamento dessas crianças e adolescentes? Ou realmente a questão desta modalidade de exploração sexual continua invisibilizada às autoridades competentes? Talvez então devamos pensar que esta não é uma atribuição da Defesa Social, mesmo que componha a Rede ESCCA (será?).

E por fim, no espaço entre a Rua Giriquiti e a Rua José de Alencar, ou mesmo na Av. Conde da Boa Vista em frente ao shopping, ou ainda no seu cruzamento com a Rua Gervásio Pires, não se observa grande quantidade de adolescentes em pontos de prostituição? Nestes mesmos pontos não se observa a frequência de veículos que param, sinalizam e abrem-se a entrada de garotos, que muitas vezes, não completaram os quinze anos? Será que nestes pontos também não foram instaladas as “salvadoras câmeras”? Talvez neste sentido possamos questionar se elas não atendem a tal finalidade, ou melhor, se quem as monitora não entende sobre exploração sexual, ou ainda, desconsidera tal gravidade. Talvez estas câmeras tenham apenas como objetivo reprimir ações violentas que se traduzam em assaltos ou conflitos que envolvam brigas. E se esta for realmente apenas sua finalidade, talvez os recursos públicos não estejam sendo devidamente potencializados.

Se considerarmos outro aspecto comum a tais espaços, e que se relaciona diretamente ao uso e venda de drogas, que variam entre vinhos baratos, cervejas e vodca, misturados à maconha, loló, lança-perfume e especificamente o crack, as ações de repressão nestas áreas não deveriam ser mais efetivas? Se aos cidadãos comuns é fácil a visualização de crianças e adolescentes atuando na venda, consumo e/ou distribuição de crack, o que falta aos governos para "visibilizarem" a constatação de dois mercados contraventores – tráfico de drogas e exploração sexual comercial, que se consolidam nas ruas centrais do Recife? E neste caso, quem estará por traz do agenciamento desses tantos meninos e meninas? Não serão os traficantes e aliciadores que encontram nestes e em tantos outros espaços da cidade as condições necessárias para a ampliação de seus comércios? E mais ainda, não seria tão importante quanto à atuação numa perspectiva de repressão, a efetivação de ações preventivas? Não nos seria interessante e fundamental pensarmos na educação e informação enquanto instrumentos essenciais a redução dos índices de violência e violação de direitos?

Penso que talvez devêssemos então, investir não só em câmeras de monitoramento, mas aplicar melhor os recursos públicos em olhos mais humanos, favorecendo inclusive as condições necessárias para que estes se tornem mais sensíveis e principalmente seletivos no que se refere ao registro de imagens e fatos. E neste caso, saliento que é preciso treinamento para que possamos enxergar o que realmente se apresenta diante de nossos olhos, e não penas observar paisagens. Porque talvez assim consigamos de forma efetiva e verdadeira retirar a exploração sexual comercial de meninos e meninas da tal fantasiosa invisibilidade social. E ainda, talvez assim, consigamos efetivar também políticas públicas que se mostrem eficazes no sentido de garantir direitos a esse segmento da população, para que finalmente consigam vivenciar a infância e a adolescência em conformidade com as prerrogativas e preceitos da Constituição Federal, que preconiza o direito a igualdade e a vida digna a todos os cidadãos brasileiros; bem como, em atendimento aos regimentos do Estatuto da Criança e Adolescente que norteiam as diretrizes para a efetivação da garantia de direitos dos mesmos.

Pensem bem, nem sempre o que não conseguimos ver de imediato torna-se invisível aos olhos.


















Auto Retrato - Recife/PE - 2010

CARVALHO, Ciara e RIOS, Miguel. Garotos de Aluguel - Jornal com Commercio, Caderno Especial - Recife, 1º de Agosto de 2010.

SOUZA NETO, E. N. Entre Boys e Frangos – análise das performances de gênero dos homens que se prostituem nas ruas do Recife. Dissertação de Mestrado – Programa de pós-graduação em psicologia – UFPE, 2009.


SOUZA NETO, E. N. Os pequenos boys de programa: notas etnográficas sobre meninos em situação de exploração sexual. Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes: reflexões sobre condutas, posicionamentos e práticas de enfrentamento/org. Jaileila de Araujo Menezes-Santos, Luis Felipe Rios – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009.

VIANA. N. J. Q. ’É Tudo psicológico! Dinheiro... Pruuu! Fica logo duro!’: desejo, excitação e prazer entre boys de programa com práticas homossexuais em Recife”. Dissertação de Mestrado – Programa de pós-graduação em psicologia – UFPE, 2010.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capitulo XIV - A Tribo dos Emos



















Baile Municipal - Chevrolet Hall - Recife/PE - 02.2010

EMOs: fragilidade Ideológica ou Lugar Comum?


Quem passa pela Rua do Giriquiti, vindo da Rua do Progresso, ou ainda pela Rua José de Alencar, seja na quinta, sexta, sábado ou domingo, pode se espantar com a quantidade de adolescentes que se aglomeram em um pequeno trecho do cruzamento dessas duas ruas. Se estiver de carro controle o stress e mantenha a calma e simpatia ao solicitar passagem. As vias ficam interditadas e é preciso experiência para espremer o veículo entre uma enorme massa compacta de jovens, que a cada dia se torna mais extensa. Falar sobre as “Tribos do Recife” é necessariamente falar sobre uma gama de personagens que se dividem em grupos e adotam condutas e comportamentos próprios e definiram aquele espaço como território da juventude gay.

Com a reestruturação do centro da cidade, ainda no inicio dos anos noventa, os territórios passaram a se configurar enquanto espaços demarcados por categorias específicas. A instalação do Shopping Boa Vista trouxe para o centro da Boa Vista uma geração mista em estilos e ideologia política (se é que realmente existe alguma). Talvez neste sentido, o descompromisso ideológico seja marca registrada de uma juventude que busca a diversão e o entretimento instantâneo tão característico aos tempos modernos. Assim, tudo e todos parecem ter pressa, pois que é necessário está sintonizado com a ultima moda, conhecer o mega ídolo pop do momento, usar a maquiagem certa e elaborar penteados que em conjunto com a indumentária componham uma espécie de codificação relacionada as identidades sociais de cada tribo.

