quinta-feira, 29 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capítulo IX - Musicas e Exclusões Sociais

Os Ruidos da Cidade

 

Morar na Av. Conde da Boa Vista tem suas vantagens, afinal de contas, tudo o que acontece no centro da cidade fica-se sabendo de imediato. Posso mesmo dizer que tudo o que ocorre no coração de Recife, se passa abaixo de minha janela. Assim foram com as caminhadas estudantis, que reivindicavam melhores condições de ensino; com os movimentos sociais, por garantia de direitos; movimentos de classes, como graves de motoristas; batidas policiais; corre-corre de bombeiros ou paramédicos em ambulâncias de emergências; sem esquecer claro, dos antigos desfiles militares.

Do alto de meu apartamento (ou será apertamento?) consigo ouvir os sons que vem das ruas, e claro, também os barulhos que são muitos. A poluição sonora dos grandes centros urbanos abrange uma gama de sonorizações e ruídos que se traduzem em conversas entrecortadas, buzinas de automóveis, sirenes, gritos de ambulantes, anunciantes de lojas, carros de sons com suas propagandas ensurdecedoras e mais uma variedade de músicas que se misturam em estilos e invadem nossas casas. Quem mora no centro tem por obrigação o ecletismo musical, o que termina proporcionando certa erudição no assunto.

Nossa cultura é ampla, indo do forró ao frevo, ou ainda, do brega ao pop. Aqui nasceu o mangue-beat, mas também se houve o maracatu tecnológico, o técno-brega, bate-estaca e mais uma porção de ritmos que se caracterizam pela marcação de tempo de cada forma ou estilo musical, que aos poucos se integram e são devidamente incorporados aos costumes locais. Temos ainda a característica de povo aberto ao novo, principalmente no que se refere a sons e movimentos.

Assim, no inicio do ano somos tomados pelos frevos (sejam de rua, de bloco ou canção). Em seguida chegam os padres cantores anunciando a páscoa, para logo serem substituídos pelos românticos da MPB que cantam o amor as mães e as noivas. É São João e lá se vai um mês inteiro com seus forrós, xotes e xaxados que embalam as quadrilhas juninas (e que hoje mais parecem escolas de samba). Em agosto a salada musical continua com homenagens aos pais, porém, talvez em setembro atinjamos nosso ápice. Podemos então escolher entre as marchas militares, com seus hinos de amor a pátria; baladas eletrônicas e alucinadas da parada da diversidade; ritmos politicos ou politizados dos gritos dos excluídos; ou ainda, o estilo gospel da caminhada evangélica.

Em outubro a cidade é pura inocência, com ritmos infantis que exaltam as belezas do ser criança. Mas tem também os cânticos gregorianos das igrejas que badalam incessantemente em homenagens a padroeira do Brasil. E finalmente emenda-se com o ciclo natalino que nos brinda com as repetidas e melancólicas “canções do Rei” (e por falar em cafonisse, alguém consegue ainda aguentar a Simone cantando: “então é natal... e o ano novo já vem...?). A essas alturas seus ouvidos estão prestes a explodir, mas para nosso alento e deleite o novo ano nos trás tudo novamente, do mesmo jeito, talvez para mostrar o quanto valorizamos a tradição (incoerência ou cultura?).

No meio de toda essa multiplicidade sonora, destacam-se as bandas eletrônicas de bregas eletrônicas (ou serão estilizadas?), os Raps e Hip-Hops da vida. Além, claro, das novas vertentes da musicalidade urbana, que assim considero por tratarem e retratarem a vida nas grandes comunidades populares. Este gênero inovador (será?) vem criando novos ícones entre a população de modo geral, em substituição talvez aos grandes cancioneiros da música popular. E nos campos da irreverência e da criatividade, características tão comuns aos pernambucanos abrem-se duas vertentes.

Enquanto a “Tanga de Sereia” dá vazão a sua nova MMPB, satiricamente denominada Música Muito Popular Brasileira; o João do Morro ataca de... De que mesmo? (Será que seria tão agressivo quanto suas letras e performances artísticas, classificar como pop grotesco?). Neste ponto aproveito para esclarecer que minha crítica não se direciona aos artistas enquanto sujeitos, e por direito livres para se expressarem da forma que lhes for mais conveniente ou oportuna (como também o faço agora). Propor apenas que se faça uma reflexão sobre suas obras (se assim podemos classificar). 

E me antecipo em desculpas se por desventura, ou aventura, desagradar a alguém, ou a alguns. Mas confesso que sou do tipo que prefere entender o papel social do artista enquanto agente de transformação, e por conseguinte formador de opiniões. Além disso, e logicamente diante disso, os artistas tornam-se responsáveis pelo que transmitem as suas gerações de fãs. Aproveitando então a inspiração, e parafraseando o Pepeu Gomes, declaro acreditar que “o mal não é o que entra pela boca, mas o que sai da boca, do homem”.

Sem querer parecer elitista, e muito menos excludente, afirmo considerar todas as formas de expressão como importantes constituíntes para a formação cultural de um povo. E ainda, sem querer correr o risco de incorrer em posicionamentos preconceituosos, confesso me identificar muito mais com o estilo "Brega Cult Pop" contagiante da banda Tanga de Sereia. Talvez por explicitar o tom das desventuras do amor romântico, que apesar de ácido em certos momentos (para o qual tenho certa propensão, será?), não se revela apelativo ou ultrajante. Sua interprete de forma cínica, ou cômica, consegue abordar temas ainda tabus a sociedade, como tesão, traição, paixão e solidão. A transgressão cênica, se assim podemos chamar, revela-se na imagem feminina que no melhor estilo “fossa braba” conta de suas agruras e desventuras no amor.

E em nenhum momento a mulher é objetificada, mas pelo contrário, torna-se subjetivada no sentido mais restrito ao que vem de um sujeito enquanto agente individual, mas que também é coletivo. O que está em cena são as vivências e experiências da mulher, independente de recortes socioeconômico, étnico ou religioso, abordado de forma simples e de fácil assimilação. Talvez o único e principal objetivo, seja tão somente provocar o riso pelo processo de identificação, e assim fazer o público ironizar de suas próprias experiências traumáticas no campo afetivo. E isso, a meu ver, é por demais salutar.

Assim, ao incitar “Me leva pra praia e me joga na areia, tira minha tanga e me chama de sereia”, a mulher é promovida como solicitante, demonstrando autonomia no ato de se fazer desejar e/ou possuir. E no fim, ao exclamar: “agora me leve em teus braços e faça tudo que mandar. Me abrace, me beije e me bata. Não tenha pudor em me amar”, revela liberdade ou independência moral e intelectual, pautados no direito, ou ainda, faculdade de se reger por leis conceituais próprias. A letra transforma-se assim, em discurso do feminino (ou melhor femininos) enquanto sujeito do desejo, que em pé de igualdade aos homens fala de suas próprias vontades, carências, necessidades e ou preferências, sejam essas eróticas ou sexuais.

No outro lado, ou na contra mão, o símbolo pop máximo do machão, João do Morro (que talvez se reconheça enquanto retrosexual – mas será que ele sabe o significado de tal categoria, ou achará que é mais um dos tantos palavrões que musicalisa em suas letras?), relata quase a mesma cena de paquera, que se dá em uma praia do litoral recifense. Porém, na versão do masculino, a “sereia” é destituída de seus encantos e mistérios, peculiar a mulher, para ser equiparada a um carro (no sentido figurativo de máquina potente): “Domingo passado eu tava na praia, de chinelo, bermuda, camiseta e boné. Pagando cerveja, bancando de tudo, metido a gostoso e cheio de mulher... eu vi uma delicia saindo da água... e deitou bem pertinho de mim. Deixou o sorvete derreter no capô e ficou dizendo assim: chupa que é de uva... (pega essa promoção).”

O recorte de gênero permeia toda a pretensa poesia para evidenciar a supremacia do gostosão pagador, e por que não “pegador” (detentor do poderio econômico e da virilidade), que por ser tão cobiçado enquanto macho consegue minimizar a “delicia que sai da água” a uma simples “promoção”. E neste sentido, promoção não se refere ao conjunto de atividades que visam fortalecer a imagem de uma marca ou indivíduo, mas pelo contrário, relaciona-se ao pequeno preço de uma mercadoria, ou ainda menor valor de mercado (que se traduzirá na desvalorização da mulher, mesmo que desejada). Se promoção relaciona-se a pequeno valor comercial, talvez neste caso, evidencie as representações sociais a cerca do feminino, construidas e fortalecidas pelas vivências e experiências do próprio autor.

Mas, voltando a nossa análise musical, se numa esfera (a do feminino), a “sereia” é representada como ser que domina a sedução pelos encantos mitológicos que transforma experientes homens em desalentados náufragos; na outra (esfera do masculino), a mesma torna-se adjetivada como “delicia que se dilui”, ou transformada em algo comestível (Ou seria chupável? Mas, esse termo existe? Melhor considerarem licença poética). Penso que numa hipotética fantasia histriônica (no melhor sentido das farsas do antigo teatro romano) onde a “Sereia do Pina” provavelmente reclamaria tal galanteio declarando: “é cada qualidade de homem que me aparece. Mulher eu vou dizer uma coisa, ninguém merece! Ninguém merece!”.

Em uma das grandes pérolas do compositor, talvez possamos entender seus conflitos existenciais e emocionais, provocadas pela exautiva e constante tentativa de manutenção de sua supremacia masculina. A imagem de inserurança ou medo de ser destituido de seu lugar de macho gostosão, parece configurar-se na ameaça de um outro garanhão “comedor”. Assim, ao questionar a amada sobre uma suposta prova de sua traição, ele declarará implacável: “que mancha é essa na sua canela? É sinal de puta! Sua perna tá com uma mancha escura. É sinal de puta. Não me diga que é uma tatuagem. É sinal de puta!”