Em umas das caminhadas pelo local, me chamou a atenção uma adolescente, com talvez seus mal completados doze anos. Parecia indiferente a agitação ao seu redor. A calça jeans parecia colada ao corpo e de tão apertada que se assemelhava a uma camisa-de-força que prendia seus movimentos. Uma bota de couro preto lhe subia pelas pernas até a altura dos joelhos. Uma blusa branca no melhor estilo mini-top, com decote amplo e mangas largas deixava a mostra o sutiã rosa choque. O cabelo acompanhava o tom róseo, que aparentemente despenteado lhe reforçava o ar de desleixo ou sofrimento por depressão aguda. Mas não se enganem, pois ela é apenas uma das tantas “meninas-Emo” que habitam o lugar!

Em outro ponto, um garoto aparentando não mais que quatorze anos, com cabelos pretos brilhosos que caiam sobre o rosto, se movimentava de um lado para o outro da rua. Seus braços pareciam voar a cada expressão e o seu gingado nos faziam lembrar as coreografias de Carmem Miranda. Sua calça também se mostrava “mega-extra-ultra-super” acochada, demarcando as bordas da cueca que também parece fixada a pele. Uma blusa com decote em “V” parecia rasgada propositalmente na extremidade para evidenciar uma barriga tão batida quanto uma tábua de carne. No rosto uma camada (ou talvez várias) de pankec lhe conferia um aspecto de porcelana cristalizada. Seus olhos extremante contornados em preto pareciam saltar das orbitas, quando por ventura um movimento de cabelos permitia seu contato com a luz. Ele também é um “menino-Emo”.

Lembro-me de certa ocasião que ao sair do referido shopping me deparei com uma jovem negra sentada em uma das calçadas da loja. Confesso que seu ar de desolação me chamou a atenção, pois que aparentava uma angustia digna das pessoas desenganadas por alguma doença fatal. Senti mesmo o impulso de me aproximar e perguntar-lhe se precisa de ajuda. Seu corpo parecia jogado sobre o mármore frio, parecendo diluir-se na vitrine repleta de manequins coloridos. Perdida em seus devaneios, olhava fixamente algo que me parecia ausente deste mundo. As lágrimas lhe escorriam pela face e se perdiam no preto de suas roupas. De repente ela desliga o aparelhinho do som, ao qual enrola os fios do plug de ouvido, e o coloca em uma bolsa em plástico amarelo reluzente. Levanta-se lentamente, alisa o cabelo sobre um dos olhos e sai andando em minha direção. Mas uma vez me peguei querendo perguntar-lhe se estava bem, porém não tive tempo, pois que apressadamente acenou para alguém no outro lado da rua e atravessou a avenida correndo entre os carros para se juntar a sua “galera” (será que ainda se usa essa expressão?).

Confesso que no início sentia certo estranhamento ao ver tais espécimes circulando em roupas listradas ou quadriculadas, com adornos de motivos infantis e extravagantes. Seria uma invasão de seres de outros planetas? Era carnaval fora de época? Nada disso, eram os Emos que pareciam invadir o centro do Recife. Sempre em grupos, de mãos dadas e aos beijos, garotas e garotos parecem prontos e dispostos a revolucionar as regras. Hoje são tantos e tão variados que se torna difícil entender ou classificá-los em uma categoria específica. Porém, percebo que talvez essa seja apenas uma tendência ou necessidade dos pesquisadores. Não acredito que para os mesmos importe tais denominações ou rótulos que julgamos necessários ao novo.

Ficava impressionado com fato de constatar que ninguém do meu circulo de relações conhecia um Emo de verdade. Ninguém me dizia ter um filho, nem mesmo um sobrinho, ou ainda vizinho Emo. Então me questionava como conseguiam se multiplicar nas ruas? Como se aglomeravam as centenas nas áreas circunvizinhas ao shopping? De onde danado viam aquelas criaturas de aparência apática? O que pensam ou que sentem? E acima de tudo, pelo que lutam? Comecei então a me questionar: afinal de contas o que significa ser Emo? E não pensem que aqui estou me referindo ao macho da ema, espécie de ave que habita os campos e cerrados brasileiros, ou mesmo ao personagem do folclore nordestino. Não, estou falando dos Emos, que em sua maioria, tais como as referidas aves parecem não medir mais que um metro e meio e revelam pernas alongadas que parecem se movimentar com uma sutileza desengonçada e cambaleante. E ao contrário das emas-aves que têm apenas três dedos nos pés, os Emos-humanos parecem não possuir nenhum (alguém já viu os pés de um Emo?), pois que os sapatos tornam-se extensivos as calças.

Um dia na Metrópole havia uma espécie de confraternização Emo, e desavisadamente me deparei com uma grande quantidade de seres encantados que mais pareciam ter saído das histórias em quadrinhos japonesas. Eram em sua maioria magros, quase esquálidos, de aparência melancólica que contradizia uma euforia histérica de criaturas perdidas e cheirando a leite. Eram meninas e meninas que se confundiam em aparências andrógenas, ora feminino, ora masculino, numa verdadeira mistura dos papeis de gênero. Garotos abraçados a outros simulavam beijos e carícias, sempre atento aos olhares alheios. As garotas por sua vez, em duplas ou trios, portavam garrafas de água e faziam poses languidas para as fotos. Um dos Emos me despertou admiração (e aqui peço desculpas antecipadas por não saber que gênero deveria utilizar). Era de baixa estatura e tinha cabelos longos alisados que chegavam ao meio das costas. Magérrimo dentro de uma calça jeans desbotada e aparentemente suja fazia poses estanques no melhor estilo das grandes modelos em desfiles de moda. Seu rosto era pálido contrapondo-se a cor dos braços e colo. De certa forma lembrava a Luiza Brunet, contudo era uma figura extremamente estranha dentro de “look-fashion” também estranho e com uma voz ainda mais estranha.

Aproximei-me do grupo na tentativa de ouvir um pouco da conversa e buscar subsídio para minhas impressões. Era difícil entender algo do que se falava e tive a nítida impressão de que realmente não falavam, pelo menos nada de concreto. Era como naquele grupo estivesse sendo travada uma competição, pois que as frases quase nunca se completavam, ao paço que alguém sempre iniciava um novo assunto (ou melhor tópicos que se perdiam no ar). Achei que estava com problema de audição, ou que em ultima hipótese estava sendo prejudicado pelo barulho provocado pela musica alta. Depois com o tempo, e com a maior proximidade, percebi que a conversa se dava numa espécie de dialeto indecifrável e incompreensível. As vozes são sempre afetadas por uma “afeminamento” (desculpem não encontrar palavra mais apropriada) que incomoda os tímpanos. As risadas me pareciam descompensadas e desconexas, talvez com o único intuito de fazer suada ou chamar a atenção. E definitivamente não consegui entender nada!

Reconhecendo minha ignorância relativa ao tema precisei recorrer à internet para buscar entender que o termo Emo é bastante usual em referencia as bandas ou ao estilo de se vestir com roupas pretas. E é bom salientar que o que caracteriza um Emo de verdade é uma franja que cai sobre um dos olhos, que em certos casos lhes confere cara de coruja ressentida. Essa franja de preferência deve chegar até a altura da boca, e alisada com cremes ou pastas fixadoras formam uma cortina que esconde metade do rosto. Esse estilo de vida ganhou força nos anos 2000, porém enquanto estilo, surgiu ainda na década de oitenta. E se antigamente a palavra designava apenas as bandas musicais de estilo “Emotional Hardcore”, com letras mais emotivas e melancólicas, hoje representa uma categoria social formada por adolescentes que se vestem e vivem (ou parecem viver) de forma diferente.

Em minha viagem pela internet, posso dizer que realmente me espantei com a quantidade de sites e blogs sobre o ser Emo. Não ser no sentido de indivíduo ou sujeito, mas ser no sentido de se sentir, se portar e logicamente se reconhecer enquanto tal. Parece mesmo existir manuais de formação, onde é possível encontrar milhares de dicas que orientam para o processo de transformação. Uns mais números em detalhes, outros mais simples, porém todos como os fundamentos básicos de uma filosofia que se pauta no direito de vivenciar a emoção, livres dos modelos machos e fêmeas que permeiam nossa cultura.

Em um desses sites encontrei vinte e quatro dicas importantes e fundamentais de como ser e se sentir um puro Emo de verdade. E como princípio fundamental e regra, deve-se entender que no mundo Emo não interessa ser apenas mais um, mas tem que ter estilo e assim se diferenciar para se tornar único. Outra lei que rege a conduta destes seres é a busca pela evidência ou “estrelato social”. Assim, vale de tudo para despertar curiosidades de câmeras e flashes que os levem ao lugar de destaque. E neste sentido, penso que a busca por essa diferenciação funciona como recurso para que todos se sintam iguais e assim fortaleçam seus sentimentos de pertencimento. Busca-se a diferença para se conseguir a aceitação dentro de um grupo pasteurizado e monocromático. Afinal de contas, quem vê um Emo, ver todos. Confirma-se então a velha e evidente hipótese de que independente de categoriais ou tribos, o homem continua sendo um animal sociável e por isso necessita da interação e vivência grupal. E que logicamente os grupos se formam a partir da semelhança de seus pares. Então ser Emo parece ser muito mais uma busca pela aceitação e pertencimento do que uma ideologia de mudanças radicais.

Se você pretende adentrar num mundo a que talvez seu filho pertença, é bom saber ou conhecer algumas noções básicas para melhor se comunicar e conviver sem grandes conflitos. Em primeiro lugar acho interessantes destacar que enquanto filosofia, os Emos não têm sexo definido, o que possibilita abertura e o autorizo para beijar pessoas de ambos os sexos e identidades de gênero. Contudo, segundo os manuais de orientações, estes devem evitar as relações sexuais com pessoas do sexo oposto. O que se configura a meu ver, tão radical e separatista quanto a cultura heterossexista. Talvez se configure como reflexo inverso de um modelo que ainda nos serve de parâmetro social e que tenta se manter como norteador da sexualidade humana.

Os Emos devem inclusive evitar manter contatos, conversas ou estabelecer interrelações sociais com pessoas de outras tribos, pois que devem se relacionar apenas entre si. Em um dos fundamentos orienta-se aos jovens a esquecer todas as suas antigas amizades porque agora pertence a um grupo ou sociedade diferenciada, com costumes e culturas próprias. O Emo de verdade chora, e chora muito, mesmo sem motivos. E como diria uma velha amiga minha, para ser reconhecido como integrante do grupo tem que chorar a cântaros, numa hiper sensibilização estereotipada. Outra dica importante e imprescindível a uma boa imagem, e consequentemente bem sucedida aceitação refere-se a utilização de roupas justas e bem apertadas, que como eles mesmos pregam, tem que ficar colada no “chaci da pessoa”.