E em sua obstinada averiguação dos fatos sobre o corpo da mulher, que supostamente cometera grave delito, o macho esbraveja: “tô ligado que é uma queimadura... tome muito cuidado quando sentar na garupa, você foi andar de moto. Deixa eu adivinhar, foi no cano de escape, quando você foi sentar.” E por fim, setencia sua pena e castigo, a qual deverá pagar em nome de sua desonra moral, a exemplo de todas que cometem o “crime de adultério”: “preste muito atenção, o cano quente machuca. Você agora faz parte das que tem sinal de puta!”

Se considerarmos que na era medieval as mulheres, que eram posses de seus maridos, eram queimadas a ferro e fogo como prova de seus descráditos, e ainda expostas diante de toda sociedade para serem apedrejada como Madalenas; como também se analisarmos que em tal situação a queimadura na “canela” torna-se representativo sinal de puta, não poderíamos supor que o autor se baseia em princípios primitivos para estabelecer seus conceitos morais e moralizantes?

Refletindo mais, dessa vez sobre sua postura pautada em princípios arcaicos, não poderíamos interpretar sua advertência como direta alusão ao falo do outro (escape da moto), que queima, e por isso marca a carne feminina para evidenciar as provas de seu desvio moral? Assim, acredito que se fala e se procede (simbolicamente, claro) da mesma forma. O cenário figurativo se mantém intocável, mesmo com o passar dos séculos. E percebam que em nenhum momento o desonrado busca pistas ou detalhes sobre seu rival, o que talvez configure a cumplicidade masculina. O “mais forte” não se torna errado por deitar a mulher alheia, pois que cumpre com seu papel de macho.

Mas no mundo dos homens, não basta tornar efetivo o que seu papel social determina ou prescreve, torna-se necessário “marcar a vadia”. Primeiro para vangloriar-se diante de seus pares, e segundo, em cumprimento ao pacto de sangue (ou melhor, puro sangue) que une os selvagens machos. O “cano quente” no qual senta, ou se assenta o feminino, queima e causa-lhes feridas (emocionais e/ou morais) para alertar que tornou-se indigna de um homem, mas que se destinará ao deleite e prazeres de todos.

Penso que essa espécie de pacto do “Clube do Bolinha” se estabelece e se fortalece na perspectiva da manutenção da supremacia masculina. Assim, o destratado apesar de ofendido e humilhado, deve referenciar a força e o poder do inimigo. A mulher traidora caberá apenas a rua, pois que a casa não se constitui espaço as infames e impuras, e por isso a condenação popular lhe perpetrará um sinal de puta. Com a música, ofende-se a mulher amada e a mulher prostituta. Com suas performances em cena, no melhor estilo cafajeste dominador/predador, humilha-se por extensão a todas as mulheres que por ventura caiam, ou desejem cair, em tentação. Perpetua-se assim, a imagética do prazer sexual e do gozo, que lhes serão negados, e apenas aos homens outorgados.

Sugerindo ainda uma reflexão mais atenta sobre os fatores que parecem contribuir diretamente para a construção dessas (e outras) representações sociais, verificaremos em suas letras que a cultura mostra-se como um dos principais preceitos determinantes a perpetuação de preconceitos. No recorte étnico/raça, por exemplo, podemos destacar uma situação que parece retratar o espaço social em que o referido autor encontra-se inserido. A letra nos oferece subsídios de uma cena, onde aparentemente rodeado de amigos, tenta expor suas próprias concepções a cerca das relações afetivas e sexuais envolvendo pessoas com tons de pele opostas: “escuta essa história que eu vou contar. Uma mulher branca engravidou de um negro. O povo da rua a se perguntar: esse menino como será?

A música em si, exprime a força da cultura local, que é genuinamente pernambucana, e também nacionalmente brasileira. Contudo, mesmo antecipando sua discordância ao pensamento coletivo, o autor mostra-se vitima dos códigos e padrões da sociedade em que se insere. E em sua fragilidade contextual, tenta contra argumentar: “pegue uma galega e misture com um negão. Não vai nascer uma zebra. Vocês vão ver no que vai dar. Vai nascer um sarará.”

Falo de uma fragilidade contextual, porque acho importante entender que etimologicamente a palavra “sarará” tem sua origem no tupi guarani (logo, recorte étnico e cultural), designando aquele que tem pelos ruivos, em relação derivativa aos europeus que colonizaram nossas terras. Popularmente usa-se a palavra para dizer da cor alourada ou arruivada do cabelo muito crespo característico de certos mulatos. Então cabelo crespo é característica e não raça. A criança (independente dos artigos definidos – a ou o – que se configuram gramaticalmente no recorte do modelo anátomo-biológico) que se origina das parcerias afetivo/sexuais entre negros e brancos será denominada mulata/o, pois que é derivativo de junção de raças (e aqui, no sentido de confluência, reunião ou união).

Ampliando a discussão, sabe-se que na cultura popular brasileira, “zebra” (que é um animal original da África), refere-se a pessoas estúpida, sem inteligência, também denominada de “burra” (Fêmea do burro, mamífero facilmente domesticável, muito difundido no mundo, e utilizado desde tempos imemoriais como animal de tração e carga). Enquanto a zebra se caracteriza pela pelagem listrada de preto sobre fundo branco ou camurça, com crina curta em forma de escova; o burro é ungulado (mamíferos cujos dedos são providos de cascos) e tem pêlos duros, de coloração extremamente variada, indo do castanho-fulvo ao cinza-escuro.

Assim, o comparativo entre a criança gerada da união entre um “negão e uma galega”, com uma zebra, torna-se infeliz, sendo talvez resultado reflexivo do imaginário coletivo pautado na textura e coloração dos cabelos de afro-descendentes em analogia ao pêlo duro do referido mamífero (que não coincidentemente também tem origem no continente africano). E neste sentido, que penso que ao falr de cabelos nos seja mais apropriado a reflexão proposta pelo Jorge Bem Jor em parceria com o Arnaldo Antunes: “...quem disse que cabelo não sente, quem disse que cabelo não gosta de pente?... cabelo quando cresce é tempo... cabelo vem lá de dentro... cabelo com orgulho é crina, cilindros de espessura fina. Cabelo quer ficar pra cima... aparado ou escovado, cabelo pode ser bonito, cruzado, seco ou molhado.”

Outro aspecto que sugiro maior reflexão refere-se ao ato de outorgarmos ao outro o direito de ofensa. Assim, em duas situações, em dois shows, em espaços diferentes, pude observar o fenômeno de massa provocado pela não escuta do que realmente se fala. E torna-se incrível parar e observar o quanto se consome ultrajes, agravos e afrontas. Falo consumir, porque música também é produto e show é serviço. Então pagamos muitas vezes caros ingressos para ouvirmos (ou não ouvimos?) postergação de preceitos e violações de regras morais e sociais.

Num determinado dia, assisti ao show numa boate de Recife. O cantor em trajes femininos, no melhor estilo estereótipo grosseiro canta seu grande clássico: “Ei boyzinho, você é papa frango! Ei boyzinho, olha, deixa do teu caor! Ei boyzinho, essa camisa, essa bermuda! Ei boyzinho, foi o seu frango que comprou! Eu boyzinho, olha, não diga que é mentira! Ei boyzinho, porque o frango me contou. Ei boyzinho, que você além de papa frango. Ei boyzinho, é papa frango e gigolô!”

Confesso ter me chocado muito menos com o tom pejorativo da musica, do que com a reação de vários gays, que pareciam indiferentes, e de certa forma validavam as ofensas. Considerando que frango é uma deniminação usual, na cultura local para designar homossexuais, a música refere-se ao garoto que não é homossexual, mais mantém relações sexuais com gays em troca de ganhos, financeiros ou em forma de “presentes”. Consideremos também que a denomianção boy, do inglês, refere-se a garoto. Logo do sexo masculino. Em Recife, tal denominação configura-se enquanto caracterização do homem jovem e másculo, o que reafirma o recorte do gênero masculino. Na comunidade gay, boy refere-se ao homem ativo que durante a relação sexual penetra o homossexual. Ainda em Recife, os garotos de programa se reconhecem e se autodenominam boys de programa (ver Souza Neto, 2009; Vaina, 2010). Em suas concepções o frango equivale a bicha, taduzindo, aquele que é penetrado.

Fora isso, considerando que boyzinho é o diminutivo de boy, considera-se que a letra fale sobre um adolescente em situação de exploração sexual (e não vamos adentrar nas discussões relativas a motivos e fatores contribuintes para sua inserção no mundo do sexo comercial). O que quero salientar é a forma como a música em questão, termina de certa forma naturalizando um fenômeno social que se configura enquanto crime. Lógico, que retrata uma realidade, e isso não se discute, inclusive seu valor no sentido de trazer o debate a discussão. Talvez o erro, pelo menos neste sentido, refira-se a forma como o assunto é tratado, pois que ironicamente não chama a atenção para o que se destinaria. Ao contrário, a questão é abordada como grande façanha de um garoto esperto, que encontra no sexo comercial as estratégias que lhe possibilite outros acessos. Afinal ele ganha para papar o frango (ou os frangos).

A música contribui ainda para perpetuar a idéia de que todo homossexual paga, ou deve pagar, para se relacionar sexual ou afetivamente. Também efetiva a concepção de que o gay representa um perigo a integridade de adolescentes de comunidades de renda baixa (já não basta a igreja católica associar homossexualidade a pedofia?). Assim, acrescenta: “No carrão de luxo, você tava com o frango. Lá no restaurante, você tava com o frango. Você tava comendo pra depois ser comigo”. E o paralelo é feito entre o frango do prato e o frango que paga. O gay então torna-se reduzido a um animal, que por extenção não é homem, pois que frango é um estágio intermediário entre o pinto e o galo. Se analisarmos que este configura o processo de desenvolvimento do animal, em correlação podemos entender que o homossexual é um ser imaturo, não desnvolvido, seja fisica ou emocionalmente (Será um retrocesso ao velho medolo médico-higienista tão comumente adotado no incio do século passado?).