O cabelo é requisito obrigatório, pois que é talvez o principal elemento de identificação ideológica. E por isso tem que ser moldado no melhor estilo o “boi lambeu”. E vale a advertência, se seu cabelo for liso, seja bem vindo ao restrito universo dos escolhidos e eleitos; se crespo, torna-se necessário alisamento para se aproximar do modelo padrão. Neste sentido penso se não seria uma estratégia para se estabelecer enquanto raça pura. Não basta ser Emo, mais tem que ser branco e de cabelos lisos, e prá isso vale qualquer sacrifício, inclusive clarear a cor da pele (será que o Michael Jackson ditou moda?), dos olhos ou colorir os cabelos. A aparência precisa ser alva e neste caso pode-se recorrer aos truques de maquiagem, sempre com um tom a menos do pó facial. “A cor dos lábios deve ser suavizada com um tom rosado que se consegue com batom cor da pele”, diz uma garota-Emo em seu blog. E acrescenta, “é interessante pintar os lábios com lápis rosa e depois passar o gloss para fixar o brilho”. E neste ponto me questiono sobre qual “cor da pele” ela se refere? (ou melhor eles/elas se referem?). Mas uma vez constata-se o recorte étnico/raça que permeia modelos. Tanto que nos vários sites visitados não encontrei Emos-negros (alguém já achou, ou procurei pouco?).

Outro aspecto importante é que se você for Emo legítimo ao acessar o MSN ou postar em blogs deve se apresentar sempre com pronomes de tratamento formais, do tipo “Sr.”, “Sra.”, “Srta”, “Srto”, “Dona”, “Lady”, “Mister” (...) e mais uma grande quantidade de títulos que talvez se relacionem a lugares de poder (Logo, não parece uma doutrina burguesa?). e lembrem-se que a regra gramatical é não ter regras, por isso nada de pontuações ou acentos. Também vale trocar letras e escrever como se falar. Não se faz necessária a correção ortográfica, afinal o importante mesmo é se comunicar. E neste sentido comunicar algo não necessariamente se correlaciona a se fazer entender.

A maquiagem (ou melhor, Make) torna-se também recurso fundamental e gênero de primeira necessidade, ao possibilitar que se capriche no lápis preto em torno dos olhos para dar uma aparência de tristeza profunda. O blush servirá para contrapor a depressão simbólica com o frescor necessário à composição performática. Por isso penso que talvez seja como um personagem que vai sendo elaborado aos poucos, pois conforme orientação dos manuais-Emos, você vai se descobrindo com o passar do tempo e o visual vai se alternando de acordo com o seu ânimo (conseguem entender agora?). É que no aspecto Make, uma das orientações diz que “a maquiagem precisa ficar próxima a de Hitler!”. E neste ponto confesso que não entendi o contexto e a colocação (será que perdi a piada, ou é isso mesmo?). Talvez a garota-Emo do blog em questão não tenha estudado suficientemente história e não sabe o que referenda. Mas talvez seja uma referencia ao processo de clareamento da pele, no melhor estilo eugenista (será?). Então, realmente não existem Emos-negros? E se for assim, podemos por acaso supor que tal filosofia se fundamenta num recorte étnico? (talvez seja melhor perguntar, caso seu filho ou mesmo sobrinho seja um deles. Porém será que saberão explicar, ou pior ainda, entender sobre o que você vai estar falando?)

Bom, mas voltando as demais dicas, lembre-se que para os Emos a hora de tirar fotografias é única e torna-se “momento brilhante”. Por isso a orientação é que você se transforme e de preferência entorte a boca e faça “cara de pensativo”. Como ideologia, adote o estilo crítico e reclame ao máximo das coisas, seja do governo, da sua escola, do emprego (gente, Emo trabalha? Alguém conhece um em sua empresa?) e principalmente do sistema capitalista (mesmo que não se demonstre saber o que é capitalismo, como parece não se saber o que nazismo). Mas o mais importante é que na verdade um Emo “nunca faça porra nenhuma para mudar nada”, ou seja, apenas critique, mesmo sem ter opinião formada ou acreditar no que está falando (isso quando souber o que fala). Assim, quando alguma coisa lhe incomodar “abra o maior berreiro”, pois é no grito que se ganha uma luta.

O menino-emo deve ouvir “música de fresco”, enquanto que as meninas-emo devem chamar sua melhor amiga de “marida”, mas ambos devem ter “um mau gosto da porra” e se tornarem belos “paga pau”, pois que os micos são características da espécie. E neste aspecto é interessante observar as contradições ideológicas. Os Emos em sim se dividem em meninas e meninos numa cópia fiel, disfarçada em nova roupagem, ou como diriam repaginada. As demarcações que parecem ser de gênero mostram-se também pautadas em sexo – emo macho e emo fêmea. Será que os meninos-Emos chamam seus melhores amigos de esposo? Ou será que no “fringir dos ovos”, eles são tão machistas que não possuem um melhor amigo? Será que o movimento Emo prega o respeito a diversidade ou replicam os papéis e modelos sociais tão tradicionais quanto o fato dos adolescentes desejarem se mostrar irreverentes? Penso que talvez ser Emo seja apenas uma fase transitória entre a criança carente ou mimada e o adulto conservador em que deve se transformar num futuro próximo.

Por fim, as “tábuas de Moisés” da doutrina Emo pregam uma passividade descabida e sem motivos: “com todas as pessoas com quem conversar exponha sempre seus medos, anseios, problemas pessoais e principalmente os defeitos. O que está em jogo é transmitir a imagem de vítima”; ou ainda, “caso sofra violência nas ruas você não deve ligar e se possível aproveite para chorar muito, a ponto de chamar a atenção das câmeras de televisão”. Promulga-se assim uma permissividade a violência e um menosprezo autodirigidos, que aliado ao sentimento de piedade solicitado parece fortalecer a imagem comprometida que tentam passar enquanto sujeitos imaturos e inconsequentes no que se refere às noções de direitos e cidadania.

Assim acredito que antes de acharmos interessante, irreverente ou engraçado as estripolias de nossos filhos-Emos, talvez fosse melhor refletir junto com eles sobre seus anseios, dúvidas e desejos tão comuns na adolescência, para que não repliquem simplesmente por modismo um aprendizado ideológico que parece se pautar no fato de que: “Se alguém te bater chore e agradeça. E se te jogarem numa lata de lixo sinta-se feliz, porque você já fede mesmo”.