Ao final, é dito que: “O dinheiro do táxi: Foi o frango que deu! Quando tu passa pela rua, a galera diz: Ei boyzinho, você é papa frango! Ei boyzinho, papa frango e gigolô.” Não é o mesmo sinal de puta, ou melhor de puto, revelando o processo de estigmatização social? Mais uma vez recorrendo aos dicionários, verificaremos que puto designa uma qualificação depreciativa. Também dis-se do próprio homossexual, ou indivíduo devasso, corrompido e dissoluto (que por extensão significa dissolvido, desfeito e corruto – que equivale a corrupto). Assim, o termo chulo utilizado iguala e desqualifica o gay e o adolescente, e por extensão os boys de programa de Recife (Será mais uma vez a velha estigmatização da prostituição?).

Acredito que a forma com que detrminadas músicas tratam sobre as mazela de uma sociedade pautada nas grandes desigualdades sociais como a nossa, não corresponde ou contribui a tratar dos seus problemas ou enfermidades. Pelo menos, não no sentido literal da palavra tratar, que corresponde a modificar, transformar por meio de um agente. É neste sentido que penso se perder um grande instrumento de transofrmação social, a própria música. Pois que esta, quando apenas utilizada como recurso mercadológico e financeiro não cumpre com o seu papel.

E principalmente, quando o artista se utiliza indevidamente, ainda que de forma incosciente, de conceitos ou opiniões formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos, correrá sempre o risco de perpetuar as idéias preconcebidas, que sempre se traduzirão como puro preconceito.

E preconceito sempre será a base, fonte de inspiração e justificativa para as tantas fobias sociais que assolam nossa cultura e pais, que ressignificadas tranformam-se em ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, orientações sexuais, e tantas outras diferenças.

Por isso, seguindo o discusso popular, para evitar que sejamos em algum momento de nossas vidas atropelados por trens (que correlaciona-se as coisas ruins, ordinárias e imprestáveis), é sempre melhor: Parar, Olhar e Escutar. E neste sentido, antes que questionem, prefiro esclarecer que elitismo é totalmente diferente de seletividade, pois que através dessa, poderemos sempre escolher opitar por algo que verdadeiramente nos agrade.

Aos hmens (e também mulheres) que ainda se pautam pela relações de poder que estabelecem as diferenças de gênero, lembro mais uma vez que o Pepeu Gomes, já dizia que: "ser um homem feminio, não fere o meu lado masculino. Se Deus é menina e menino, sou um masculino/feminino. E a todos, ainda digo que "prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo..." (Salve, Raul Seixas).

terça-feira, 27 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capítulo VIII – O Carnaval e o Lugar do Feminino

A Gastronomia dos Corpos

Lembro que na época de infância ia com meu pai e alguns irmãos ao bairro de Água Fria. Era um subúrbio localizado na área metropolitana, a poucos minutos do coração da cidade, que cortado pela Av. Beberibe finda em um velho mercado público. Contam que era um dos bairros mais populares e desenvolvidos da capital, já tendo vivido seus tempos áureos nas décadas de cinquenta e sessenta quando o bondinho cortava as ruas em extensos trilhos metálicos. Lá moravam minha avó e duas tias, Duque e Duquesa (da mesma espécie) e ainda Pirulito que tinha pelos caramelados (e estes eram tratados como gente). A casa era recuada e uma passarela nos levava até o portão que dava para a avenida. Por vários carnavais brincamos sentados ao muro, dando banhos nas pessoas que passavam em nossa frente, fantasiadas ou não. Era um tempo de inocência em comparação aos dias atuais, como dirão os mais velhos, porém relembro que os conflitos gerados por tais brincadeiras ou práticas, que hoje entendo como atos de violência e violação de direitos, já existiam. Assim, um dia um senhor que não gostou do molha-molha sacou da cintura um revolver como forma de demonstrar seu descontento. Acho que ali se acabaram nossas peripécias carnavalescas e ficamos restritos as matinês no Clube do Santa Cruz.

Mas ainda assim, voltávamos ao portão para ver os desfiles de blocos e agremiações, que hoje abandonaram aquele corredor da folia. Ficava fascinado com as “La Ursas” que batiam as portas cantando “a La ursa quer dinheiro e quem não der é pirangueiro”, e com a variedade de “papa-angus” coloridos que corriam assustando as pessoas. Depois vinham os Maracatus Rurais com suas golas em lantejoulas policromadas e reluzentes, e Reis e Rainhas dos Maracatus de Baque Solto (ou será Baque Virado?) invadiam a passarela acompanhados por suas negras côrtes. Homens trajando roupas femininas brincavam com garrafas nas mãos, e abraçados formavam verdadeiros “clubes do bolinha”. Nossas tias improvisavam fantasias e ao final das tardes íamos aos bailes. Eram dias agitados, mas a gente não cansava e queria que a festa não acabasse. Acho que ali descobri minha paixão (e porque não alucinação) pela festa pagã.

Como estávamos em plena ditadura militar às brincadeiras, muitas vezes, precisavam ser moderadas sob controle e repressão severa. O famoso mela-mela que se restringia a melar as pessoas com farinha de trigo molhada em água, passou a ser substituída por substancias mais agressivas. E tornaram-se comuns os registros de pessoas atingidas nas ruas por jatos de água com creolina e/ou ácidos; ou lama e até fezes, que em “pombos-correios” explodiam nas janelas dos ônibus lotados. Usavam também solda caustica que resultava em grandes queimaduras e graves ferimentos, que divulgados nos jornais tornaram-se argumentos para a proibição definitiva da brincadeira.

Mesmo assim, outras “brincadeiras etílicas” sempre se mantiveram presentes no carnaval, e animadas ao som de músicas e marchas de frevo com duplos sentidos e de conotações sexuais e morais, serviam para extravasar as tensões e frustrações de uma sociedade reprimida. Lembro que dentre as marchinhas tão tocadas nas matinês e manhãs de sol dos clubes, uma nos orientava a “meter o dedo e rodar” alguma coisa. Mas antes mesmo que se pensasse em safadezas o interprete nos explicava que era sobre o “telefone” que ele estava falando (É que os antigos aparelhos, domésticos ou de orelhões, tinham círculos de discagem com pequenos “orifícios” onde metíamos os dedos para girá-los e registrar os números das chamadas). Na sequencia nos orientava ainda, a pegar “a cabecinha e chupar”, numa espécie de metáfora ou analogia usada para descrever as delicias e sabores dos pirulitos coloridos que se comprava no mercado ou nas antigas barracas dos bairros.

Mas percebo hoje que o satírico das musicas e machas carnavalescas sempre foram usadas para propagar e colocar em pauta as mudanças de comportamento. Temas tabus entravam nas agendas públicas e privadas. As melodias tornavam-se instrumentos de divulgação e debates, muitas vezes contrariando antigos dogmas da “santa igreja”. Mas analiso também, tais sátiras sob a perspectiva das construções sociais. E esclareço que talvez para melhor compreensão se faça necessário evidenciar que na literatura latina, as sátiras são consideradas obras de caráter livre, em gênero, forma e métrica, que objetivam censurar costumes, instituições e as idéias contemporâneas através de um estilo irônico e mordaz (Dicionário Aurélio, 2010).

Num sentido mais amplo, pode ainda ser entendida como composição poética que visa censurar ou ridicularizar defeitos ou vícios. E neste sentido, me vem a memória uma das músicas que muito cantei em grandes bailes. A letra nos chamava a atenção para a longa “cabeleira do Zezé”, nos sugerindo indagar repetidamente sua orientação sexual através do refrão: “será que ele é? será que ele é?”. E em certa estrofe poética põe em duvida a masculinidade de várias categorias de homens ao questionar: “Será que ele é bossa nova? “Será que ele é Maomé? Será que ele é transviado? Mas isso, eu não sei se ele é!”E neste sentido, tanto o Zezé (personagem figurativo), quanto admiradores da Bossa Nova ou seguidores religiosos do profeta de cabelos longos tiveram suas sexualidades e também culturas colocadas em xeque e ironizadas (e por que não dizer, ridicularizadas?). Penso que mesmo de forma inconsequente, e logicamente no intuito apenas de divertir, tais compositores através de suas letras terminam contribuindo de forma direta para validar velhos preconceitos e esteriotipações estigmatizantes sobre determinados comportamentos que contrariam a norma social e burguesa.

E neste aspecto, considero mesmo que as melodias de rimas fáceis encontram no politicamente incorreto suas fontes de inspiração. Se observarmos bem, verificaremos que as minorias tornaram-se o grande alvo das “modinhas” zombeteiras que criticam e enxotam veados, cornos, velhos, solteironas e mulheres. Essas por sua vez, serão sempre as “Marias”, sejam elas a “sapatão, que de dia era Maria e a noite é João” ou ainda, a “escandalosa, que apesar de mentirosa e preguiçosa, é gostosa”. A mulher torna-se sempre desvalorizada em caráter moral em detrimento dos atributos físicos, e assim correlaciona-se ao ideal feminino "sinônimos" como burrice, beleza e atrativo sexual (não é o mesmo mote das campanhas de cerveja?). E “Booooaaaa!” mulher ou mulher boa, tem que ser sempre assanhada, insaciável sexualmente e gostosona, e por isso desejada e cobiçada por todos os homens. Mas tem que ser também a mulher do outro, e nunca a nossa. E novamente equipara-se a gostosa a imagem da mulher fácil ou disponível. E mulher fácil faz a rua. E se seguirmos na analogia chegaremos a conclusão que a mulher boa torna-se prostituta por natureza, pelo simples fato de ostentar ou possuir atributos físicos que despertam a tesão dos machos. Ou será o cio? (será que meu discurso é muito feminista, ou será sem fundamento?).