Carnaval 2010 - Recife/PE

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capitulo XIII - Socialização Gay em Recife


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Do Bar do Karalho ao Shopping Boa Vista - A eterna luta pela definição de territórios


Como já dito anteriormente, minha chegada ao centro de Recife coincide com o período de abertura política, onde a censura se tornava mais amena com o passar dos tempos, e assim pude de certa forma, acompanhar as transformações que se deram durante e após a “revolução de oitenta”.

Durante minha pesquisa de mestrado recorri a velhos amigos, a amigos de amigos e pessoas que aos poucos me iam sendo apresentas, com o objetivo de tentar reconstituir um pouco o processo de consolidação e socialização gay em Recife. Através dos vários depoimentos colhidos pude constatar e revelar a efervescência das transformações pós-ditadura, período em que os espaços destinados aos homossexuais e/ou as vivências homoeróticas se restringiam a determinados locais onde, invisíveis aos olhos da sociedade burguesa, tornavam-se possíveis os encontros que se desenvolviam de forma restrita e limitada. Assim, em continuidade a formação e constituição das “tribos de Recife”, resolvi transcrever alguns trechos de minha dissertação no intuito de melhor clarificar a longa trajetória da consolidação de uma cultura gay que vem se afirmando como tendência entre os jovens e adolescentes que povoam nossas ruas de mãos dadas, aos beijos e abraços.

Esses adolescentes e jovens formam talvez a tribo mais alternativa e irreverente da cidade. Concentrados no maior espaço de socialização gay de Recife, misturam-se e diversificam-se em estilos, categorias, ideologias e classes sociais. E aos poucos transformam o cruzamento da Rua José de Alencar com a Rua do Geriquiti, num território que concentra hoje o maior contingente representativo de diferenças, sejam elas de caráter étnico/raça, gênero, geracional ou econômico. O perímetro tem ainda se estabelecido como maior área de empreendimentos econômicos voltados ao público gay alternativo, incluindo o Shopping Boa Vista, conhecido popularmente entre os jovens como “shopping boa bicha”; o Bar Mustang, o mais antigo bar em funcionamento no centro da cidade; Bar Pinthifouse, de público diversificado; Bar Sete Cores, localizado num belo e misterioso casarão antigo e uma sauna.

Considero oportuno, no entanto, voltar um pouco no tempo para melhor entender e explicar a extensão ideológica e cultural do que se pode reconhecer nos dias atuais como reduto da diversidade recifense. Desta forma, mais uma vez esclareço que as descrições a seguir são resultados de dois longos anos nas ruas do Recife e de conversas informais, entrevistas e leituras sucessivas, além claro, da minha própria observação sobre os fatos, que me possibilitaram um panorama geral sobre os processos de construção e reestruturações das performances de gênero em algumas categorias nativas. Saliento ainda, que em alguns trechos as transcrições das narrativas e depoimentos se mantêm fieis ao texto original, e que por isso algumas palavras ou nomenclaturas podem causar certo estranhamento (ou incômodo, porque não?)

Inicio então pelas conclusões de um de meus informantes que, por exemplo, descreve sem grandes romantismos as dificuldades relativas à dinâmica da “pegação” no início dos anos oitenta. Ele relata que existiam naquela época, os cinemas, que não passavam filmes pornôs, e alguns bares, entre os quais, o Savoy, na Av. Guararapes; o HC, na Rua do sossego; o Mustang, que ainda se mantém na Av. Conde da Boa Vista; o Mangueirão e o Bar da Cris, próximos a Universidade Católica, onde as azarações não eram acintosas, mas era onde se namorava e se paquerava. E onde também se podia depois acertar os futuros encontros, não necessariamente seriam sexuais.

A efervescência sexual gay de Recife coincide com o reconhecimento e reafirmação de sua própria homossexualidade, que antes “enrustida” o levou a efetivar uma relação marital, pautada no modelo heterossexista, por mais de trinta anos. Funcionário público, de classe média, pai de dois filhos, ao se separar da esposa fixou residência no bairro da Boa Vista e passou a vivenciar tardiamente a plenitude de sua sexualidade através de encontros e relações fortuitas que se davam em espaços de pegação. Para sua geração, os banheiros dos bares se destacavam como espaços onde os encontros eram certos e onde se tornava possível encontrar “homens que procuravam outros homens”.

Em alguns destes encontros o dinheiro sempre funcionava como “facilitador” e/ou agenciador para as práticas sexuais de caráter homossexual. Outro depoimento a respeito, evidencia que nestes locais, “alguns homens já esperavam pelas bichas com o pau duro. Deixavam a gente chupar e depois pediam o dinheiro da cerveja ou da passagem. Eram desculpas esfarrapadas, porque no outro dia eles estavam lá, do mesmo jeito”. Um segundo informante destaca que entre os espaços citados, os banheiros públicos e o famoso “quem-me-quer”, que margeia o Rio Capibaribe, sempre serviram como espaços de pegação para os homossexuais da cidade.

Neste ponto, vale salientar que atualmente, o espaço ainda hoje se configura como ponto de prostituição masculina homossexual, que se desenvolve no trecho localizado entre a Rua Dr. José Mariano, no perímetro compreendido entre a Ponte Seis de Março (mais conhecida como Ponte Velha) e a Ponte da Boa Vista (também chamada pelos recifenses como Ponte de Ferro). Nesse território, mais conhecido como Cais José Mariano, os vários bancos, árvores e um banheiro público servem, muitas vezes, como espaços para as práticas sexuais comerciais e/ou encontros homoeróticos que se dão na via pública em altas horas da madrugada.