Mas se as musicas daquela época cantavam e validavam exclusões, pautadas em conceitos étnicos, raciais, sociais ou de gênero, nos dias atuais a coisa não tem se mostrado muito diferente (que diga o João do Morro e tantos outros astros emergentes, de talentos duvidosos, que cantam nada mais nada menos que suas próprias realidades sociais e culturais). Mas o que importa é a percepção do quanto o carnaval tem se evidenciado enquanto território do masculino, onde a mulher, ou o feminino, lhes servirá apenas como objetos que saciam desejos e impulsos sexuais, ou ainda, como motivos de diversão e sátira. Talvez por isso, para muitos a única mulher de verdade tenha sido a falecida Amélia, do Mário Lago, pois que não tinha a menor vaidade e achava bonito não ter o que “comer” (qualquer analogia sexual terá sido pura coincidência ou sátira?). E ainda satirizando um pouco, não terá sido esse o motivo de sua morte?

Penso também que as correlações de impuras, fatais e ameaçadoras, bem como os menosprezos direcionados por parte dos machistas de carteirinhas às tantas Marias, talvez, e de certo modo, possam se encontrar pautadas num Complexo de Édipo mal resolvido pela frustração diante de não poder possuir a própria mãe (será que Freud explicaria?). Pois que toda Maria é Mãe, e segundos os religiosos torna-se Sagrada, logo intocável e inviolável. Não cabe nos desejos impuros dos pecadores. Por outro lado a Grande Mãe de todos (simbologia extensiva as mães mortais, será?) também é Rainha. E logo, se rainha detém e ocupa lugar de poder e torna-se figura de autoridade (mas essa não é uma característica dos homens?). E se tem poder precisa ser neutralizada ou eliminada para que se mantenha a supremacia do macho diante da subjugação feminina (não parece ser essa a mesma lógica que fecunda a mente doentia dos que matam ou violentam esposas, namoradas e filhas?).

Se ao se tornarem Marias, (como as sagradas e as assanhadas), as mulheres ameaçam a cultura da macheza exigindo direitos pela equidade de gênero, nada melhor do que um recurso da cultura de massa para lhes fazerem lembrar seus pressupostos (e aqui no sentido de circunstância ou fato considerado como antecedente necessário de outro) e impostos papéis e lugares sociais. Talvez músicas sem textos, ou grandes contextos (que a meu ver hoje já se configuram enquanto fenômeno social nefasto as lutas por igualdade de direitos), possibilitem ou desencadeiem uma alienação que também é de massa; e de forma aterradora, tenham funcionado como eficazes e eficientes instrumentos para seus intentos.

E neste ponto reflito sobre a possibilidade deste também ser o motivo para que algumas (ou melhor, várias) mulheres, em indumentárias e performances erotizadas (no melhor estilo “pintei meus cabelos e me valorizei”) das tantas e quantas bandas de brega estilizado, abnegam “Pagus” e “Leilas Diniz” para se identificarem e se auto-reconhecerem, e ainda se firmarem e auto-afirmarem, enquanto “tiazinhas”, “feiticeiras”, “mulheres peras” ou “mulheres melancias”? Será que tal fato ou lugar não nos soará como perpetuação dos conceitos e contextos relacionais? Sim, porque “tia” é parentesco, logo desejo incestuoso, já que a tia é substituta da mãe; “feiticeira” é mistério, magia e perigo, e assim sinônimo de fragilidade masculina; e “pêras e melancias” são frutas, que como a maçã, se cometerá o pecado ao comê-las. Não seria lógico então pensarmos que tanto comer, como desmistificar ou cometer o incesto está diretamente correlacionado ao desejo sexual? E se ainda, nos atrevêssemos a ir mais longe em hipotéticas conjecturas, não poderíamos afirmar que o carnaval enquanto festa da carne, apresenta-se como melhor espaço às fantasias eróticas masculinas? (será que a conversa descambou para o campo psicanalítico?).

De uma forma, ou de outra, fato é que carnaval e cerveja se completam, e neste âmbito, a tríade perfeita se forma com o feminino, aliás com o corpo do feminino. Engarrafa-se então a Boooaaaa, para que possa ser consumida (no sentido literal de prender para devorar ou engolir, que se traduz no ato de comer). e se "loura gelada não descer redondo", pode-se recorrer a "ruivinhas", "lourinhas" ou "negrenhas" porque essas são "Devassas" (alguém já levou uma Devassa prá casa?). Assim, comer e beber a mulher, não é Baco? E se pensarmos que o ato de comer se transforma (simbolicamente falando, claro) também num ato de devorar e aniquilar, para depois engolir (absorver o outro) fazendo-o sumir, não seria relação de força e poder? E não é essa a base das relações de gênero?

Dessa forma penso seriamente, se em nossa cultura que ainda sofre os resquícios do coronelismo patriarcal, e tenta manter-se sob a centralização do poder no masculino, o carnaval pernambucano (pelo menos) não torna-se apenas uma extensão de princípios machistas? Afinal, temos uma festa comandada pelos estereótipos máximos do simbólismo das machezas. O sábado, por exemplo, que é do “Zé Pereira” e não da “Zezinha”, também é do Galo e nunca da galinha, e extensivamente nunca do “frango”. E olha que dizem muitos, que o carnaval é uma festa gay. E até nesse sentido, o feminino parece tornar-se derivativo do masculino (que digam os grandes desfiles de fantasias que superlotam os bailes de Recife). O masculino comanda a festa, seja nas baterias de escolas de samba, nos afoxés, maracatus e caboclinhos, ou ainda no simples passo do frevo rasgado. E assim demarca espaços nas ruas e apenas reforçam a “fantástica” (no sentido de irreal) supremacia do caçador que escolhe sua caça. E nessa luta do "vale tudo", permite inclusive que peitorais bombados (e não misturem com seios turbinados) se exibam, e que músculos suados exalem testosteronas e virilidades entre os pares, mas que em movimentos bruscos podem capturar inocentes donzelas e devorem-nas em beijos bruscos, no melhor referencial Marlon Brandeanos (será que exagerei?). Mas é bom lembrar aos mais desavizados que nestas confrarias, na escassês ou ausencia de mulheres, o feminino pode se configurar em corpos masculinos, o que possibilita o apalpar de másculas nádegas ou beliscões carinhosos em pequenos mamilos.

E se em longas avenidas, mulheres “portam bandeiras”, são os “mestres salas” que parecem conduzi-las numa espécie de balé magistral, e girando ao seu redor cortejam arquibancadas. E nas baterias ensurdecedoras e frenéticas os homens tocam para que suas “rainhas” sambem. A mulher é exaltada, mas de preferência que esteja nua, sem armaduras que escondam curvas atrativas, e se mostre indefesa diante da devoração (e não falei devoção) dos olhos masculinos. E quanto mais novas melhor, quanto mais fresca a carne maior o apetite (novamente as relações de poder?). E esse apetite viril ou voráz pode se traduzir em gula, que em quanto pecado capital se personifica no desejo ao "proibido" – a mulher do próximo, o corpo do outro ou a carne alheia.

Então que pelo menos uma vez ao ano, possamos comer e beber o meu, o teu e o nosso corpo, pois que este será dado por nós e a vós! (ou por vós e a nós?). E se a carne é oferecida, também torna-se oferenda e oferta aos deuses, para dessa forma se fazer sagrada no desejo do outro. E se no carnaval o masculino se sobressai e se esbalda em folias gastronômicas ou canibalescas, é o feminino das cinza que regula os limites. Pois que cinza é o mesmo pó de onde viestes e para onde retornarás, para somente assim descansar saciado e em paz no ventre da mãe terra, que logicamente é do feminino!

segunda-feira, 26 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capítulo VII - Carnaval de Recife

Corpos que Brincam

Há anos sou acordado ao som dos galos. Tal fato poderia até parecer comum aos moradores dos subúrbios ou da zona rural de Pernambuco. Mas longe disso, estou no centro do Recife e os sons a que me refiro vêm de apitos, que na boca de ambulantes anunciam que o “reinado de momo” começou. O galo instalado na ponte Duarte Coelho mostra-se imponente, colorido e magistral (incrível como as relações de gênero são perpetuadas também nas expressões culturais de um povo, não?), e do alto parece vigiar o pálio que se alastra pelo corredor da Av. Guararapes. Assim, o Galo e o Pálio tem se tornado com o passar dos anos, símbolos máximos de nosso carnaval. Registros vivos de nossa cultura e história, que enquanto referências simbólicas tornam-se concretas ao transformar a fantasia em realidade. Mas é preciso pressa pois que noventa e seis horas passam num piscar de olhos, e assim “o bom pernambucano esperará novamente um ano interiro para se meter na brincadeira”.

Mas somos diferentes porque em nossa irreverência espichamos o carnaval. Já não são somente quatro dias, mas um mês inteiro onde o fantástico “abre alas” a um povo que se transforma. E velhas Colombinas, Arlequins e Pierrôs invadem as ruas e misturam-se aos tantos “Mateus” e “Catirinas” para mostrar que em Recife a grande festa torna-se também multicultural (principalmente por sua dimensão étnica e social). Acima de tudo, nosso carnaval se torna uma aula viva de história e democracia, onde Reis e rainhas dos maracatus trazem o passado de colonização para nos relembrar como os negros escravos transformaram o sincretismo religioso em movimento de luta e resistência. Caboclos com lanças coloridas parecem fugir dos canaviais da zona da mata e em paus-de-arara chegam “à cidade, cansados”, para ensinar como se quebra limites geográficos e temporais.

Escolas de samba invadem a avenida para contar e recontar histórias e estórias de um povo que é múltiplo em estilos, sentidos e raças. O sofrimento parece ressignificar a dor para transformá-la em alegria de vida, e assim, temas e enredos cantados a uma só voz ecoam o passado de lutas de quem viveu e vive as margens. Atravessar a passarela do samba representa glória e revela força e resistência de comunidades populares que margeiam o centro urbano. A alegria da favela redime a elite burguesa que reverencia a beleza dos pobres. E as arquibancadas balançam ao ritmo do negro, que dançando e cantando parece resgatar, exigir e impor o respeito e dignidades devidas.