Já nos banheiros dos cinemas “São Luiz”, na Rua da Aurora; e do “Veneza”, na Rua do Hospício, as pegações eram mais discretas e se configuravam como relações homoafetivas entre entendidos (denominação usual entre os gays nos anos oitenta e noventa). Um estudante universitário me relata que descobriu o mundo gay em tais banheiros, que na época ele tinha 19 anos e sua primeira experiência sexual se deu no Cinema Veneza: “o cara chegou no mictório de lado e ficou me olhando. Ele era bem mais velho e tinha uma bunda linda. Já comi muita gente nos banheiros dos cinemas. Naquela época era mais fácil, porque todo mundo sabia o que rolava nas cabines”. Conta ainda que antigamente os jovens gays saiam diretamente dos colégios, localizados no centro, para os cinemas (ou melhor, para os banheiros). E quem viveu a época sabe que muita gente, em sua maioria homens, que se posicionava em pé encostado nas paredes do final da sala de projeção, pouco se interessava pelos personagens fictícios. O atrativo da sétima arte consistia mesmo em presenciar ao vivo, ou mesmo vivenciar as fortes emoções dos explícitos encontros eróticos que se davam entre homens dos mais variados tipos, idade e classes sociais.

No final da década os principais cinemas do centro da cidade, como o “Moderno”, em frente a Praça Joaquim Nabuco; O “Astor” e o “Ritz” na Avenida Visconde de Suassuna; bem como o “Trianon” e o “Arte Palácio”, ambos na Avenida Guararapes, passaram a exibir exclusivamente filmes eróticos, e se tornaram espaços de circulação para prostitutas e boys de programa que atendiam seus clientes tanto nos banheiros quanto nas próprias salas de exibição. Nos dois últimos, haviam os camarotes localizados no final das salas, que nos tempos áureos serviram para demarcar as diferenças sociais, mas que, porém, no final dos anos oitenta serviram como espaços reservados as grandes “surubas” e demais práticas sexuais que envolviam tanto casais heterossexuais quanto homossexuais. Em determinadas horas, tais espaços concentravam mais gente do que mesmo as platéias, onde se tornava frequente a visualização de homens ajoelhados entre as cadeiras, meio às pernas de outros que fingiam prestar atenção ao que se passava na grande tela.

Fora dos cinemas, ao que tudo indica a prática da pegação também acontecia em toda extensão da Avenida Conde da Boa Vista e suas principais ruas paralelas. Tal fato é destacado por alguns entrevistados como marco para o processo de definição e reconhecimento dos espaços e territórios gay de Recife. Desde a década de setenta, os olhares e as trocas de sinais, combinavam os encontros que terminavam nas antigas pensões do centro. E segundo o artigo publicado no antigo Jornal Lampião da Esquina (1980), irreverente publicação voltada ao público gay, a cidade já mesmo na época da ditadura militar apresentava um roteiro de espaços onde os homossexuais podiam encontrar parceiros sexuais ou simplesmente apreciar os jovens rapazes que pescavam às margens do Rio Capibaribe, “onde existe o famoso quem-me-quer, um cais de ambas as margens - Rua do Sol e Rua da Aurora, sendo que nesta última, em frente ao Cine São Luis, a pesca acontece ao contrário, quer dizer, são os peixes que se lançam a pescaria (Albuquerque Jr. & Ceballos, 2004).

Esses registros demonstram que a vida gay recifense passou a se consolidar no bairro da Boa Vista, ainda no final da década de setenta. Mais um informante, destaca o inicio da ebulição da vida noturna no bairro revelando a existência da “Boate de Homero” e a “Boate da Tia”, ambas instaladas no Edifício Novo Recife, que se localiza por trás do Cine São Luis. Eram pequenos espaços de socialização, pois que se configuravam praticamente como apartamentos residências onde se promoviam festas dançantes. Porém já existiam os shows de travestis famosas ou conhecidas, nos mesmos moldes de hoje em dia, dublando os clássicos sucessos das divas estrangeiras. Já um outro antigo morador do bairro, chama a atenção para os bares do local que também funcionavam como espaços de socialização entre os homossexuais. Alguns como o “HC”, o “Louco Amor” e o “Doce Vício” viviam constantemente lotados e eram frequentados por ativistas políticos, artistas e “entendidos”, tornando frequentes as “azarações” e os encontros homoafetivos.

Contudo, ao que tudo indica, as pegações não se restringiam aos espaços privados, mas se estendiam a espaços públicos, como por exemplo, ao Parque 13 de Maio que é margeado de um lado pela histórica Faculdade de Direito do Recife, e de outro, pela Biblioteca Pública Central Presidente Castelo Branco. Esses três patrimônios públicos juntos formam o que se poderia chamar de maior espaço de socialização gay do Recife. Tanto que nos banheiros da biblioteca ou faculdade, as pegações e práticas sexuais entre homens se davam durante todo o dia. Nestes, segundo relatos, parece que questões relacionadas à idade, raça/etnia e classe social não se mostravam como demarcadores de diferenças tão significativos.

Neste aspecto, um funcionário da biblioteca que trabalhava no horário da tarde relata que quando chegava sempre dava uma passada no banheiro para ver como estavam às coisas. Registra-se então que ao meio dia, o movimento aumentava muito com “homens de todo tipo - brancos, negros, altos, magros, senhores sérios, garotos que vinham das escolas, e até estrangeiros”. E para o narrador parecia engraçado observar o clima de nervosismo que pairava no ar, tanto que “aproveitava para escovar os dentes e sempre conseguia ver alguém de pau duro, esperando do lado de fora, enquanto alguém se masturbava dentro da cabine”. Por isso ele sempre escolhia a pia próxima a primeira cabine, porque dava para ver no reflexo no chão, os “membros eretos em movimentos mastubatórios”.