Por outras ruas os afoxés chegam com os orixás espalhando axés e trazendo  o religioso e o divino, que não é só católico, mas também afro-brasileiro e indígena, para abençoar e comemorar a liberdade e a igualdade entre os povos. Passado e presente se misturam e transformam a dimensão temporal em algo que agora se faz relacional. Tanto que Senhorias em grandes saias rodadas em rendas giram ao lado de jovens e inesperientes brincantes ao som dos grandes e antigos blocos de rua que espalham cores e formas na cidade que reluz a luz do sol ou da lua.

Mas o sábado é do Galo da Madrugada, que mesmo já não tendo mais hora exata se espreme pelas velhas ruas de Recife. E milhões de pessoas formam uma massa homogênea e compacta na ilusão da comunhão. Somos grande e somos recorde, e por isso nos sentimos orgulhosos e inclusos. Somos velhos, adultos, jovens, crianças e até recém nascidos. E somos também sem noção e sem limites, pois que a exatidão cronológica torna-se dispensável. Não contamos mais o tempo e por isso o dia entra pela noite, atravessa a madrugada e só findar numa quarta-feira “ingrata que chega somente para contrariar”.

O céu num amarelo incandescente esquenta e ferve os corpos com raios dourados, para mais tarde voltar novamente a escurecer. E assim se sucedem os dias e revezam o sol e a lua para nos fornecer talvez a única informação lógica e precisa. Estamos numa terra chamada Recife e isso nos basta, pois que somos pernambucanos e sabemos brincar. E se não existem horários parecem também não existir regras, e principalmente normas, que não se façam flexíveis, pois que tudo se combina e harmoniza na alegria que parece cansada de esperar para se fazer presente em lindos e longos sorrisos que acompanham gingados. Tudo se torna possível e permitido porque não existe “pecado do lado de baixo do equador” e talvez por isso as possibilidades, identidades sociais, e principalmente sexuais, apareçam diluídas, fluidas ou elásticas.

Plagiando DaMata (2009) diria que nosso carnaval se caracteriza por uma movimentação direcionada as mudança de posições e/ou posicionamentos. Trocamos de lugares para juntar e misturar o superior com o inferior, o patrão com o empregado e o rico com o pobre. Nos misturamos num sentido ideológico criando uma massa indiferenciada, onde nossas casas se abrem e se confundem com as ruas, que por sua vez, tornam-se extensivas também aos prédios para que numa gramática carnavalesca o ritual exprima importantes dimensões de nossa sociedade.

Em Recife essas “mudanças de lugares” transformam-se em característica e condição fundamental a quem chega para a festa. No reinado de momo, homens enormes e mulheres fortes se tornam crianças inseguras e carentes e que, muitas vezes, brincam ao lado de seus filhos super-heróis. Invertem-se os papeis sociais e em outras situações, os lugares de poder pautados nas relações de gênero, serão divertidamente alterados para que mulheres subjuguem seus homens. E presos por coleiras verdadeiros brutamontes se transformam em escravos sexuais. As masculinidades cedem espaços ao feminino para assumir o tom da gozação e machões vestem roupas de mulheres, muitas vezes de suas próprias esposas ou namoradas, para desfilarem sensualidades e seduções nunca antes permitidas. Os papeis de gênero ao se reconfigurarem neutralizam a norma heterossexista e “abrem-se alas” as mais variadas experimentações.

Acredito que nosso carnaval torna-se então um espaço de autorizo para viabilizar as emergências das novas identidades. Tudo se torna plural e nada é verdadeiramente o que parece ou representa ser. Nesse jogo ilusório a catarse se personifica nas vivências das sexualidades e homenzarrões sérios e másculos se comportam como verdadeiras mocinhas perigosas e atrevidas para dispensarem cortejos e carícias a outros homens ou mulheres. Penso que neste sentido, a liberdade ou libertinagem permitida autoriza uma certa e momentânea bissexualização dos corpos numa conduta que excita e desperta para desejos latentes e inconfessáveis. As variações e variedades das parcerias afetivas e sexuais multiplicam-se ao passo que marujos barbados e musculosos acompanhados de efebos mancebos simulam ou revelam envolvimentos eróticos e/ou erotizados entre si. Gregos e Romanos se juntam e desfilam de saias ou em roupas curtas e decotadas, e em seus movimentos firmes ou macios, parecem se transformar em seres híbridos.

Mulheres fartas se apertam em frágeis colêtes ou exibem os excessos em minúsculos biquínis coloridos. São espanholas, portuguesas, lavadeiras, empregadas domésticas, evangélicas e freiras, que juntam-se a tantas outras, em noivas, mulheres maravilha, secundaristas e melindrosas. Mas também brincam de piratas caolhos, policiais, palhaços e presidentes. E têm de tudo. Numa festa onde a irreverência dita as formas, a lista de animais e objetos inanimados espanta tanto quanto a criatividade que as vezes se torna duvidosa e confusa. Assim, enormes quantidades de vacas, misturadas a coelhos e coelhas, gatos e gatas e cachorros se encontram com galinhas e galos (e porque não frangos?) em meio à multidão. E lá se vão também bacias sanitárias, mosqueteiros, bacias de lavar roupas, ferros ambulantes e bóias infláveis, em meio a anjos e demônios que caminham de mãos dadas. Penso que estes corpos parecem imersos numa espécie de processo de subjetivação coletiva, onde vilãs/ões e mocinhas/os compartilham da mesma cumplicidade cênica, e onde já não existem o bem e o mau, e nem o certo ou errado, pois o carnaval recifense é assim.

E claro que para muitos estudiosos, esquecemos todos que o carnaval é uma festa de origem litúrgica, e que foi, e ainda é muitas vezes, associada com aos antigos “Bacanais” (Netto, 1999). Mas se tais associações têm causado até hoje, posicionamentos controversos entre os acadêmicos, ao povo pouco importa o quanto santificado ou satânico o carnaval possa parecer. Importa menos ainda se sua origem se mostra e continua incerta e imprecisa. Porque apenas nos interessa a palavra e seus sentidos correlatos. Não etimologicamente falando, mas simbolicamente referenciada (a etimologia da palavra ao que tudo indica decorre de “carnavalet” que se associa ao sentido de se poder comer carne, já que na quarta-feira de cinzas se inicia a quaresma, e a partir de então, durante quarenta dias fica proibido seu consumo). Mas acredito que é na correlação de sentidos e significados que a palavra emprega que o carnaval toma sentido e se caracteriza como festa da abundância de carnes e vinhos. E talvez neste aspecto, o autorizo a carne se estenda aos corpos já que o carnaval também se estabelece como festa da exibição e do consumo (simbólico, as vezes) que se dará através do ato de “comer com os olhos”.

Durante o reinado de momo, a estética se faz renegada e corpos magros, fartos ou malhados, desfilam “desavergonhadamente” livres do rigor moral. Roupas ou fantasias salientam partes intimas e assim, peitos, bundas, pênis e vaginas, tornam-se muitas vezes peças importantes aos jogos de sedução. É a carne exposta que, molhada de suor, excita e desperta o erótico (e o tesão?), transformando-se em objeto de desejo e causando frissons e delírios.

E novamente em consonância com DaMata, diria que o carnaval torna-se espaço para rituais orgásticos. A sublime luxuria que alimenta e sacia desejos, também provoca descontrolados movimentos corporais que apenas ambicionam aproximações. E na ebulição dos esfregões e roçados esses corpos se ouriçam e se cobiçam em excitações também incontroláveis. E na cumplicidade coletiva, inocente e/ou "indecente", a carne nos alimenta e revigora.

Seja em Recife ou Olinda, os corpos se tornam instrumentos para o movimento de liberação do proibido, tanto que, grupos estabelecem seus territórios redefinindo novas regras morais e de condutas. O que é permitido e o que é proibido mostram-se negociados e/ou negociáveis. E se a química não funciona para o estabelecimento de possíveis parcerias, logo as renegociações partem em direção a novos alvos. Surgem novas situações ou circunstancias onde as “pegações”, “azarações” ou “sarrações” possibilitam os contatos corporais. Espremidos em longas filas que se formam em corredores e ruas apertadas e estreitas, os corpos exalam libidos. E ao ritmo do frevo, do maracatu ou do samba, movimentos possibilitam toques nervosos, que propositais e/ou involuntários revelam e possibilitam a evidência de intenções explícitas e implícitas de tenso (e intenso) prazer e desejo sexual. Assim, bocas se colam ou se engolem, corpos se apertam e músculos e nervos enrijecem em parcerias momentâneas e urgentes. É a consagração do “deus Baco” que se revela nas possibilidades dos encontros e desencontros.

Depois tudo se acalma, até que o ano termine e o pipocar dos fogos de artifício anunciem a hora dos clarins voltarem a tocar, chamando o povo prá rua. “Acorda Recife! Acorda que já é hora de estar de pé. Levanta que o carnaval começou no bairro de São José”.


domingo, 25 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capítulo VI - Imagens Insolitas de Nós Mesmos

Os Paparazzos Urbanos

 
Era outubro de 2004, e voltando de Olinda pela Av. Agamenon Magalhães entramos pela Rua Henrique Dias. Reduzi a marcha e seguimos em frente. De repente um outro veículo surge em nossa frente e em alta velocidade. Estava na contramão e agora vinha em nossa direção. Tudo foi muito rápido, mas lembro de ter anunciado o desastre: vai bater! Gritei na tentativa de avisar meus companheiros de viagem. Mas foi em vão, talvez um ato impensado "disparado" pelos mecanismos de defesa e preservação.

De repente tudo parecia calmo. Não conseguia me mexer e muito menos pensar coerentemente. Acho que permanecei assim por alguns instantes, e só fui despertado de meu transe por uma senhora, que a minha porta falava algo que não conseguia entender. Ela, de forma calma, perguntava-me se estava bem e se conseguia me movimentar. Também tentava manter afastadas as pessoas que buscavam verificar quem ou quantos estavam no carro. Estão vivos? Tem alguém morto? Eram perguntas que ouvia ao longe, sem saber ao certo de onde ou de quem vinham. Estava paralisado, e ao certo nem sabia se estava vivo. Minha vista estava turva e as imagens distorcidas que apareciam no meu campo de visão não se faziam reconhecíveis.

Atentei para o fato de me manter pregado na direção, com os braços rígidos e os olhos vidrados no retrovisor. No banco detrás, um dos meus amigos se encontrava desmaiado. Ao seu lado, outro chorava de dor com a boca cortada e os olhos inchados. Tinham se machucado ao bater contra os bancos dianteiros. Pensei de forma alarmada e imediatista: matei uma pessoa. Um sentimento de impotência me invadiu e me fez congelar. O que seria de mim agora? Como conviver com o peso da morte de alguém? O que eu tinha feito? Enquanto me perdia em devaneios, a senhora tentava me despertar e arrancar das ferragens. Você está me ouvindo, insistia ela. Está sentido dores? Pode se movimentar? Tente abrir a porta do carro...

Lentamente soltei a direção, pois tinha medo de ter quebrado os braços e pernas. Ao meu lado, no banco de passageiros, um terceiro amigo estava imóvel, talvez tão perplexo e atordoado quanto eu. Minha porta não abria. Estava tão empenada que incomodava minhas costelas. O teto rebaixou até minha cabeça e o motor estava praticamente em meu colo. Estava preso numa lata de sardinhas remoída. Conseguiram abrir a porta do outro lado e lentamente me ajudaram a sair. E não existia mais carro, apenas um bolo de ferragens retorcidas e amassadas. O painel dianteiro tinha sido arremessado para dentro e o pára-brisa, agora estilhaçado se espalha pela rua.

O outro veiculo tinha sido arremessado a uns duzentos metros e agora fumaçava próximo a uma árvore. Um amontoado de gente rodeava os dois veículos e as conversas e brincadeiras (acreditem) se misturavam criando tumultuo. Outros flashes de máquinas digitais me atingiram em cheio. E foram se sucedendo num apagar e acender de luzes que me deixaram quase cego. Mas afinal estavam fotografando o acidente. Lembro também que alguém filmava a cena num misto de curiosidade e diversão. Era um acontecimento. Era um fato. E era a noticia da noite.

Outros automóveis, alguns conduzidos por amigos, pararam a frente e assim começaram a nos remover. Para nossa sorte estávamos em frente a uma clinica medica, para onde formos conduzidos para atendimento. Só depois de ajudar a socorrer a todos, numa mistura de tensão, medo e remorso, pois me sentia responsável pelo ocorrido, o médico chamou minha atenção para o sangue que escorria de minha perna. Meu joelho estava aberto e a hemorragia encharcava minha calça. Horas depois saí com uma perna engessada e meus amigos com grandes curativos.

Fora da clinica, o irmão do condutor do outro veiculo me aguardava, e se mostrou prestativo e tenso. O responsável pelo acidente era adolescente, não tinha habilitação e tinha consumido grande quantidade de bebida alcoólica numa festa familiar. Não tinha se ferido e também já tinha sido retirado do local devido as implicações legais diante da perícia. Em seu lugar assumiu e registrou a responsabilidade uma parente, que logicamente estava sóbria. O tal rapaz tenso e prestativo se dizia procurador de justiça de um outro estado e não queira escândalos para a família (nada mais natural, não?). Logo alegou o falecimento recente do pai, como justificativa para a indelinquência do irmão. Não fizemos objeções, e ainda meio atordoados fomos colocados em um taxi e enviados as nossas casas (não disse que ele era prestativo?).

Eu queria sair dali o mais rápido possível para não ter que ouvir mais as insistentes e constantes perguntas óbvias que viam de todos os lados, e principalmente desaparecer para sempre da frente daquelas câmeras, que agora pareciam infernais e persecutórias. Se realmente todo mortal tem direito a seus quinze minutos de fama, já me sentia agraciado (e confesso não ter gostado de tanta exposição desnecessária e sem fundamento).

Sei que acordei com dores no corpo e permaneci deitado por uns dois dias. Acho que esse tempo foi o suficiente para analisar os problemas e fatores envolvidos naquele acidente. E considero que mais grave do que as irresponsabilidades envolvidas, foram a indiferença e inércia das pessoas que presenciaram aquela tragédia. Não havia solidariedade, mas apenas um misto de curiosidade e fascínio. Talvez por terem presenciado ao “vivo e a cores” uma cena digna dos filmes de cinema. Confesso que me espantei com a quantidade excessiva de fotos disparadas e das tão comuns filmagens de celular. Não havia consideração com os ocupantes dos veículos, mas apenas, e talvez, a intenção em obter os melhores ângulos que revelassem reações, expressões e sangue (E isso realmente emociona as pessoas, não? Quem lembra da Princesa Daina?).

Mas aquelas pessoas pareciam histéricas em seus intentos. Fascinadas pela oportunidade de experimentar e registrar os avanços tecnológicos de seus equipamentos ultramodernos. E assim, absorvidas por uma curiosidade mórbida, agiam insanamente diante de pessoas gravemente feridas. Naquele momento de euforia histérica não era a vida que interessava, mas apenas o registro de um momento inusitado, que provavelmente serviriam para longas conversas posteriores. E logicamente, depois aquelas fotos poderiam ser trocadas, enviadas e distribuídas via internet entre os integrantes de um pequeno grupo burguês descompromissado e indiferente aos valores morais imprescindíveis a sobrevivencia e manutenção das sociedades.

Digo isso, não por revolta, mas por constatar que aquelas benditas fotos não serviriam como base ou provas para definição e julgamento de culpados. Se destinariam apenas a satisfazer o egocentrismo de pessoas que buscam se auto-afirmar na sociedade através da divulgação e exibição de suas posses (e provavlelmente seriam apagadas num próximo acidente, certo?). Acho que isso funciona como uma espécie de passaporte que permitirá o acesso a determinados grupos antes nunca frequentados. Penso que para a geração atual tenha se tornado preciso e fundamental se integrar em grupos homogêneos e homogenizados, e para isso nada melhor do que falar a mesma língua, usar as mesmas roupas e agir das mesmas formas (afinal, só as diferenças são excluídas, não?). E assim a juventude parece ter se tornado pasteurizada, não só em imagem, mas em ações e comportamentos.

O que se verifica na atualidade é um movimento coletivo, que podemos denominar como fenômeno de massa da satisfação instantânea. Acho que a mídia nos dotou dessa necessidade incessante e insaciável pela novidade e pelo bizarro. Para essas pessoas parece ser preciso se alimentar a cada instante de novas informações e acontecimentos inesperados e fora do comum. Talvez para que consigam sair de suas rotinas vazias de vidas utópicas. É necessário gerar felicidades momentâneas para se manterem na ativa. Chamar a atenção dos outros para se sentirem aceitos e reconhecidos pelo que possuem e não pelo que são. Mesmo que para isso percam a noção da realidade e reneguem os princípios de civilidade. Tornaram-se individuais e individualistas em suas obsessões pelo simples registro de momentos, que por serem tão fugazes e passageiros precisam ser substituídos sucessivamente.

Não conseguem mais parar para pensar e muito menos refletir sobre seus atos. Precisam apenas ser rápidos, ágeis e perspicazes a fim de primeiro registrar e divulgar acontecimentos que alimentarão as solidões urbanas. É preciso ser o detentor da informação ou fato que lhes proporcionará certa espécie de prestigio e status, mesmo que precisem se tornar indiferentes. Não importa mais os sentimentos ou emoções, e pior ainda, se estas são verdadeiras ou simuladas. O que importa é fotografar qualquer coisa numa tentativa de perpetuar ocasiões. Assim se comportam como robôs e desenvolvem ações mecânicas, pelo simples fato de fazer o que a maioria faz.

Talvez tenhamos nos transformado em “paparazzos urbanos imediatistas”. Se estivermos numa praia, lá estarão as máquinas e seus flashes a pipocar em nossa frente. No campo, tudo se torna motivo para uma aparente admiração e consequentemente novas fotos. Num ônibus lotado alguém visualiza um pretenso conhecido e já se coloca a fotografá-lo. Num supermercado, um dia desses vi uma senhora fotografar uma embalagem porque gostou do tom verde oliva impresso (e logicamente não queria comprar o produto). Constumeiramente vejo pessoas fotografando desconhecidos porque gostaram de determinadas roupas, adereços ou estilos de penteados. Algumas chegam a clicar na cara de pessoas que julgam bonitas ou feias, com objetivos diversos e duvidosos.

E assim somos obrigados, a todo instante, a servir como figurantes para compor panos de fundos e paisagens de fotografias anônimas. Quantas vezes somos pegos de surpresa com os flashes disparados em nossa direção porque algo a nossas costas interessou ao fotografo do momento. Já vi pessoas fotografarem artistas projetados em telões, estando elas em pleno show ao vivo. Em boates tornou-se comum se fotografar no melhor estilo “estive aqui”, ou então, “veja eu também vim”. Na era digital fotografar e ser fotografado tornou-se uma ação compulsiva. Tanto que ninguém acredita mais se lhe contarem uma história e não tiver as fatidgas fotografias como testemunhas.

Já pensaram em quantas vezes somos praticamente obrigados a percorrer todos os arquivos fotográficos adicionados em celulares ou máquinas digitais alheias? É que esses se tornaram utencilios de primeira necessidade (Todo mundo tem uma máquina no celular ou na bolsa. Já colocou o sua?). E quantos e-mails temos que receber com avisos de que amigos atualizaram seus álbuns em intermináveis sequências, postadas em páginas de Orkut, sônico, MSN e mais uma enorme quantidade de redes de relacionamento disponíveis na internet? (vão me achar muito pernostico se disser que já aprendi a deletar todos?). E muitas vezes, ainda, esses nem podem ser considerados verdadeiramente amigos, mas apenas conhecidos ou pessoas que nos solicitam para serem adicionadas. Isso, lógico, com o objetivo apenas de ampliar uma suposta mega rede de relações e não de estabelecer amizades (afinal o importante é mostrar ao mundo o quanto somos capazes de estabelecer contatos e relações, não é mesmo?). No meu orkut mesmo tem pessoas que realmente nunca vi, conversei ou trocamos idéias, mas que me mandam fotos evidenciando momentos e felicidades que não compartilhei (será que seria melhor aprender a negar tais convites?).