Assim, parece que as estratégias e táticas adotas durante as pegações se diversificavam tanto quanto o perfil de seus praticantes, tanto que “alguns frequentadores, os mais afoitos, deixavam a porta entreaberta e as bichas fingiam que estavam na espera só pra ficar olhando o cara se masturbar”. E nestes momentos “algumas paravam mesmo, bem perto da porta e muitas vezes começavam a pegar no pau do cara, enquanto que outras até se baixavam para chupar”. Em meio a tantos relatos eróticos, ainda sobre as táticas adotas, o funcionário salienta: “Vi várias bichas dando o cu de joelhos nas bacias sanitárias para que ninguém de fora percebesse que tinham duas pessoas na cabine. Mas a gente percebia, porque ficava olhando o movimento das pernas do que estava comendo. Outras vezes, até se ouvia os gemidos quando eles gozavam. E também dava pra ver a gala pingando no chão”. Em outra passagem, deixa evidente a heterogeneidade que caracterizava os atores sociais envolvidos nas práticas sexuais: “Já vi garoto novo agarrado em cacete de negão bem mais velho, como também já vi negão tomar no cu como quem toma refrigerante. Quando as bichas tão na seca, não têm essa coisa de diferença. Todo mundo dá ou come. Na hora do sexo não tem preconceito, o que importa é o prazer”.

Já no Parque 13 de Maio, a pegação apresentava diferentes modalidades. Por ser um espaço aberto, e por isso mesmo mais exposto, os gays de plantão tendiam a se misturar aos transeuntes e visitantes. A paquera era o meio de chegada, e muitos ficavam parados em frente às jaulas dos animais (que na época eram muitos e das mais variadas espécies) e faziam sinais com os olhos, bocas ou movimentos corporais intencionais para deixar claro o interesse por determinado pretendente. Quando correspondidos, caminhavam separados até o banheiro do parque ou seguiam sempre um na frente e o outro atrás em busca de espaços mais reservados como motéis ou residências próprias. Os boys de programa também sempre frequentaram o parque e junto com as prostitutas, cada um a seu modo, aguardavam ou abordavam os clientes. Os boys, normalmente perambulavam pelas ruas mais arborizadas até encontrarem espaços menos movimentados onde fingiam urinar para exibirem seus pênis. Era um sinal para que alguém interessado se aproximasse e a negociação pudesse se realizar.

Nos dias atuais, os códigos e sinalizações assumiram um caráter mais sofisticado, ou talvez mais discreto, e as pegações passaram a se dar na pista de Cooper que se estende por toda a extensão do parque. E também na área reservada aos equipamentos de ginástica, onde corpos suados e malhados são constantemente exibidos através de performances que salientam as musculaturas e evidenciam a potência e suposta virilidade dos machos que buscam outros homens para se relacionarem sexualmente. Contudo, como em quase todos os lugares de socialização gay, os códigos gestuais parecem cumprir sua principal função, invisibilizar socialmente as identidades individuais.

Mas em outro registro de Albuquerque Jr e Ceballos (2004), as pegações em espaços públicos são descritas como práticas corriqueiras que atravessaram décadas e se consolidaram como característica da sexualidade recifense. Tanto que “para quem gosta de pegação de rua, não há nada como a famosa Rua Nova e suas transversais, da Palma e do Sol. Há de tudo, desde travestis bíblicos, passando por tudo que há no meio, até os midinight-cowboys, que geralmente não dispensam o assalto após a ‘operação’”. Já entre os bares mais famosos, onde também era possível se perceber tanto emergência da prostituição masculina, quanto a prática da pegação homossexual, que aconteciam mais frequentemente nos banheiros, o “Bar Nova Portuguesa”, localizado na Avenida Dantas Barreto; o antigo “Bar Savoy” e “O Botiginha”, ambos na Avenida Guararapes; exemplificam a expansão territorial da comunidade gay. Em alguns lugares, como por exemplo, o conhecido “beco do mijo”, localizado na Rua Siqueira Campos (até hoje reconhecido como espaço gay), os prazeres às vezes chegavam as “via de fato”. Neste sentido pode-se entender a ocorrência de práticas sexuais que incluíam sexo oral e sexo anal entre homens. Ali, as batidas policiais apesar de frequentes, não eram suficientes para banir ou mesmo afugentar os frequentadores noturnos. Até porque, como exemplo da Rua da Concórdia (citado no capitulo sobre a prostituição das travestis), era comum a interação dos fardados com alguns frequentadores ou visitantes do beco.

Porém acredito que o período de maior expansão entre os empreendimentos comerciais voltados ao público gay foi marcado pelo surgimento da Thermas Recife, primeira sauna da cidade, localizada na Avenida Mário Melo; bem como pela inauguração da Misty, primeira boate a empregar o conceito GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). Esta, voltada à classe média alta, rompeu conceitos e padrões sociais da época, abrindo espaço às relações de gênero mais igualitárias, onde a azaração e sexo sem compromisso não se restringia mais ao mundo masculino. As mulheres agora levantavam as bandeiras da liberdade sexual e econômica, partindo para cima de seus objetos de desejos e assumindo definitivamente a iniciativa quanto a paquera e o assédio. Neste sentido, um bom exemplo de como o social tende a encontrar formas de ajustar novos conceitos, redimensionando e reformulando seus significados de acordo com as exigências de determinadas épocas, relaciona-se a meu ver, ao fato do conceito “azaração” ter se transformado numa tendência que foi ressignificada entre os jovens do novo século em “ficar”.

Essa necessidade de mudanças e flexibilidades nas condutas e comportamentos da sociedade, que marcaram as duas últimas décadas do século passado foi determinante para a consolidação de um comércio específico, destinado a um público multifacetado em estilos e ávido por novidades. A comunidade gay de certa forma estabeleceu e estabelece regras de funcionamento para o mercado, ao qual impõe características vinculadas a uma ideologia acromática quanto as nuances e formas de vida, que se pautadas numa irreverência e fluidez comportamental mostra-se capaz de provocar um redimensionamento geográfico constante e ininterrupto no centro da cidade. Talvez, na compreensão dessa nova tendência mercadológica a boate no inicio da década de noventa tenha se tornado ícone gay, que atravessando gerações adotou um processo de metamorfose identificado com seu público. Assim, as mudanças constantes na decoração e estruturação interna, incluindo a realocações dos bares, salas vips, pick-ups e áreas de socialização, bem como a criação de novos subespaços, davam ao estabelecimento um ar camaleônico capaz de seduzir e atrair públicos das mais distintas camadas sociais.

Essa característica também se evidenciava ao público através das mudanças constantes nas tonalidades de cores de suas paredes externas e fachadas, que mostrando flexibilidade também na construção e definição de sua própria identidade. A casa mudou de conceito e nome várias vezes, sendo chamada anteriormente como “Doctor Freud”, “Alcatraz”, até finalmente se estabelecer como “Metrópole” em meados dos anos 2000, e demarcar definitivamente a ideologia da livre expressão sexual simbolizada na bandeira do arco-íris hasteada na entrada.

Mas na contramão de uma identidade homossexual burguesa, o “Mangueirão”, boate menos glamorosa e mais antiga, localizada na época a Rua Bernardo Guimarães, era reconhecida como espaço gay alternativo comumente frequentado por estudantes, membros e simpatizantes de movimentos sociais, políticos de esquerda, artísticas de todos os seguimentos e mais uma grande variedade de gays. Estes, vindos em sua maioria dos bairros populares e municípios circunvizinhos, eram rotulados pejorativamente como “bichinhas suburbanas”.

O Mangueirão acolhia a um público mais receptivo e “cabeça” ao passo que representava a própria irreverência, personificada nas “bichinhas afeminadas”, boys de programas e travestis que participavam de concursos no melhor estilo Miss Gay, ou ainda de performances artísticas que envolviam coreografias de danças, declamações de poesias e dublagens. O local servia também como escoadouro para um estilo de arte marginal onde o teatro encontrava espaço para experimentar uma linguagem menos erudita, pela qual explicitava a cultura sexual popular através de personagens comuns do mundo gay, envolvidos sempre em situações corriqueiras onde o erotismo e o sexual se misturavam com o simples propósito de fazer rir. Alguns espetáculos satíricos do circuito oficial e profissional do teatro pernambucano, tais como, “A Louca dos Jardins” e “A Assembléia das Deusas”, chegaram mesmo a cumprir temporadas, em horários alternativos que se davam após a meia-noite.

Porém, talvez a grande contribuição deixada pelo Mangueirão, que encerrou as atividades no final dos anos noventa, tenha sido a evidenciação e divulgação das mais variadas formas de expressão sexual, como também a confirmação e reafirmação da multiplicidade de categoriais identitárias da comunidade gay. Neste sentido, as duas casas – a Misty e o Mangueirão - principais opções da época aos homossexuais, contribuíram de forma decisiva, cada uma a seu modo, estilo e ideologia, para o estabelecimento definitivo de uma identidade própria dos gays recifenses.

Posteriormente surgiram outras boates e casas noturnas, tais como a “Dyaguilaif” (será que era assim que se escrevia?), na Rua das Ninfas; o “Bela Bar Tok”, na Rua do Progresso; o “Comida Caseira”, que funcionava como restaurante durante o dia e a noite se transformava em boate, localizado a Rua José de Alencar; o “Taberna Gaúcha”, na Avenida Mário Melo; e o “Etc & Tal”, na Avenida Dantas Barreto. Estes empreendimentos, apesar do pouco tempo de existência parecem ter despertado a atenção do empresariado local para a necessidade de um maior investimento no quesito entretenimento e diversão gay na cidade. Tanto que nos dias atuais os novos espaços ou empreendimentos se multiplicam e se diversificam alterando e recriando a cada dia um novo cenário urbanístico para o centro de Recife.

O processo de territorialização na Rua José de Alencar, deu-se mais precisamente no final dos anos oitenta. Ali, onde hoje se encontra instalado o Shopping Boa Vista, existiu o “Bar do Karalho”, ou simplesmente “Bar do K...”, marcando época por ter sido o primeiro estabelecimento comercial a tornar público os encontros e relações homoafetivas, que eram explicitados através de beijos, abraços e carícias entre casais gays que se aglomeravam na rua sem o menor “pudor ou censura”. Outros tantos ocupavam o dancing, colados em duplas ou grupos, em coreografias que aquecidas ao ritmo das “lambadas” (renovada pela novela A Rainha da Sucata) lembravam sarros frenéticos ou simulações de surubas. Quando soltos, o ritmo da “disco-music” originados pela era discoteca, possibilitava as mais estranhas e divertidas performances gays que, muitas vezes, se estendiam até a rua.

Mas devido à “algazarra generalizada” provocada pela galera da livre expressão homoerótica ou homoafetiva, o bar foi alvo de várias denúncias policiais e ações de justiça, em atendimento aos moradores do bairro que reclamavam da “pouca vergonha” dos frequentadores e reivindicavam a manutenção da moral e dos bons costumes locais. E dos edifícios localizados em frente ao bar, eram jogados ovos, tomates e água nos homossexuais que resistiam à perseguição e à repressão sexual de forma pacífica e determinada. E a cada dia, a rua se consolidava como o território homossexual de maior expressão da cidade, uma vez que além do referido bar, foram inaugurados o “Porção Mágica” e o “Aritana”, que juntos ao “Mustang”, formavam uma espécie de oásis gay.

Esse processo de territorialização definida e bem demarcada coincide exatamente com a entrada das “Drag Queens” no cenário cultural de Recife. Exuberantes, engraçadas e escachadas, as drags divulgavam pelas ruas do bairro os últimos acontecimentos sociais da comunidade. E assim, festas, inaugurações de casas de shows, boates, saunas, vídeolocadoras e sex-shops eram anunciadas de forma divertida e “inconsequente” entre a multidão e a sociedade.

Era o inicio do processo de consolidação de novas tribos, e o começo de uma luta que tinha, e tem unicamente o objetivo de fortalecimento de uma categoria pela demarcação e definição de novos territórios, para assim se tornar visível e garantir direitos. Inclusive o de ser diferente dentro da própria diferença sem, contudo, perder a consciência quanto aos prejuízos da indiferença. Torna-se visível configura-se então enquanto luta, movimento e principio, para se estabelecer e se manter em pé de igualdade enquanto sujeitos e cidadãos plenos em direitos e deveres.