Outro aspecto que considero relevante neste fenômeno digital e ultra/hiper moderno se refere a pasteurização de imagens. Penso que de certa forma, as poses deixaram de ser naturais e passaram a revelar uma artificialidade incomoda (talvez porque todo mundo que ser Gisele). As pessoas estão sempre rindo e felizes, como se isso fosse uma praxi constante e real em suas vidas. Os cabelos estão sempre impecavelmente arrumados, as maquiagens sempre prontas e até as expressões de surpresa ou espantos parecem meticulosamente pensadas e montadas. É como se vivessem na eterna espera por um flash que mudará para sempre suas vida, e isso causa uma imensa, constante e obsessiva preocupação com a imagem.

Lembro que no último jogo do Brasil estava com um amigo sentado a mesa de um bar da Metrópole observando a movimentação. Uma moça toda enfeitada em verde e amarelo (claro) sacou de um pequena bolsa uma grande máquina. Queria registrar com os amigos aquele momento tão importante para a posteridade (será que no futuro irá mostrar aos filhos?). Ela fazia poses incrivelmente desconexas e estranhas na tentativa de esconder das poderosas lentes as imperfeições do corpo (entendem porque considero as fotos artificiais?). Eram poses no estilo "melhor de mim". E neste momento, automaticamente várias outras pessoas também sacaram suas armas e iniciaram uma verdadeira guerra de flashes e disparos automáticos (e o jogo, acho que esquecceram de resgistrar). Só nós não tinhamos levado nossas máquinas, mas logicamente fomos solicitados como fotógrafos.

E assim, as fotos perderam o caráter privado e se tornaram públicas para a satisfação de um narcisismo de massa. Não é preciso apenas se ver, mas que todos vejam, e consequentemente elogiem (mesmo que também de forma superficial e mecânica). Penso mesmo, que o artístico e a sensibilidade cedem a cada dia mais espaço ao bizarro e ao histriônico. Parece que perdemos a noção de privacidade e muitas vezes nos expomos, ou pior ainda, somo expostos a, e em, situações vexatórias (e porque não ridículas?) sem autorização prévia.

Quantas vezes recebemos e-mails com fotografias de pessoas anônimas, acompanhadas das classificações de "feia", "bonita", "medonha"... ? (Você já foi classificado? Então cuidado, poderá ser o próximo) E tantas outras, que incluem adjetivos pejorativos e discriminatórios, tais como "bonecas", "safadas", "taradas", "abusadas", em referencias a homens, mulheres, pessoas idosas, obesas, negras, com deficiência mental ou física  e crianças? Quantas pessoas assustadas ou alarmadas em seus desesperos, ou em situação de calamidade são expostas e ridicularizas em páginas frias que não contam de suas histórias e nem dos motivos para determinada reação ou comportamento? E quantas vezes nos colocamos a rir de tais situações e momentos (e reenviamos as mensagens), sem nunca pensarmos que poderia ser conosco ou com conhecidos nossos a quem estimamos?

O ato de fotografar desgraças e transtornos tornou-se, a meu ver, instrumento de sadismo e desprezo pelo humano. E de certa forma, tornou-se também uma arma nas mãos de pessoas inescrupulosas e inconsequentes. De uma hora para outra corremos o risco de acessar a internet e nos encontrar em situações comprometedora através de montagens e fotoshops da vida. Mas os transtornos e prejuízos sofridos nunca são registrados e muito menos reparados pelas lentes frias da modernidade. Assim, aprendemos apenas a nos divertir as custas do outro, ou ainda nos prestar a diversão alheia, sem analisar os riscos e conseqüências de nossos disparos automáticos e luminosos. E neste sentido, digo que já presenciei milhares de flashes atrapalhando performances de uma bailarina russa, interrompendo shows de artistas ou causando conflitos por invadir a privacidade de cidadãos comuns. Já vi relações duradouras findarem por fotos desavisadas, como já vi mortes e acidentes servirem como motivos de diversão.

Acho que com as novas tecnologias banalizaram-se as melhores lembranças. Transformamos-nos em caça e caçadores da vida alheia, que como oportunamente diz o Miguel Falabella, parece “sempre mais interessante que a nossa”. Talvez devamos isso ao francês Joseph-Nicéphore Niépce que conseguiu em 1826, de sua janela registrar a primeira imagem impressa em papel, iniciando uma nova forma de ver o mundo. Mas penso também, que como as máquinas capituram sempre as imagens numa lógica inversa, de cabeça para baixo, talvez tenham nos ensinado o poder da diversão distorcida. E talvez até tenhamos nos acostumado a aplicar essa mesma lógica na inversão também de valores morais e sociais.

Independentemente disso, o fato é que criamos a cultura fantasiosa do “cada mergulho é um flash”, mesmo que esse, seja no vazio de nossas próprias vidas. Desenvolvemos a fábrica instantânea do glamour fugaz e efêmero por onde buscamos incessantemente a visibilidade e projeção imediatas. E assim, tornamo-nos nos tempos atuais e modernos, sarcasticos “paparazzos de nós mesmos”, talvez para registrar, divulgar e eternizar nossas próprias solidões.




sábado, 24 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capítulo V - A Cidade Vigiada

Capítulo V – As Câmeras Indiscretas do Recife



Acordo assustado no meio da noite. Estou só no vazio de uma escuridão que evidencia movimentos luminosos em minha janela. Sombras movimentam-se de um lado a outro, criando imagens fantasmagóricas que parecem querer me assustar. Escondo-me embaixo dos lençóis e não consigo mais dormir. O despertador dispara anunciando o raiar do dia e agradeço a luz clara, que agora devido ao sol, invadem frestas colorindo meu quarto. O corpo reclama o cansaço da noite e assustado me levanto lentamente. Uma sensação incômoda me invade, e percebo que tenho medo. É como se me sentisse vigiado, observado por alguém ou algo que não conheço e não vejo.

No banho, espreito entre as portas do box, a audição se aguça na busca de movimentos que possibilitem pistas de meu observador. Não existe nada, ou pelo menos não consigo enxergar, mas, sei que está lá, em algum canto, e que em algum momento se fará visível. Fecho a porta e certifico-me da precisão de meu ato. Entro no elevador e novamente a sensação me toma. É como se alguém por trás do espelho me olhasse. Chego à recepção e mais uma vez me sinto vigiado. Apresso-me pela escadaria em mármore branco e entro para o meio do mundo. Lentamente observo pessoas que caminham ao meu lado ou em minha direção. Sinto vontade de virar-me para reconhecer quem me persegue. Disfarço interesse em uma vitrine e constato que tais pessoas apenas passam por mim.

Atravesso uma rua, sigo por calçadas de tijolos vermelhos e amarelos. É o meu caminho de “Dóroty”, que me leva diariamente ao estacionamento. Mais uma vez me sinto acompanhado, dessa vez não por pessoas, mas por prédios, lojas comerciais e ruas. Pelo corredor de acesso chego ao carro. Alguém sentado a frente de um monitor me cumprimenta sem mesmo virar-se a mim. Saio em marcha lenta e curiosamente o grande portão de ferro se abre automaticamente. Confirmo minha certeza que estou sendo acompanhado passo a passo. Olho os retrovisores, mas, não tem ninguém me olhando. Nas avenidas e ruas que levam ao trabalho, sou tomado pela curiosa sensação a cada semáforo, a cada esquina. Os olhos me acompanham em movimentos sincronizados e sei que em algum lugar minha imagem se projeta. Entro em um novo prédio e lá estão eles novamente emitindo ruídos que lembram robôs ao se movimentarem. Olhos mecânicos que causam um ruído mínimo, quase imperceptível, mas que se torna estridente quando contínuo e sucessivo.

Saio para almoçar e mais uma vez me percebo vigiado. No restaurante o mesmo sentimento se alivia pela companhia dos colegas de trabalho. De volta a minha sala, observo que portas se abrem quando me aproximo e direcionam o caminho a seguir. Final da tarde um novo portão me libera aos olhos das ruas. Entro na academia de ginástica e minhas digitais liberam a catraca de acesso, e o mesmo polegar determina comandos capazes de gerar minha rotina de exercícios físicos. A esteira se movimenta ao simples contato de meus pés, assim como a balança que me pesa e dispara um alerta luminoso se estiver acima do peso. Estamos na era digital e por isso as coisas parecem práticas e precisas.

Volto pelos mesmos tijolos, agora meio opacos pelo reflexo das luzes da cidade. É noite e mais uma vez volto a sentir a vigília que não cessa. Na mesma recepção, enquanto espero o elevador, observo em um monitor pessoas paralisadas numa queda lenta e vertiginosa. A porta se abre e não me surpreendo no encontro com vizinhos. Já os tinha visto a tempo de esboçar cumprimentos mecanizados. Subo os andares que me restam e sigo pelo corredor de volta a porta. Continua inviolada e por isso me sinto seguro. Fecho-a em minhas costas sem olhar para trás e consigo me sentir confortável e seguro. Paro diante da janela de vidros e começo a perceber que milhares de pessoas seguem vigiadas por grandes olhos, que em diversos formatos, tamanhos e pontos parecem não mais assustá-las. As câmeras que vêem pessoas em movimento são os olhos do Estado que nos sitia numa cidade inerte e indiferente. São as câmeras indiscretas do Recife que povoam nossas ruas e transformam nossas vidas espetáculos cinematográficos bizarros e irreais. E nestes não somos protagonistas, pois que perdemos a autonomia de nossos atos e a naturalidade peculiar as pessoas livres.

Ah, que saudade do Recife sem câmeras e sem grades, pois que nos tornamos vitimas de nossa própria incoerência. Somos presas em um outro lado. O lado de dentro, seja em nossas casas, nossos prédios, nossos trabalhos, nossos carros ou em espaços de diversão. Estamos sempre e todos presos. A única diferença é que temos nas mãos, as chaves de nossas próprias celas. Mas estamos presos também ao medo, ao pânico e histeria coletiva que nos confina dia após dia a espaços mais reservados e individuais. Assim, deixamos de ser coletivos (pois que para isso nos basta o carnaval) para nos tornarmos vazios. Pobres vitimas da própria inércia reflexiva. Abrimos mão de nossa autonomia, de nossa privacidade e de nossa liberdade em nome de uma segurança utópica promovida por uma fantástica e ilusória fortaleza sitiada.

Neste sentido, lembro de ter lido algumas teorias afirmarem que participantes desses “realitys shows da vida”, paulatinamente se acostumam com as câmeras que vigiam seus passos a cada segundo. Penso que podemos denominar tal fenômeno como processo de acomodação das situações estranhas ao nosso cotidiano corriqueiro. Temos mesmo, enquanto seres racionais a sublime capacidade de adaptação as diversidades, e assim nos tornamos resilientes aos incômodos e transtornos causados pelo progresso. Digo isso, considerando um exemplo próprio vivido há poucos dias atrás. Sendo cliente de um banco de certa projeção e renome, posso desfrutar de alguns serviços que foram criados para melhorar nossa qualidade de vida e melhor administração e investimento de nosso precioso tempo. Porém em determinados momentos não consigo efetivar pagamentos de minhas faturas por meu crédito diário estar limitado a um valor menor que minhas reais necessidades. Acostumamos-nos com o fato e buscamos formas de adaptação ou ajuste as novas realidades impostas, porque são vendidas como medidas de segurança, que também supostamente objetivam nosso bem estar. Afinal de contas, nos dias atuais corremos constantes riscos de assaltos relâmpagos. E nestes casos, nosso prejuízo mínimo seria garantido pela instituição bancária (certo?).

Acontece que compete ao Estado garantir a segurança e o bem estar de seus cidadãos (será que é pra isso que servem nossos tão elevados impostos?). Mas ao contrário da lógica, pagamos nós mesmos pela ineficiência da “segurança social” (ou será nacional?). Fato é que como não consigo pagar minhas contas em dia, e saliento que não por falta de saldo, mais pela limitação diária de crédito. E ainda sou obrigado a me responsabilizar pelas multas e encargos contratuais, além dos acréscimos de juros na fatura subseqüente. Mas talvez a culpa seja minha. Quem manda não me preparar para efetuar tais pagamentos em parcelas intercaladas, com datas antecipadas logicamente. Assim evitaria os transtornos onerosos no mês seguinte (certo?). Mas penso nos transtornos causados pela perda de tempo das seguidas idas a agencia bancária, afinal de contas nós também pagamos parra ter conta em banco. E pagamos caro por um serviço nem sempre eficiente e que facilite nossa vida. Fora isso, será que o fato de ir dois ou três dias seguidos ao banco, pagar a mesma fatura, não aumenta minhas possibilidades de ser vitima de assaltos. Também, não sejamos fatalistas, pensarão muitos. Dispomos da internet que é rápida, cômoda e nos possibilita efetuar transações seguras em casa (será mesmo assim?). Mas, e se meu cartão for clonado? Se meus dados forem capturados por piratas digitais? E ainda, se meu dinheiro for desviado? Quem pagará os prejuízos, o banco, o governo, ou mais uma vez nós mesmos em eternas burocracias que nos restringem os direitos? (afinal a justiça é cega, ou não é?).

O mesmo acontece em relação as milhares de câmeras espalhadas por todas as ruas da cidade do Recife. E acreditem, tem quem se orgulhe de residir em uma metrópole totalmente controlada, e que por isso podemos nos sentir mais seguros. Penso então, que não é de todo mal, afinal de contas numa situação de assalto, se a grande “cavalaria de metálica” não chegar a tempo, pelo menos você terá garantido seus quinze minutos de fama com a exibição de sua morte nos meios de comunicação. Não foi assim que a cabeleireira Maria Islaine de Moraes foi assassinada pelo marido, em janeiro deste ano? (você acompanhou as filmagens pela televisão, em rede nacional?). E o caso de Eloá Pimentel, que quase se transformou em uma mini série de cinco capítulos consecutivos (quantas horas de filmagens?). Mas pelo menos você contribuiu para alavancar o ibope das emissoras e chorar impotente diante do final trágico de uma novela real.

Mas esses são casos que se tornaram famosos, e que também não ocorreram em nossa cidade, pensarão logicamente outra quantidade de pessoas que lerem essas linhas. Então, que tal lembrar que no mês passado um homem foi atingido por uma bala, em plana Ponte Princesa Izabel (passou nos jornais locais), e morreu ali mesmo, em plena luz do dia da cidade protegida. No ano passado, dois garotos em uma bicicleta me acuaram, frente a um prédio da Rua Gervásio Pires. Também não deu tempo da policia me proteger (será que as câmeras registraram?). é que era noite, ou melhor, madrugada, e todo mundo sabe que não se deve andar nas ruas nestas horas. O Estado mesmo, já nos advertiu. É preciso se proteger no aconchego dos lares (concordam?).



E tem também outro exemplo, que precisamente ocorreu diante de minha janela, em plena Avenida Conde da Boa Vista (quantas câmeras foram instaladas a fim de monitorar cem por cento sua extensão?). Um rapaz, que provavelmente bebera um pouco a mais descansava da noite sentado ao meio fio, em frente a uma parada de ônibus (bem iluminada por sinal, e isso devemos a prefeitura, não?). Acontece que o mesmo foi assaltado na avenida mais monitorada e movimentada da cidade. E o mais curioso foi o fato de ter, eu mesmo ligado para a polícia, comunicar que a cem metros existia uma unidade policial e receber a informação de que aqueles agentes não poderiam se afastar do seu posto. Mas também foi informado que uma viatura estava se dirigindo “ao local do ocorrido”. O problema imagino eu, foi que como sempre os assaltantes teimaram em ser mais ágeis e eficientes que nossas unidades e agentes de defesa. E antes mesmo de terminar minha denúncia, os agressores já passavam pela frente do referido posto de policia como se nada tivesse acontecido. Talvez a gente precise pensar que assalto é uma ação não burocrática, por isso rápida. E terá que pense: quem manda beber além da conta? Talvez fosse importante realizar uma campanha de conscientização, esclarecendo a população em geral que se álcool não combina com direção, imagina com avenidas iluminadas e vigiadas por vinte e quatro horas (alguma agencia de propaganda se habilita?).



Penso ainda, que no caso do meu assalto, talvez tenha sido preferível a não intervenção do Estado. Não que seja tão corajoso a ponto de me defender sozinho em tais situações, ao menos tive a possibilidade de negociar com meus agressores. E se os tais agentes de defesa não tivessem tanto tato (será?). E se atirassem nos “marginais” estariam me protegendo ou pondo em risco? E se nesse hipotético “bang-bang” desenfreado, eu tivesse me ferido? Talvez minha morte fosse filmada e eu entraria para o horário nobre. Mas também reflito, que de um jeito ou de outro, confesso não ter respostas para a diminuição da violência urbana. Acredito que políticas públicas eficazes e eficientemente aplicadas possam reduzir as desigualdades e favorecer os processos de inserção sociais tão necessárias a nossa sociedade, pretensamente protegida e resguardada. O problema é que se posse garantir que apresentariam grandes resultados em curto prazo.



Talvez a adoção de ações e medidas sérias, através da educação e garantia de direitos, possibilitando a inclusão no mundo do trabalho, em médio e longo prazo, revelem resultados mais substanciosos e menos onerosos. E logicamente mais justos (mas afinal estamos falando de justiça ou de segurança?). Ponho-me a imaginar o quanto se gasta na instalação de um grande big brother urbano desses; e principalmente quanto custa a manutenção de tais equipamentos. Milhões? Bilhões? (em Dólar ou em Real?). Será que essas exorbitantes cifras monetárias não poderiam se destinar a melhoria e ampliação dos equipamentos da assistência social, educação e saúde? E ainda, quanto se investiria na qualificação e contratação de pessoal, para equipá-los com profissionais competentes e conscientes de seu papel na sociedade (será que assim seriam oferecidos serviços e possibilidades mais concretas, que contribuiriam para diminuir a violência?).



Logicamente estou negando, ou ainda, desconsiderando os resultados atingidos na redução dos índices de criminalidade, assaltos e violência na cidade do Recife. Como também não nego os investimentos, esforços e seriedade que o Estado tem dispensado ao fenômeno da violência urbana. Questiono apena o preço que pagamos por essa segurança vigiada. E não me refiro apenas aos valores monetários, mas ao cerceamento de nossa privacidade. Será que não estamos lhe outorgando o direito de invadir nossas vidas? Será ainda, que não estamos abrindo mão da democracia, que nos garante o direito de ir e vir, sem impedimentos e sem restrições ou constrangimentos, em todo território nacional? Será também que quando relegamos apenas ao Estado o poder de decisão sobre as melhores práticas para problemas coletivos, não estamos nos eximindo de nossas responsabilidades enquanto cidadãos responsáveis pela manutenção de sociedades sadias?



Acho mesmo que essas são questões a serem refletidas e repensadas pela população como um todo, antes que os grandes olhos invadam também nossas casas e nossos corpos. E acima de tudo, antes que nossa própria sociedade transforme nossas vidas em apenas em um grande Show de Trumann (alguém assistiu esse filme?). É preciso, e importante, pensar que garantia de direitos se faz com a participação plena e consciente da sociedade. E encontrar soluções para problemas que atinge a coletividade é um excelente exercício de inicio, para que ”vigiar e punir” nunca se transforme na melhor escolha democrática (Acredito que Michel Foucault consiga explicar melhor. Assim, boa leitura a todos).